A Feira – Crônica de Rubem Braga

Passa gente vindo da feira. Agora temos uma feira aqui perto de casa. Para mim apenas movimenta a esquina, com tantas empregadas e donas-de-casa carregadas de sacos e cestas de frutas, verduras e legumes. Ao poeta Drummond, que mora mais além, a feira deve incomodar, porque os grandes caminhões roncam sob a sua janela, e o vozerio dos mercadores e fregueses perturba o seu sono matinal.

O que não tem a menor importância: na atual situação do mundo é bom que os poetas estejam vigilantes. Quanto aos cronistas, que eles durmam em paz; é melhor que se recolham e se esqueçam de fazer a crônica destes dias, em que não há nenhum exemplo nem lição. O poeta é mais adequado para ouvir as exclamações patéticas (“os tomates estão pela hora da morte”) e tomar o pulso dos fatos concretos da mercancia local. Além disso deve subir até a sua janela a fragrância das verduras e de todas essas coisas nascidas na terra, ainda frescas e vivas, coloridas. É bom que ele veja as quinquilharias ingênuas, as ervas misteriosas, as pequenas inúteis e preciosas coisas do mar e do sertão, os cavalos-marinhos e as sementes escuras. Só ele poderá entender as coisas de barro e de palha, a glória dos tomates, o espanto de pedra no olho dos peixes eviscerados, e o constrangimento amarelo desses abacaxis sem sabor que amadurecem no meio do inverno.

Passa um homem careca, sério; deve um velho funcionário, e tem o ar de quem discute muito nas feiras, capaz de citar o preço dos pepinos em 1921 e de lamentar, como prova de decadência espiritual do Ocidente, o atual tamanho das bananas. Sim, eram maiores as bananas de antanho. A acreditar nele as bananas-da-terra dos tempos coloniais mediam toesas. Em todo caso, não parece ir muito triste; carrega dois sacos verdes e de um deles sai o pedaço de uma abóbora. Gosta de abóboras, o birbante.

“Não, senhora; só em doce, assim mesmo misturado com doce de coco” – respondeu aquele menino àquela dramática pergunta de sua velha tia sobre se gostava de abóbora. Essa resposta foi, na época, muito comentada como grave prova de insolência e talvez desagregação moral. Não era. Era uma prova de tolerância, boa vontade, anseio de compreensão; porque a vida é terrível é que o menino não gostava mesmo de abóbora e achava que o único defeito do doce de coco era conter, às vezes, por costume de família, um pouco de abóbora. Estava, entretanto, disposto a superar as próprias convicções em benefício do bem-estar geral. Tinha pudor de que pensassem que ele odiava abóbora; era uma criança no fundo delicada, embora tenha resultado em um homem com freqüência estúpido.

A feira, não sei por quê, me leva a essas divagações infantis; vagueio com suave emoção entre cebolas de brilho metálico e couves e alfaces líricas.

Há uma grata surpresa. A mais bela, esquiva e elegante senhora da rua está pessoalmente na feira. Veio sem pintura, um vestido leve, sandálias coloridas. Demoro-me em ver sua pele, seus cabelos, seus olhos, sobre um fundo de couves e beterrabas. Sua pele tem uma frescura vegetal. Suas mãos finas seguram os legumes com um experiente carinho. Quando vai para casa, um menino conduz suas compras. Ela, porém, fez questão de levar nas mãos, como sinal de alegria e de simplicidade, uma grande couve-flor.

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