A criança alheia – Conto de Nelson Rodrigues

Parecia tão desinteressada do noivo, que a mãe a chamou:

– Vem cá, minha filha, vem cá. Detinha aproximou-se:

– Pronto, mamãe.

D. Ofélia pigarreia:

– Posso te fazer uma pergunta? E tu me respondes com sinceridade? Admirou-se:

– Ora, mamãe! Mas evidente! A velha baixa a voz:

– Você gosta de Lauro? Pausa. Detinha limpa o rosto:

– Gosto, sim. Como não? É meu noivo, não é? Devo gostar.

D. Ofélia ergueu-se, descontente. Pôs a mão no ombro da filha:

– Isso não é resposta. Quero saber se você o ama ou não.

A pequena custou a responder: “Não, mamãe. Não amo meu noivo.” Pasmo da mãe:

– Então, você me desculpe, minha filha, mas acho muito feio seu procedimento.

Não ama e vai casar? Por quê?

Trincou as palavras nos dentes:

– Porque quero um filho. E preciso ser esposa para ser mãe!

D. Ofélia pôs as mãos na cabeça:

– Que mentalidade!

O instinto materno

Sempre gostara de criança, mesmo das sujinhas, de pé descalço e cheias de lêndeas e feridas. Aos dez anos, surpreendia e escandalizava parentes e vizinhos, ao dizer: “Eu queria ter um filho, mamãe!” O pai, mordendo um charuto, bufou:

– Mas que palpite indigesto!

Não sei se a própria mãe ou uma tia explicou que para ter filho era preciso casar. Primeiro, casar. Três anos depois, começava a namorar. D. Ofélia zangou-se; passou-lhe um carão: “Ainda cedo, muito cedo. E os estudos? Você se esquece dos estudos? Não, senhora! Onde já se viu?” A menina não argumentou; não discutiu. Disse apenas, quase sem mover os lábios: “Quero um filho, mamãe!” D. Ofélia simplificou: “Tem tempo.” No fundo, porém, estava preocupada. Conversa com o marido. Teve uma espécie de presságio:

– Não sei, não. Mas essa menina ainda vai dar muita dor de cabeça. O velho explodiu:

– Sossega o periquito! Dar dor de cabeça por quê? Que mania!

O namoro

Era uma menina de gênio brando e ótima filha. Geralmente, pensava pela cabeça dos pais. Naquele caso, porém, desobedeceu. Sem dizer nada a ninguém, continuou o namoro, às escondidas, com Lauro. Era o idílio mais doce, mais inofensivo do mundo. Ele, mais velho do que a pequena, dois anos, parecia mais um irmão que um namorado. Uma vez, em que mais afoito, quis beijá-la, na face, ela o travou:

– Olha que eu não falo mais com você! Acovardou-se:

– Está bem, está bem.

Suas conversas pouco variavam. Detinha sonhava: “Eu quero ter muitos filhos. Meia dúzia, no mínimo.” Lauro fazia espanto: “Meia dúzia?” E ela: “Por que não?” Durante uns três anos, esconderam o romance. Mas, uma tarde, alguém surpreendeu-os no cinema. Foi interpelada em casa: “Isso é verdade?” Respondeu:

– É, mamãe. É verdade, sim. Eu queria que a senhora consentisse, porque eu já tenho 16 anos e queria casar.

O noivado

A princípio, houve uma resistência férrea. D. Ofélia estrebuchou: “Onde é que nós estamos? E fique sabendo: você não se governa!” Tratava, ainda, a filha, como se fosse uma menina irresponsável, sem vontade, sem personalidade. Todavia, Detinha, pela primeira vez, enfrentou-a, de igual para igual. Sóbria, mas irredutível, assombrou a mãe com uma determinação de adulta:

– Ou a senhora consente ou eu fujo. Depende da senhora.

