Aeroporto de Congonhas, uma, duas, várias vergonhas – Crônica de Carlos Eduardo Novaes

Ao ser inaugurado, em agosto de 1934, Congonhas era considerado um modelo de “obra aeroviária”. Como todo bom aeroporto que se preza, também ficava a alguns minutos da cidade. Cedo, porém, os executivos paulistas, sempre muito atarefados, começaram a reclamar que não podiam perder esses minutos entre a cidade e o aeroporto.

– O senhor compreende – queixou-se um executivo a uma autoridade da época – esse percurso nos rouba um precioso tempo. Será que não dá pra chegar a cidade um pouquinho mais para perto do aeroporto?

A autoridade fez um ar de indignação e exclamou que a proposta “era um absurdo”; mas como São Paulo não pode parar – e não pode parar nem pra pensar – não tomou nenhuma providência. A cidade então foi se aproximando, já ajudada pela população em geral, que desde o início se amarrou em fazer programa no aeroporto. Várias famílias inclusive venderam suas casas de campo e compraram ou­tras em Congonhas para poderem passar um fim de semana mais tranqüilo no aeroporto. A cidade continuou sorratei­ramente se aproximando, se aproximando, pegou as autori­dades distraídas e de repente fez o que os índios fazem com as diligências nos bangue-bangues americanos: cercou o aeroporto.

Hoje, os aviões sobem e descem passando a dois palmos dos telhados das casas e, enquanto outros locais da cidade exaltam suas pracinhas, igrejas, monumentos, lagos, residên­cias, Congonhas se vangloria de ser o único bairro metropo­litano em todo o mundo que possui um aeroporto interna­cional na esquina de suas ruas.

O Aeroporto de Congonhas é um digno exemplo do milagre brasileiro. É realmente um milagre que no local ainda não tenha havido um acidente de proporções super­sônicas. O aeroporto está condenado desde o congresso brasileiro aeronáutico, realizado em 1958. Sua pista prin­cipal tem 1 mil 867 metros e não oferece os padrões de segurança necessários às operações com jatos. Para vocês terem uma idéia: um Boeing-727 necessita de 3 quilômetros de pista para aterrissar ou decolar. E não é muito raro se ver um avião, ao pousar, abrir os pára-quedas, para não varar a pista e sair lá pela Avenida Rubem Berta. Ano passado, um turboélice errou nas contas, atravessou a pista e foi bater num poste na Avenida Jabaquara, causando o maior congestionamento no trânsito. A perícia demorou três horas para chegar (o que não é muito: para os carros demora duas horas) e entre outras coisas concluiu que a empresa deveria pagar uma multa ao Detran.

– Mas – indagou o funcionário da empresa – multa por quê?

– Por avanço de sinal, é claro – disse o perito. ­Várias testemunhas afirmaram que o sinal estava fechado para o seu avião.

E o pior, meus amigos, é que as pistas de Congonhas não podem ser aumentadas, sob pena de se misturarem com as ruas. Já se pensou na solução dos viadutos. São Paulo seria a primeira cidade do mundo a ter uma pista de pouso em cima de um viaduto. Depois, porém, chegou-se à con­clusão de que, pelo tamanho, seria muito oneroso: para satisfazer aos jumbos a pista do aeroporto teria que começar mais ou menos na Praça da República.

Vivendo anos debaixo do ruído permanente das aero­naves, os. moradores de Congonhas, aos poucos, foram modificando seus hábitos, seus costumes, seus encontros:

– Eu queria dar um pulinho aí para lhe ver – disse uma amiga da tia do Aristides, falando pelo telefone.

– Venha mesmo – respondeu a tia – que nós pre­cisamos conversar.

– E qual é a melhor hora pra você? Ah, venha depois do Boeing das oito.

As janelas das casas, por exemplo, só tem a armação.

Os vidros foram dispensados em 1958, quando chegou o primeiro jato. Sempre que levantava vôo, o jato quebrava todas as vidraças do bairro. Os espelhos, para não estilha­çarem, já são comprados aos cacos. As antenas de televisão são subterrâneas. Uma vez, um Lockheed calculou mal a descida e aterrissou com 11 antenas de televisão espetadas no bojo. Apesar de todas as precauções dos moradores, às vezes ocorrem certos imprevistos. Não faz muito tempo, um Jumbo passou tão baixo que arrastou as roupas que estavam estendidas num quintal. A dona da casa teve que ir recla­mar no balcão da companhia:

– Boa tarde – disse ela – eu vim buscar minhas roupas que vieram nesse Jumbo que acabou de descer.

– Pois não – falou a recepcionista – qual é o número de sua mala?

– Não. Elas não estavam na mala.

– Não? – voltou a moça. – Estavam onde, então?

