O vampiro da Alameda Casabranca – Conto de Márcia Denser

A não ser pelo filme japonês em cartaz, não havia nenhum interessem sair com aquele sujeito, poeta, que se ostentava como “maldito” só para poder filar seu canapezinho de caviar nas altas rodas. Um guru de fachada, meio sobre o charlatão cósmico, adepto que era de uma esotérica seita oriental, babaca como tantas outras, e usando tudo isso em proveito próprio. Pelo menos não era burro. Disso resultavam as sessões de massagem transcendental nas madames com hora marcada, ou mesmo sem ela, ao sabor das prisões de ventre, dores de corno e outras piorréias. Não era mesmo burro. Feioso, devia viver faminto de carne fresca mas, passando-se por espiritual, ia tirando suas casquinhas. A conversa era inconsistente, cheia de expressões pedantes e, até pela sintaxe, tão emaranhada em meandros que obviamente não levavam a parte alguma, notava-se a eterna fome do cara. Uma espécie de vaga ansiedade piedosa de algo que rodeia e rodeia aquilo que seria um alvo não tivesse ele em mira outra coisa. Por exemplo: enquanto sua boca passeava pela evolução da energia cósmica, seus olhos hipnotizavam-se (bem como toda a sua alma) num ponto qualquer entre meus seios, e a energia cósmica ia e vinha, subia e descia, jamais se perdia, enrolava e se desenrolava, mas não chegava a nenhum lugar, uma vez que o verdadeiro objeto daquele papo estéril permanecia fora de alcance. A arenga também seria hipnotizante: eu me sentia como uma criança birrenta que não quer dormir ou um animal relutante em cair na armadilha.

O tal filme japonês fora realmente bom, um monumento poético, um estudo profundo sobre as paixões humanas, etc. e assim eu poderia falar sobre ele ad nauseam, mas o Poeta apenas emitiu suas impressões assim: “É barra! Que barra! É uma barra!” dizendo-as de maneiras diferentes e impostando a voz num diapasão enfático que partia da traquéia, explodindo num ruído seco e rouco, feito um peido bucal, e como se a palavra “barra” contivesse, não digo o significado de todo o universo, mas, pelo menos, de todo o filme. Isso no fim da fita. Durante esteve todo o tempo tentando pegar no meu braço. Um verdadeiro saco. Então eu me perguntava: por que sair com aquele cara? Era desses feriados tediosos, todos os amigos queridos, todos os sujeitos interessantes, todas as amigas disponíveis viajando, restando os neuróticos, os chatos e os vampiros na cidade. Já era uma boa razão. Depois, eu apenas desconfiava de tudo isso, ainda não configurara uma imagem nítida do Poeta na minha cabeça. Na hora “H” fico possuída duma puxa-saquice pânica por agradar, mais preocupada com o efeito que com o objeto propriamente dito. Posso acabar fascinando Drácula em pessoa, sem dar pela coisa. Daí me livrar do monstro já é outra estória.

Como nesses clássicos de horror, ao sairmos do cinema “um vento gélido açoitou-nos os ossos”. Confesso que não fiquei surpreendida quando o Poeta sugeriu passarmos no seu apartamento para pegar um pulôver, coitadinho. Antes tentei aliciá-lo para uma cave de queijos e vinhos, mas ele não entrou. Também não queria ser grossa ou passar por retrô ou sei lá. No fundo, no fundo, estava querendo ver até onde ia o meu fascínio — e eu sei onde vai o meu fascínio — com o Poeta. Sabe-se lá.

