Os de 26/9 – Crônica de Luis Fernando Veríssimo

A gente tem um certo carinho pelo próprio aniversário. Afinal, é a data do nosso começo. Mesmo que não interesse a mais ninguém, nos interessa profundamente. Mesmo que não signifique nada, pra nós significa muito, pombas. Sou de 26 de setembro, e andei pesquisando para saber quem fomos e quem somos, os de 26/9, e o que mais aconteceu de importante nesse dia. Descobri que T. S. Eliot, Martin Heidegger, o papa Paulo VI, George Gershwin e Gal Costa nasceram na mesma data, que também é o dia da independência da Nova Zelândia – o que nos leva a imaginar como seria, ignorando-se a disparidade cronológica, uma reunião desta turma. Que bem poderia acabar com o papa dançando com a Gal uma composição do Gershwin ao piano enquanto Eliot e Heidegger trocam ideias sobre a decadência do Ocidente. Mas também descobri que em 26 de setembro morreu o Walter Benjamin.

Benjamin demorou para fugir da França ocupada pelos nazistas. Foi internado pelos alemães, finalmente conseguiu um visto dos americanos e rumou para a fronteira com a Espanha. Sua passagem pela fronteira seria tranquila, mas, por uma pequena questão burocrática, foi adiada para o dia seguinte, e o grupo de Benjamin teve que dormir na pequena cidade de Port Bou, ao pé dos Pirineus. Naquela noite, 26 de setembro de 1940, Benjamin se matou com uma overdose de morfina.

Nunca ficou claro por que Benjamin demorou tanto para tentar escapar e por que se suicidou. Ele tinha escrito que viera ao mundo “sob o signo de Saturno, o astro com a rotação mais lenta, o planeta dos desvios e dos atrasos”. Susan Sontag, num ensaio sobre Benjamin (intitulado Sob o signo de Saturno), escreveu que ele era dominado pela melancolia, e que tinha o pendor da personalidade saturnina pela solidão. Mas a sua era uma solidão ativa e desafiadora, que tanto lhe permitia ser um observador cosmopolita, um “flaneur” como Baudelaire, outro melancólico em movimento e um dos seus heróis intelectuais, como rejeitar algumas das ortodoxias marxistas dos seus pares na escola de Frankfurt. Pode-se especular que, frustrado pelo adiamento na fronteira, enojado pelas indignidades acumuladas que sofrera e doente, Benjamin tenha apenas se negado mais vida e optado por outro tipo de fuga. Segundo Sontag, ele se considerava um tipo em extinção. Achava que tudo que ainda havia de valor no mundo era o último exemplar, como o surrealismo, que era a última expressão, apropriadamente niilista, da inteligência europeia. Deixou incompleta a sua maior obra, sobre as “arcades”, as galerias de Paris, que chamava de a capital do século dezenove. A capital de um mundo que – talvez tenha pensado, antes da morfina – terminava ali. Em vez de outro refugiado na América, preferiu ser também o último exemplar da sua espécie. O ponto final de uma certa Europa.

Roberto Calasso conta no seu livro Os Quarenta e Nove Degraus” que Hannah Arendt procurou em vão pela sepultura de Benjamin no cemitério de Port Bou, que descreveu como um dos mais belos que já conhecera. Hoje a sepultura existe. O interesse de turistas era tão grande que o cemitério providenciou uma com o nome dele. O lugar é bonito, diz Calasso, mas “a sepultura é apócrifa”. Ninguém sabe onde Benjamin está passando o seu exílio definitivo.

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