Navegações horizontais e verticais – Artigo de Roberto Damatta

Nada como uma experiência horizontal para revelar com fulgurante realismo a bússola vertical com a qual navegamos socialmente. No Brasil, a agulha aponta mais para cima e para baixo do que para os lados. Daí a perturbação quando se fala na responsabilidade para com o lixo; ou quando uma celebridade anda de ônibus. No meu livrinho sobre como dirigimos (Fé em Deus e Pé na Tábua), sugiro que o nosso inconsciente aristocrático abriu mão do transporte coletivo.

Barões não andam em veículos comunitários, mas em carruagens e automóveis de luxo. E, assim, desmontamos com irresponsável método todo um arrazoado sobre o transporte público. O coletivo obriga a olhar para o lado, mas nós navegamos olhando para cima. De onde, obviamente, vem o exemplo dos que ensinam como é cafona andar com os outros.

A propósito de navegação, vai um caso. Um dia, em Manhattan, eu queria localizar um museu e achei conveniente pedir a indicação pessoalmente. O sujeito me olhou de cima em baixo, viu o mapa na minha mão, sentiu a minha negligência de estudá-lo ou sequer abri-lo e falou: Don’t you know how to read? (você não sabe ler?). O brasileiro que me acompanhava o achou grosseiro. O meu lado acostumado a ser servido por mamãe (só nossas mães sabem “fazer o nosso prato”, arrumados com zelo tal como as pessoas!) leu a experiência como mais uma prova da brutalidade do capitalismo americano.

No mundo brasileiro, a mesma experiência poderia parir um agregado ou um submisso servidor. Entre nós, o poder se manifesta também na zanga. Na seriedade bunduda dos medalhões.

Conheci um catedrático que falava aos berros e jamais dava bom dia aos serventes de nossa faculdade sem verbas, mas com impecáveis servidores de café e limpadores de latrina. Diante de um ministro, porém, seus lábios tremiam. Fraco com os fortes, forte com os fracos.

Voltemos, porém, à navegação. Eu estava em Belém sem nenhum mapa fiz a mesma pergunta e o sujeito me acompanhou até onde eu queria ir: ao Museu Emílio Goeldi. Quis recompensá-lo, mas ele recusou. Não era o caso, disse-me, pois havia realizado um gesto de hospitalidade. Ficou, porém, ao redor. Era óbvio que o pagamento cancelaria uma relação que ele queria prolongar, pois queria ficar a meu serviço. Tive que dispensá-lo, dando-lhe um brasileiríssimo “agrado”: a gorjeta para a cerveja com os amigos. Uma moeda que não era um pagamento porque exprimia a minha consideração pelo favor realizado, em princípio gratuito e voluntariamente, e, por isso mesmo, incomensurável em termos monetários.

E aí temos uma importante questão. Será mesmo possível viver nessa roda-viva de erros, frustrações, alegrias e transitoriedades (sobretudo a consciência de ser mais um mero passageiro), pensando que tudo pode ser vendido e comprado a preço fixo? Ou será que o incomensurável se esconde em cada transação humana, mesmo as mais explicitamente monetárias?

Marcel Mauss – um autor a ser lido – ia além do truísmo segundo o qual não há almoço de graça. O que ele realmente diz é que o almoço de graça aciona e engrenagem do dar, do receber e do retribuir porque, quem recebe o favor ou a hospitalidade, vira devedor. Há mais nas relações que temos uns com os outros e com as coisas que usamos e descartamos do que imagina a nossa rotina.

No mundo das amplas longitudes nacionais, existe sempre um inferior. Seria interessante saber quem não nasceu numa casa sem empregados domésticos no Brasil. Na minha vida, que começou em Niterói, passou pelo sertão paraense e goiano, por Alagoas e pelo interior de Minas, eu tenho a mais nítida consciência de que fui fabricado por meus pais e pelos nossos empregados. Se os pais e irmãos foram básicos na minha educação sentimental (que não é feita somente na escola, mas pela cultura de uma sociedade), os empregados não podem ser descartados. Como os escravos na vida dos nossos ancestrais.

Tirados da eclipse, eles surgem com um importante protagonismo. Primeiro, porque nos deram a visão de um mundo partido, mas inter-relacionado, já que eles faziam o que nós – pelas regras da cultura local – não deveríamos fazer. Depois, porque eles nos davam o sentido da separação básica entre casa e família, pois pertenciam à casa, mas não eram da família. Seu êxito na vida dependia de uma enorme sensibilidade para com o inferior e o superior e suas respectivas etiquetas. E, finalmente, porque foi na casa e na família que aprendemos a difícil arte de ser igual e diferente ao mesmo tempo, dependendo da situação. A marca da indecisão e da ambiguidade desenha a vida social brasileira.

Seria isso uma condenação? Sim, se ignoramos esses vetores. Não se os tratarmos à luz de nossa compreensão.

Dir-se-ia que a casa continua no passado que não passa, ao passo que a rua vive num futuro que não chega. Mas o diálogo entre casa e rua não termina.

Via Estadão

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