No apartamento (não fosse pelo excesso de cartazes politicosos, até que bem jeitoso. Um tanto “artístico-displicente” demais, eu acho, como tantos outros onde eu estivera, de poetinhas, atores de teatro, bichas. São todos iguais. Deve ser a fada madrinha) eu aproveitei meu fascínio ao máximo. Munida dos meus trabalhos, submeti o Poeta a uma intermitente sessão de leitura dos melhores trechos por umas duas horas. Minhas estórias são boas, mas lidas assim, no tapete, bebendo um bom vinho tinto, um fogo aqui dentro, ar condicionado, almofadas e mantas peruanas, música suave e um sujeito querendo me comer ali do lado, não há talento que resista. Então, ele me submeteu a mais duas horas de suas poesias, aliás inéditas. Se fossem boas até que valeria o esforço, o fascínio, a atenção fingida (tinha ganas de estourar de rir cada vez que ele pigarreava, afivelando um ar circunspeto, como se preparando para ler um discurso, um obituário, um testamento, enfim, algo muitíssimo sério), o vinho, aquele apartamento, o filme japonês, os feriados, aquelas profundas crateras que lhe sulcavam o rosto, o ligeiro cheirinho oleoso e adocicado que se desprendia delas, a mania de falar de si próprio na terceira pessoa, como se fosse um fantasma, o fato de ser careca de um lado só, daí o cabelo restante se amontoar num topete atrás da orelha esquerda, enfim, mas não eram. Não eram mesmo. Ocas, delírios vagos, desconexos, de um concretismo de cabeça dura e reticências. Na mesma construção e com a mesma ênfase conviviam vísceras e sangue, cosmos e eternidade, como se essas palavras não significassem nada além de meros sons poéticos convencionais. Quando a coisa começava a esquentar, ele sempre botava as tais palavras definitivas como Deus, Espaço, Eternidade, Morte, e esquecia as preposições, tornando tudo assim delirantemente obscuro, como se possuísse uma chave, um código para sua decifração. Para os leigos, as garotas bonitas e os novos-ricos, quanto menos se entende mais a coisa deve ser boa. Palavras bonitas é igual a idéias bonitas. É gongórico, é elementar. O Poeta conhecia muito bem esse princípio e aplicava-o até à exaustão. A minha, por exemplo. Na verdade, algumas eram até sofríveis, mas parece que o sujeito tinha um cadeado no cérebro. Estava prisioneiro. Não se enfrentava. E se começava a botar a mão na merda, lá vinha ele com seus deuses e demônios anti-sépticos, para levar todos os pecados. Pelo menos os dele. Se achava que os tinha. Ser feio, por exemplo, era um. Equilibrava-se definindo-se “pedante e sofisticado”. Supunha-se, dessa forma, inacessível. Enganava só os trouxas.

Na conversa, Poeta mencionou uma festa. Amigos intelectuais, etc. Então vamos, me animei, e fui emergindo das almofadas, procurando as botas debaixo do sofá, espantando cobertores, relanceando um olhar melancólico para as garrafas vazias, mas ele me reteve. Ainda não, disse, fixando-me um olhar tigrino cor de petróleo. Era como um aquário, a exposição, atrás do vidro córneo, do que havia no interior de suas espinhas mortas: óleo diesel.

O pequeno deus Caracol, o deus dos covardes, deve habitar em mim, pois foi ele que me fez encolher, puxando consigo todas as terminais nervosas, todas as sensações de prazer e dor, toda alegria, todo pranto, e me transformar num penhasco árido, num terreno baldio entregue às varejeiras, aos cacos de vidro, lixo, mato ralo, aos cães vira-latas, e aos teus beijos, Poeta.

Uma zoeira distante no ouvido, uma sensação incômoda nas costelas, a boca seca avisaram-me que bastava. Fui me desprendendo aos poucos. Tarefa, aliás, bastante embaraçosa. Eu diria hilariante, se não fosse parte ativa. Parecíamos atores de um filme do Harold Lloyd. Eu puxando de cá, ele de lá. Um escorregão providencial da minha parte (estávamos em pé) decidiu a contenda. Fomos à festa.

