Festa de criança – Crônica de Luis Fernando Veríssimo

Você reconhece quem teve uma festa de criança em casa no dia anterior. Alguma coisa no rosto. A expressão de quem chegou à terrível conclusão de que Herodes talvez tivesse razão.

— Que respiração ofegante o senhor tem!

— Foi de tanto encher balão.

— Que dificuldade o senhor tem para caminhar!

— Foi de tanto levar canelada tentando apartar briga.

— Como as suas mãos estão trêmulas!

— Foi de tanto me controlar para não esgoelar ninguém! Respeito e consideração para quem teve uma festa de criança em casa no dia anterior.

O pai e a mãe estão atirados num sofá, um para cada lado. Se-miconscientes. Já é noite, mas a festa ainda não acabou. Sobram três crianças que não param de correr pela casa.

— Tenho uma idéia — diz o pai.

— Qual é?

— Vamos mandar eles brincarem no meio da rua. Esta hora tem bastante movimento.

— Não seja malvado. Daqui a pouco eles vão embora.

— Quando? Essas três foram as primeiras a chegar. Acho que os pais deixaram elas aqui e fugiram para o exterior.

Uma menina cruza a sala na corrida. Quando chegou, tinha o vestido mais engomado da festa. Depois de três banhos de guaraná e uma batalha de brigadeiros, parece uma veterana das trincheiras.

— Essa aí é a pior — diz o pai, num sussurro dramático. — Essa baixinha! E um
terror!

— Coitadinha. É a Angélica.

— Angélica?! E uma terrorista!

— Sshhh.

— De onde é que saiu essa figura?

— E uma colega do Paulinho.

— E aquele ranhento que não pára de comer?

— É o Chico. Também é colega.

— Será que não alimentam ele em casa? E o outro, o que está pulando de cima da mesa?

— E o Paulinho! Você não reconhece o seu próprio filho?

— Ele está coberto de chocolate.

— E que ele teve uma luta de brigadeiros com a Angélica…

— E perdeu, claro. A Angélica é imbatível. Guerra de brigadeiros, jiu-jítsu, vôlei com balão, hipismo com cachorro. Ela foi a única que conseguiu montar no Atlas.

— Por falar nisso, onde é que anda o Atlas?

— Fugiu de casa, lógico. Era o que eu devia ter feito.

— Ora, é só uma vez por ano…

— Você precisava me lembrar? Pensar que daqui a um ano tem outra…

— Você não pode falar. Você também gosta de fazer festa no seu aniversário.

— Mas nós somos finos. Nenhuma festa teve guerra de chocolate. Nos embebedamos como pessoas civilizadas.

— Ah, é? E o anão com o trombone?

— Essa história você inventou. Não havia nenhum anão com um trombone.

— Ah, não? A Araci é que sabe dessa história. Só que ela foi embora no mesmo dia.

O Chico se aproxima.

— Tem mais cachorro-quente?

— Não, meu filho. Acabou.

— Brigadeiro?

— Também acabou, Chico.

— Dá uma lambida na cabeça do Paulinho — sugere o pai, sob um olhar de reprimenda da mãe.

— Puxa, não tem mais nada? — diz o Chico. E se afasta, desconsolado.

— E ainda reclama, o filho-da-mãe!

— Shhh.

— Bom, você eu não sei, mas eu…

— Você o quê?

— Vou tomar meu banho, se é que ainda tenho forças para ligar um chuveiro, e ver televisão na cama.

— E quando chegarem os pais?

— Que pais?

— Os pais da Angélica e dos outros, ora.

— O que é que eu tenho com eles?

— Quando eles chegarem, você tem que receber.

— Ah, não.

— Ah, sim!

— Mais essa?

Batem na porta. O pai vai abrir, esbravejando sem palavras. É um casal que se

identifica como os pais da Angélica.

— Entrem, entrem.

— Nós só viemos buscar a…

— Não, entrem. A Angélica não vai querer sair agora. Ela é um encanto. Meu bem, os pais da Angélica. Sentem, sentem.

O pai esfrega as mãos, subitamente reanimado.

— Quem sabe uma cervejinha? Querida, vá buscar.

Como a Araci se foi, a própria mãe — que se ocupou com a festa desde de manhã cedo, que mal se agüenta em pé, que podia matar o marido — vai buscar a cerveja. Pisando nos embrulhos de doces, nos copos de papelão e nos balões estourados que cobrem o chão e que ela mesma terá de limpar no dia seguinte. Respeito e comiseração para as mães que tiveram festa de criança em casa, no dia seguinte.

Enquanto isto o pai acaba de abrir a porta para os pais do Chico e os manda entrar, entusiasmado com a idéia de começar sua própria festa.

— Querida, mais cerveja!

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