– Estavam no varal lá de casa.

Ninguém no bairro usa relógio. Todos se orientam pelos vôos. Na casa da tia do Aristides a família acorda às 6h43m quando passa o Viscount prefixo PP-PTB; toma banho às l0h29m, na passagem do Boeing-747; almoça às 12h43m com o Caravelle. Aristides, que passou uns dias em Congonhas, ficou impressionado com a tarimba da tia. Um dia acordou e perguntou a ela como estava o tempo lá fora.

– Nublado.

– Mas como é que a senhora sabe, se nem olhou? Nem precisa. Tem um YS-11 há meia-hora roncando aqui em cima. Não há teto para descer.

Em Congonhas, entretanto, corre-se o risco de dormir na cama e acordar na poltrona de um DC-10. Uma vizinha da tia de Aristides conta que uma noite bateram na sua casa às quatro horas da manhã. Ela se levantou e quando abriu a porta deu de cara com um Boeing. Mais desagradável, porém, do que ver um Boeing entrando pela sala sem ser chamado são os problemas causados pela poluição sonora. São 300 decolagens ou aterrissagens por dia, o que dá em média um ronco de avião a cada quatro minutos. Como o ruído dos jatos alcança 140 decibéis – o ouvido humano suporta sem danos 85 – conclui-se que os moradores de Congonhas em matéria de barulho são vice-campeões mundiais. Só perdem mesmo para os moradores do Cabo Ken­nedy, onde os foguetes espaciais decolam a 180 décibéis. Segundo um trabalho da UNESCO, o maior consumo de algodão em todo o mundo é no bairro de Congonhas.

No Hospital do Servidor Público, próximo ao aeroporto, a primeira providência para com uma criança ao nascer é botar-lhe algodão nos ouvidos. Depois, então, corta-se o cordão umbilical. Aliás, é curioso como o resultado de uma pesquisa recente revelou que 90% dos me­ninos do bairro ao crescerem querem ser soldados. E por que isso?

– Pra poder servir nas baterias anti-aéreas.

– E o pessoal aqui do bairro normalmente dorme bem? – perguntou o entrevistador.

– Dorme.

– Ninguém tem insônia?

– Às vezes. Um ou outro.

– E quando não se consegue dormir – voltou o en­trevistador – que é que vocês fazem? Contam carneirinhos?

– Não senhor. Contar carneirinho é coisa do passado.

– Também acho – concordou o entrevistador. ­Que fazem, então?

– Contamos aviões.

Há, contudo, casos excepcionais, como o do marido da tia do Aristides, um senhor de 92 anos (20 a mais que ela), cujas profundas olheiras impressionaram tanto a Aristides que ele foi perguntar à tia: “Ele está doente?”

– Não. É que não dorme desde 1958.

– E por quê?

– Não conseguiu se adaptar ao barulho dos jatos – explicou ela – estamos aqui desde 1930. O ruído dos aviões a pistão e turboélices ele não teve dificuldades em assimilar, mas com os jatos não conseguiu. Disse que já estava muito velho para se adaptar a um novo ronco.

Quando, porém, soube da chegada do primeiro super­sônico a Congonhas, o velho correu para a janela. E ficou maravilhado diante do silêncio com que o avião pousou… Voltou para dentro de casa aos berros: “Estou salvo, viva, viva, até que enfim inventaram um avião silencioso, agora poderei dormir, viva” – e comemorando abraçava a todos até ser interrompido bruscamente por um vigoroso estrondo que parecia estar rachando o céu. Parou lívido no meio da sala e perguntou:

– Que foi isso?

– O som do avião.

– Mas que avião? – perguntou o velho consultando os céus. – Não tem avião agora.

– Foi do que acabou de descer. Ele não é mais rápido que o som? Então. Com avião supersônico é assim mesmo. O som chega sempre com 10 minutos de atraso.

Mas afinal, perguntarão vocês, por que essa conversa toda sobre o aeroporto de São Paulo, se nós moramos no Rio? Porque parece que agora as coisas vão mudar. Reconhecendo que o ruído dos aviões vem criando graves problemas para os moradores de Congonhas, as autoridades resolveram interditar os vôos das 22 às 6 horas da manhã, para que o pessoal possa dormir mais um pouco.

– Mas por que só em Congonhas? – perguntou um carioca. – E o pessoal da Ilha do Governador?

– Bem – respondeu um funcionário do DAC – o pessoal da Ilha tem que esperar. Afinal, não pode dormir todo mundo ao mesmo tempo.

E eu fico aqui pensando, irmãos, que isso, e muito mais que não contei, acontece exatamente na terra do pai da avia­ção. Como não estaríamos, então, se isso fosse apenas a terra de um primo da aviação?

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