A primeira coisa que chamou minha atenção foi que o dono da casa — por sinal, um belíssimo rapaz — usava, atadas na manga da camisa, duas fitas de seda nas cores da bandeira nacional. Assim como os rapazes da TFP, a juventude de Hitler, os pupilos de Mussolini. Como um ungido, a marca da distinção, do bem-nascido, bem-dotado, bem rico, a nata, a perfeição e vocês fora! E viva Nietzsche e o quarto Reich, logo, o General Pinochet, Idi Amin, Pol Pot, Gengis Khan e a Revolução de 64. Puxei-o pela manga: o que é isso? Sorriu com seus olhos azuis de água doce: Não é um belo país? É. Olhei a mesa: vinhos franceses, queijos suíços, baixela húngara, guarnições de renda austríaca, charutos cubanos, vodca russa, cigarros americanos. Belíssimo país. Belo mesmo é você, pensei cinicamente, cobiçando a belezinha de jovem fascista e seus brinquedinhos, entre eles uma linda esposa loura e psicóloga formada pelo período da tarde do Cursinho Objetivo, altura e peso ideais segundo a revista Cláudia e preocupadíssima com seus encargos de anfitriã (repetiu neuroticamente a noite toda que “a previsão falhou” a propósito de haver terminado o queijo de nozes antes das duas da matina). E os intelectuais? Da “festa” constavam exatamente dez pessoas. Além dos anfitriões, eu e o Poeta/Profeta, havia um outro casal composto de um sujeito enorme, estilo CroMagnon, filho de general, com o curioso nome de Ciro, faixa preta em caratê e que me foi apresentado como um pintor maravilhoso, porém desiludido (o pessoal devia ser positivamente cego) e cocainômano ativo, acompanhado por uma garota misto de Dama das Camélias e Madrasta da Branca de Neve: profundas olheiras azuladas, cabelos crespos e negros acentuando oleosamente o rosto pálido, ossudo, lunar, quase transparente, usando uma camisa branca também transparente (seios nada transparentes) sem sutiã e, a chamar a atenção de todos para os seus pés feridos pelas sapatilha de bailarina? Não sei. A cidade está cheia desses cursinhos de balé e bordado, freqüentados por jovens em idade de casar e manter a forma. Para compensar as festinhas movidas a vinho, coca e mau humor de suas excelências, seus namorados, pelos quais elas são capazes de se foder por toda eternidade, em troca de um sobrenome enganchado no rabo e um apartamento nos Jardins: os homens têm as angústias, as mulheres, os interesses, e por aí vai. Roger, o intelectual oficial, amigo do Poeta de proveta, um sujeitinho magricela, insignificante, (essa palavra é enorme!), apagado na minha memória, acompanhava uma cooperante do governo americano junto ao Brasil, uma garota da Califórnia com cara de porto-riquenha. Ela deveria detestar aquela cara tropical, a pele morena, cabelos negros cortados rente, como se pagando uma pena, os olhos escuros feito morcegos assustados, encolhidos no fundo da fisionomia. Que fazer se sua mãe havia pulado o muro do México? Roger, o colonizado, desmanchava-se em atenções para com o produto de Tio Sam, mas eu imagino que, para ele, bastaria qualquer coisa, uma lata de sopa Campbell, digamos. Que representasse a civilização, a cultura superior, etc. Razões inconfessáveis. Não via nela apenas uma garota assustada num país estranho. Assim como eu não enxergava o aspecto repugnante do meu guru-poeta. Tampava o nariz, os olhos, a boca, e o engolia em nome de uma vaidade idiota. Presentes também um par de primos dentuços e noivos que se despediram cedo. Eu aposto que pra ver televisão e se agarrar no sofá.

A madrugada evoluiu naquele apartamento neoclássico, com ativa movimentação de garrafas de vinho, rodadas de coca, camembert rançoso e conversas idiotas. Já estava amanhecendo e restavam os donos da casa, Ciro, Branca de Neve, Poeta e eu, já me sentindo completamente onipotente. Sentimento provavelmente compartilhado por todos, uma vez que a conversa girava sobre vida extraterrena, enquanto Brinquedinho raspava com uma pazinha de sorvete os restos de pó grudados no bumbum da garota na capa da revista Playboy. Excelente anfitriã. Belo Fascista inquiria o Poeta:

—Você, Klaus, que é um cara ligado nessas coisas, e entende paca, já deve ter tido revelações, não?

— Bem — começou o outro — pode-se dizer que nós (falava sempre no plural, aludindo estranhamente uma cumplicidade invisível. Quem sabe com os deuses.) chegamos a fazer vários contatos realmente inexplicáveis, eu diria, por exemplo, quando morreu a Dorinha…

— A Dorinha não morreu trovejou Ciro, olhos vidrados numa faca de cortar frios.

