As camélias da liberdade – Artigo de Roberto Pompeu de Toledo

Num dia de 1998, o historiador Eduardo Silva contemplava os jardins da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, quando deparou com um pé de camélia, depois outro, depois outro – três, ao todo. Curioso… Dias antes, ele tinha encontrado, entre os livros do próprio Rui Barbosa, um texto sobre o sentido simbólico das camélias. Os pés de camélia levaram-no a lembrar-se do texto. Mais adiante, continuando a puxar o fio da meada, ei-lo num quilombo, situado no então ermo arrabalde do Leblon, e então…

Isso aqui está até parecendo Proust. O francês Marcel Proust, no mais conhecido e mais citado trecho de sua grande obra, está mergulhando no chá as madalenas, bolinhos a partir de então tornados igualmente célebres, quando aquele gosto, aquele cheiro, aquele gesto e aquele conjunto de sensações transportam-no para a infância, época em que costumava acompanhar o chá com os mesmos bolinhos, na casa de uma tia onde passava férias – e então é todo um passado que lhe volta à mente, a tia e a casa da tia, as pessoas, os costumes, as aflições e os prazeres do período, e o passado ressuscita, vivo e forte como o presente. São os sortilégios da “memória involuntária”, o fenômeno que está na base de todos os sete caudalosos volumes de Em Busca do Tempo Perdido.

A memória involuntária, em Proust, faz voltar à tona uma vivência individual. No caso de Eduardo Silva, pode-se dizer, com alguma (ou muita) liberdade, que a cadeia de associações que o assaltou configura uma experiência de memória involuntária coletiva. Ei-lo transportado não para algum ponto de seu próprio passado, mas para um ponto da história do Brasil. Aquele “momento mágico” no jardim, como o chama o próprio Eduardo Silva, levou-o a uma pesquisa que, depois de quatro anos, resultou num livro agora publicado, As Camélias do Leblon (Companhia das Letras). Reemergem nesse trabalho fatos de cento e alguns anos atrás recobertos pela crosta do esquecimento. As camélias eram o símbolo do movimento abolicionista, na reta final da luta contra a escravidão. Os abolicionistas usavam-nas na lapela, reuniam-nas em ramalhetes ou cultivavam-nas nos jardins, para sugerir a adesão à causa. E o lugar por excelência onde se produziam as camélias, e de onde eram distribuídas para os militantes e simpatizantes, era um quilombo situado, muito surpreendentemente, quando se tem em mente o Rio de Janeiro de hoje, no Leblon.

O autor faz a distinção, para a boa compreensão do tema, entre o “quilombo-rompimento” e o “quilombo abolicionista”. O quilombo-rompimento é o modelo tradicional. O de Zumbi. O lugar para onde fogem os escravos e criam uma nova sociedade, rompida com a anterior. O quilombo abolicionista, apoiado ou mesmo patrocinado por militantes abolicionistas – quer dizer, gente livre, muitas vezes figuras de destaque na sociedade –, era um centro de acolhimento do escravo fugido, como o outro, mas ao mesmo tempo também uma trincheira de luta pela abolição. É neste caso que se insere o Quilombo do Leblon, instalado na chácara que um comerciante português, José de Seixas Magalhães, possuía na área hoje chamada de Alto Leblon. Seixas Magalhães, dono de uma prestigiosa loja de malas na Rua Gonçalves Dias, é uma figura que, assim como o quilombo e as camélias, emerge do esquecimento no livro de Eduardo Silva. Os abolicionistas que costumam ser lembrados são os políticos e os intelectuais, não os reles comerciantes, mal-e-mal alfabetizados, como ele. E no entanto Seixas fez mais que muitos, não só ao transformar sua propriedade em refúgio e prover à subsistência dos refugiados, como também por contribuir, com as camélias cultivadas no local, para fornecer um emblema ao movimento. A camélia, naquela distante década de 1880, no Rio de Janeiro, exerceu papel semelhante ao que uma outra flor, o cravo, exerceria, noventa anos depois, na revolução portuguesa que acabou com a ditadura salazarista – um papel romanticamente libertador.

A Fundação Casa de Rui Barbosa, um centro de estudos no qual Eduardo Silva foi chefe do setor de história, tem sede na casa onde morou Rui Barbosa. Trata-se de uma casa senhorial, situada no bairro de Botafogo, em meio a um amplo terreno. Rui Barbosa era abolicionista. Também era amigo, e amigo querido, pelo que revelam itens de correspondência entre os dois, de Seixas Magalhães. Ora, raciocina Eduardo Silva, bem pode ser que os pés de camélia do jardim tenham sido plantados para identificar o proprietário da casa com a causa, assim como, mal comparando, a cor amarela, na camiseta, numa bandeira ou numa faixa, identificaria seu portador com a campanha das diretas, em 1984. Eduardo Silva, historiador com uma queda pelos episódios escondidos e as figuras fugidias da história, como dom Obá II, o autoproclamado príncipe do povo, personagem do tempo de dom Pedro II que foi tema de um seu livro de 1997, recupera, neste novo trabalho, um bonito episódio da história do Brasil. Ajudaram muito as camélias do jardim de Rui Barbosa.

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