Barricada – Crônica de Luis Fernando Veríssimo

Um dia, irmão, comemoraremos nossa vitória com um banquete. Todos os que lutaram, ou que só usaram o barrete. E bêbados de nós mesmos, a mesa coberta com os destroços do combate — difícil dizer o que é sangue e o que é molho de tomate —, brindaremos as cadeiras vazias dos que lá não estão. Os fantasmas de uma geração.

Um que morreu no exílio e foi devorado por vermes estrangeiros.

Um que enlouqueceu um pouco e tem delírios passageiros. O que comprou um sítio em Cafundós do Oeste e nos manda fotos tristes dos seus pés em tamancos.

O que nós só vemos na rua, esbaforido, correndo entre dois bancos.

O que era anarquista e acabou na IBM. O que era poeta maldito e acabou na MPM.

O que casou com a Vivinha e dizem que come a sogra.

O que era seminarista e dizem que transa droga.

Um que ia mudar o mundo, e se mudou.

O que ia ser o melhor de nós todos, e vacilou.

Nossa Rosa Luxemburgo, que abriu uma butique.

Nosso quase Che Guevara, que hoje vive de trambique.

Restaremos você e eu, irmão.

E os balões circundarão nossas cabeças como velhos remorsos. E o pianista ruirá sobre as teclas como o Império Bizantino. E os garçons olharão o relógio e desejarão a nossa morte.

Seremos sentimentais e um pouco arrogantes.

Danem-se nossas trapalhadas, estivemos nas barricadas!

Esta civilização nos deve, pelo menos, outra rodada.

Um dia, irmão, um dia.

Você proporá um brinde à razão e nossos copos vazios, com o choque, explodirão. Eu cantarei velhos hinos revolucionários, sob protestos dos vizinhos, certamente reacionários.

Brindaremos à fraternidade universal e à luta antiimperialista e à Nena do Tropical, que dava desconto pra esquerdista.

Choraremos um pouco. E cataremos, entre as migalhas da mesa — como oráculos o futuro nas vísceras de um cágado —, vestígios do nosso passado.

O toco de um Belmonte Liso.

Meu Deus, o meu dente do siso!

Bilhetes de loteria que nunca deram e de namoradas que também não.

A letra semi-apagada de Great Pretender.

Um tostão.

Bêbados de autopiedade, brindaremos esta cidade onde nascemos e morremos mais de uma vez (só eu foram três) mas salvamos do inimigo. Nosso reino, nosso umbigo.

Não temos placas na rua como heróis da Resistência, mas temos a consciência de que os bárbaros não passaram.

Mas sei que no fim desses disse-que-disses os dois prostrados como mães de misses já com aquele olhar do Ulysses você me dirá no nariz, com um bafo que, bem aproveitado, seria uma força motriz:

— Como, heróis? Como, não passaram? Meu querido, não te falaram?

E completará com um gargalo, a caminho do assoalho:

— Os bárbaros ganharam!

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