— Talvez sim, talvez não condescendeu misteriosamente Klaus — muitos de nós já chegaram a…

— Besteiras, não há nada — cortei. Estive lá em cima e vi: estão todos mortos. E voltando-me para o meu anfitrião: Um trechinho de seu autor predileto, beleza…

— Como? — Belo Fascista arregalava os doces olhos azuis.

— Ela divaga — Poeta endereçou-me um olhar enviesado — mas como eu dizia, a Dorinha…

— Agora que estou vendo — interrompi novamente. De repente, Ciro e Branca de Neve me pareceram estranhíssimos: ele enorme, truculento, ela frágil, meio amalucada…

— Vocês não têm nada a ver, não é? Sorria para ambos como abençoando-os. Klaus, desorientado, arreganhava os dentes, desculpando sua convidada.

— Terrível, terrível, arfava Branca de Neve.

— Pensando bem, acho que a garota tem razão, Ciro não tirava os olhos da faca,

—E como é que vocês tre. . . Um violento cutucão do Guru, debaixo da mesa, fez-me engolir o resto da frase.

Depois disso, fui mergulhando cada vez mais fundo num burburinho ácido e esbranquiçado. As frases se sucediam de cá para lá, e eu as acompanhava como bolinhas num jogo de ping-pong, apenas como bolinhas, que não são nada além de bolinhas brancas.

Levantei-me e fui até a janela: É isso, pensei, sufocar a ressaca, afogá-la na boca cinzenta e azeda da manhã como num cesto de roupa suja. Esse é o preço pago pela droga consumida durante a madrugada, porque a droga tem o segredo que afoga a náusea, o vômito, a acidez desse vinho escuro injetado nas veias desde a noite anterior, então, ao amanhecer, foi puxada a descarga, sentido um só tranco, o estômago a brecar e a gemer no alto de um prédio no Pacaembu e isso foi quase tudo. Quase porque eu ainda não terminara. Porque o vazio, após a descarga, é insuportável. O vaso sanitário ficar deserto e se tem medo de tornar a usá-lo e infectar o mundo inteiro. A náusea que se instala expulsa a razão, amedronta as palavras, e eu precisava falar que daquela madrugada ficou um gosto arrepanhado de sal de fruta, a efervescência cinza pérola do antiácido diante dos olhos e uma tristeza secreta e corrompida por me saber mole, dobrável, e ainda uma vez voltar a fazer coisas que não quero, não preciso, não desejo, todavia o álcool e a droga me levam lá, uma espécie de morte incluída nos serviços de buffet; a cada episódio eu morro, e eu morro, e eu morro de novo, e volto a me assassinar, porque contar essa estória é o mesmo que atacar a mesma mulher há anos, violentamente, por trás, e como se ela fosse virgem, então, o toque no ombro, o hálito amanhecido às minhas costas: Klaus. Haviam escurecido a sala. Silenciosamente, colocou-me o casaco e, na condição de irmãozinho mais velho, carregou-me para longe daqueles perigos. Seu apartamento, por exemplo.

Lembro de um café da manhã numa mesa com toalha de plástico, e um enorme queijo de Minas. Eu estava chapadíssima, achando o queijo muito engraçado e porque não podia aparecer em casa de modo algum naquele estado. Klaus, este então parecia esmagado sob o peso da recompensa. Ele tinha mesmo uma cara amassada de vilão do faroeste depois da última briga, versão piorada entre Jack Palance e John Carradine. Cara picada pelo ressentimento e pela varíola, obtinha dormir com a mocinha sem mais aquela. Era demais. Ele vai brochar, pensei.