D. Ofélia ficou gelada ante o desafio. Teve medo. Sentiu que esta adolescente era uma mulher feita. Num esgar de choro, balbuciou:

– Consinto. Não é isso que você quer? — soluçou, repetindo: — Consinto, pronto!…

Pouco tempo depois, houve o pedido oficial. Mas logo se notou que não havia, nem por parte de Detinha, nem de Lauro, o menor arrebatamento, a menor paixão. Os comentários começaram a surgir: “Que coisa tão esquisita!” Ao lado do noivo, Detinha era a menos enamorada das mulheres. Nem nos seus modos, nem nas suas palavras, a noiva traía o mais vago, o mais tênue carinho. Bocejava muito. Duas semanas antes do casamento, d. Ofélia, intrigadíssima, chamou-a para uma explicação. Detinha pôs tudo em pratos limpos:

– Mamãe, tanto faz que seja Lauro ou qualquer outro. O que eu quero, apenas, é um pai para meus filhos. Só. O resto não interessa nem me preocupa.

D. Ofélia teve uma última curiosidade: “Acho esse noivado, tão sem graça, que vou te fazer a seguinte pergunta: Ele já te beijou?” E ela: “Não.” A mãe:

– Logo vi! Está na cara!

Bodas

Houve o casamento. Quinze dias depois, Detinha bate o telefone para a mãe: “Ainda não estou sentindo nada.” D. Ofélia achou graça:

– É cedo, minha filha! Calma no Brasil!

Mais um mês, e Detinha corre ao médico, com a pergunta nos lábios: “Será que eu estou, doutor?” O médico, que a conhecia desde garotinha, ri, com uma ternura trêmula de avô: “Vamos ver isso direitinho.” Meia hora, depois, ele, tirando a luva, dá a notícia:

– Por enquanto, não há novidade.

Voltou para casa, desesperada. Dramatizou: “Todo mundo tem filho. Será que só eu que não?” Vira-se para o marido, malcriada: “Parei contigo, puxa!” Nervosíssima, espera mais um mês e volta ao médico. No fim do exame, pergunta: “E, então, doutor?” Ele suspira: “Nada.” Quando Lauro chegou, nesta noite, encontrou a esposa aniquilada. Assim que o viu, porém, Detinha encrespou-se:

– Você sabia, porque eu lhe disse, que eu não o amava. Casei-me para ter um filho! Só. E será que eu não vou ter essa sorte?

Ele, muito doce, numa humildade de adoração, pede:

– Vamos esperar, meu anjo. Vamos esperar mais um pouco. Detinha o olha, de alto a baixo:

– Se não me deres esse filho, eu vou te odiar até meu último dia de vida.

O fracasso

Mais quatro meses e nada. Detinha perde-se em especulações definitivas: “Será que o nosso sangue não combina?” Um dia, recebe o marido com quatro pedras na mão:

– Você vai ao médico, ouviu? Eu quero saber se você pode ou não pode ter filhos.

Lauro empalideceu. Começa: “Ir ao médico?” E, súbito, tem, diante da mulher, uma crise medonha de choro:

– Eu não preciso ir ao médico, porque já fui! Não posso ter filhos! Não posso!…

Durante alguns momentos, Detinha contemplou sem pena, com desprezo, e asco, este homem que chorava. Disse, por fim, cruzando os braços:

– Tomarei minhas providências.

Desfecho

Viviam debaixo do mesmo teto, eram marido e mulher e passavam dias inteiros sem uma palavra, um olhar, um sorriso. Até que, uma tarde, ele encontra-se com uma tia de Detinha, na cidade. A velha abre os braços: “Até que enfim!” Estende-lhe a mão: “Meus parabéns!” O rapaz parece espantado:

– Parabéns por quê? E a outra:

– Soube que Detinha vai ter neném!

Largou a tia e veio voando! Chega em casa e surpreende a esposa, na sala, valsando, sozinha, ao som do rádio. Ela estaca, ao vê-lo. Lauro pergunta: “É, então, verdade?” A pequena recua, apavorada: “E se for?” Ele sente que é verdade, sim. Fora de si, aperta a mulher bruscamente:

– Eu amarei essa criança como se fosse meu filho!

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