Havia sol, mas estava frio e úmido e Poeta, muito solícito, uniu duas camas gêmeas, cobriu-as com mantas, enquanto eu me despia, obedientemente, cumprindo um ritual sem escapatória, filha de Maria, sacerdotisa de Astarté, coroinha alimentado e fodido secretamente pelo padre, eu obedecia, apenas. Fiquei de bruços, fechei os olhos, pensando: o prazer puro, o prazer puro. Não poderia ver aquele rosto agora, seria insuportável, seria inconcebível, e eu acho que ele me ficou agradecido. Mesmo assim não conseguia. Estava submerso em droga e álcool, uma chaga viva de excitação que pulsava e gemia, rilhando os dentes, pobre animal sonâmbulo imaginando-se um ser humano de carne, ossos e fezes, se esvaindo entre minhas nádegas numa tortura aplicada de movimentos ineficientes; uma vez que ele não conseguia, o animal depositava-se como um pedaço morto de carne fria junto ao meu corpo. Vamos liquidar isso, pensei. Sentia-me cansada, nauseada, azeda. A excitação esticava-se como um cordão frouxo contudo sem arrebentar. Vi pela janela a manhã alta, cor de magnésia, e disse: chega, vamos dormir. Às minhas costas, ele desabou, barraquinha de campanha, como se o tempo todo estivesse aguardando a ordem que o libertasse da prontidão. Segundos depois ressonava eloqüentemente. Adormeci pensando onde havia me metido, aquele apartamento de solteiro da Alameda Casabranca tinha algo a ver com um túmulo, gente adormecendo ao nascer do sol, falta só o punhal de prata, mas, por alguma razão maluca, não queria ir para casa e não queria ficar ali. O sono me colocou no lugar certo. Estaria sonhando com um jardineiro espanhol ou com tesouras, não sei, e acordei salgadamente sentindo algo vivo se mover, quente e alerta, entre minhas coxas. Pulei da cama, como se impulsionada por retrofoguetes: fugir, pensava, fugir, correr, vomitar, se vestir. E fui apanhando os destroços das roupas atiradas pelo quarto. Ao subir as meias, espiei com o canto do olho a cara atônita, amassada de Klaus, parecendo um pedaço carbonizado de casca de árvore na brancura de areia dos lençóis. A boca entreaberta não ousava protestar, articular nenhum som, com aquele ar de bagre estúpido, aquele ar de fóssil humano: a qualquer palavra minha, viria a réplica de bernardo-eremita na voz de fariseu sufocado e eu não queria deixar nada claro. A coisa, naquele pé, já parecia suficientemente ridícula, uma pornochanchada sinistra: ele, de pau duro debaixo das cobertas, cara de idiota, observando a mocinha se vestir num desespero vertiginoso, como se perseguida por Jack, O Estripador. Faltava vestir o casaco e me lancei para fora do quarto. Uma empregada velhíssima e cheia de varizes abriu-me a porta da rua. Desci pelas escadas. Nem cogitei estar no 15° andar. Alcançando finalmente a rua, parei ofegante. Porra, estava livre. Leve. Livre. Comecei a rir sozinha: até que fora bem gozado. Cambaleante e feliz, ri por dois quarteirões. As pessoas se voltavam, espantadas. Um perfume de pãezinhos frescos me atraiu para uma padaria cheia de colegiais e empregadinhas. Mastigando um enorme sanduíche de presunto, pedi ao vendedor a lista telefônica. Forrando página por página com lascas de pão fresco, procurei o número do Belo Fascista. Não sabia por que, mas precisava salvar a noite. Alô, uma vozinha sonada gemeu do outro lado. Reconheci Brinquedinho. Escute, princesa, falei, diga ao seu marido que preciso fazer uma substituição (era necessário ir direto ao assunto, nada de formalismos idiotas com a família e os cachorros. Tratamento de choque). O quê? A voz prosseguia estremunhando. Uma outra, de homem, metralhava abafadamente qualquer coisa. Era seca e urgente; falando aos soquinhos parecia martelar ordens. Brinquedinho explicava confusamente algo sobre a namorada de Klaus e uma substituição. Afinal, era uma objetiva formada pelo Objetivo. O que está havendo? Belo Fascista pegara o aparelho. Parecia um bocado irritado. Expliquei da melhor forma. Por fim, convidei-o para tomar café da manhã comigo, ali, na Padaria Flor de Lys, que ficava na rua… Pedi para esperar na linha enquanto ia ver. Quanto retomei o fone, apenas o ruído de discar respondeu melancolicamente ao meu apelo. Belo Fascista não tinha mesmo nenhum senso de humor. Tão bonitinho, murmurei cheia de pena. O pão terminara e enquanto esperava o troco, espiei meu rosto no espelho da balança. Borrado de rímel preto, o rouge coloria mais a face esquerda, olheiras azuladas. Igualzinha Branca de Neve. Esfregar o dedo acentuou a palidez, mas servia. Ainda não dava para espantar as crianças. Na saída, resolvi comprar outro sanduíche para ir comendo no caminho. Esquentara e eu amarrei o casaco na cintura — um casaco lindo, de veludo caramelo — e o pessoal continuou me encarando. Sempre comendo o pão, fui subindo a rua cheia de árvores verdinhas e rendilhada de sol. Lembrei de uma passagem de Faulkner no Som e a Fúria. Afinal, alcancei a Avenida Paulista suando e arrotando salame. Em frente à Casa Vogue — que não é mais a Casa Vogue — tentei pegar um táxi. Nada. Decidi ir andando. Até o Paraíso são quatro quilômetros, mas no plano. Achei razoável. Entrei no Jardim do Trianon. Um pouco de ar puro, pensei, ecologia, patos, marrecos, galinhas, desocupados. Ecologia. Comprei um saquinho de pipoca. Um garoto de seus 17 anos atirava farelo aos perus — detesto esse ar superiormente abestalhado que têm as aves em geral — e perguntei a ele se valia atirar pipoca. Lógico, disse, e enfiando a mão no meu saquinho, retirou um punhado e atirou-o aos bichos. Era um encanto de garoto, um ninfeto dos bosques, cabelos alourados de sol e piscina do clube, a camisa xadrez aberta exibia o peito liso, moreno e uma medalhinha de San Genaro. Perguntei se era italiano. Meu pai, respondeu sorrindo. Falava com simplicidade e delicadeza. Como se fosse a coisa mais natural do mundo topar num domingo com uma garota, às onze da manhã, cara toda borrada de pintura, casaco de veludo amarrado nos quadris, um pão semicomido na mão, um saco de pipoca na outra. Ele era a própria manhã: jovem, fresco, belo, puro. Me senti mal. Queria lavar o rosto, tomar um banho, convidá-lo a passear comigo no Ibirapuera, que é o maior parque que eu conheço, sei lá onde. Melhor ir andando. Ele ficou olhando eu me afastar com simpatia, assim, também sem perguntar nada. Uma névoa de cansaço descia sobre o jardim. Senti-me longe, minha casa longíssimo, o apartamento de Klaus ainda mais longe, em outro país, outro tempo. Ajeitei-me num banco de pedra limosa e dormi. Um segundo depois acordei: alguém me cutucava as costas com um objeto duro e pontudo. Outra vez, pensei. Mas era só uma vassoura e o homem devia ser o zelador do parque. Percebi vagamente que anoitecia.

— Levaram sua bolsa e seu casaco, dona, é bom dar parte na polícia, falava com uma voz monótona, anasalada, repetindo sempre sobre o roubo e a polícia.

— Pra que a vassoura?, murmurei idiotamente, ainda aturdida pelo sono. O corpo dolorido. Meu casaco e a bolsa?

— Você tá mal, hein? Deu moleza, já viu, nego passa a mão mesmo, acho bom dar parte na…

— Já vou, já vou. Como fazê-lo calar? Estiquei as pernas. Intactas ainda minha calça de veludo e a camisa de seda. Bem, foi-se, pensei. No que deu o vampirismo poético. Judas, o obscuro, estaria agora em seu lindo apezinho ouvindo Beethoven e jantando carneiro ensopado com legumes, preparado por Lady Varizes, a copeira. Aquela cara amassada, descomposta, mastigando a sobremesa, aqueles olhos duros, machucados, e o animal adormeceria tranqüilamente entre seus panfletos comunistas, fumando cigarros mentolados. Era demais. Vomitei espasmodicamente num canteiro de hortênsias. Resolvi voltar para casa. Lá pagariam o táxi. Então lembrei: estavam todos viajando. Todos os amigos, todos os sujeitos, todas as amigas, etc. Eu estava sem a bolsa, sem as chaves, com frio, fome e precisando de um banho. No táxi, suspirando, dei o endereço de Klaus.

Este texto foi publicado no livro “Diana Caçadora”, Global Editora — São Paulo, 1986, tendo sido selecionado por Ítalo Moriconi para figurar entre “Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”, Editora Objetiva — Rio de Janeiro, 2000, pág. 393.

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