O chefe apareceu na porta:
— Seu Fortuna! Onde é que está seu Fortuna?
José Penteado Fortuna atirou-se do fundo do escritório, esbaforido.
— Pronto, doutor Benevides, pronto!
E o outro, feroz:
— Entra aqui!
O subalterno, lívido, obedece. Então, dr. Benevides põe as duas mãos nos quadris e vocifera:
— Seu Fortuna, o senhor está pensando que isso aqui é a casa da mãe Joana? Está?
— Eu?! Mas por que, doutor Benevides?
Rápido, o chefe apanha em cima da mesa o livro de ponto. Esfrega-o quase na cara do funcionário. Uiva: “O senhor chegou, hoje, atrasado outra vez!”. Fortuna engole em seco:
— Atraso de condução, doutor Benevides! O ônibus enguiçou, no meio do caminho! — E repetia, sem mais argumentos: — Enguiçou!
O patrão dá um murro na mesa: “Basta! E não me responda, seu Fortuna! Não me falte com o respeito!”. O infeliz, que sempre se caracterizara por uma subserviência e uma passividade inexcedíveis, emudeceu. Dr. Benevides deu a última palavra:
— Fique sabendo do seguinte: se o senhor continuar desse jeito, abusando da minha paciência, eu o despeço, sumariamente. — Arqueja e conclui: — Pode ir, seu Fortuna!
PERSEGUIÇÃO
Fortuna deixou o gabinete do chefe, desgovernado, cambaleante. Tropeçou em vários colegas, esbarrou-se na sua mesa, que era no fundo do escritório, e só não chorou de vergonha. Não era a primeira vez, nem seria a última que dr. Benevides o destratava dessa maneira bestial, na frente de todo mundo do escritório. O patético do episódio estava na falta de proporção entre causa e efeito. Por que a torva e treda humilhação? Porque ele, Fortuna, chegara dez minutos atrasado. O que são dez minutos? Nada. Acresce que a justificativa do enguiço era autêntica. O ônibus enguiçara, na altura de Machado Coelho. E coisa curiosa: dr. Benevides tratava os demais funcionários com relativa urbanidade. Com o Fortuna, porém, era uma fera, fazendo verdadeiros cavalos de batalha por coisas mínimas, bobagens à-toa.
Desesperado, ele apanha uns papéis. Nisto, aparece um contínuo de uniforme:
— Estão chamando o senhor na portaria.
Larga tudo e vai atender. Era sua esposa, Marion, num costume cinza que comprara recentemente num crediário. Beija-a na testa e, numa angústia ainda maior, leva-a para um canto. Perto do bebedouro, ele resume o incidente atroz: “Não te disse que esse cretino estava de marcação comigo?”. Marion, solidária, trinca a ofensa nos dentes:
— Cachorro!
E o marido, na sua fúria de pusilânime: “Eu, se fosse homem, se tivesse um pingo de vergonha, metia-lhe a mão na cara!”. Teria continuado no seu desabafo se, de repente, a mulher não o cutucasse. Fortuna se vira e logo disfarça: dr. Benevides, que ia saindo, lembra-se de usar o bebedouro. Aproxima-se. Diante do. casal, estaca, esquecido já da própria sede. Pergunta, com alegre surpresa: “É sua senhora?”. Fortuna, alvar, diz que sim. Dr. Benevides inclina-se, beija a mão de Marion:
— Muito prazer, minha senhora. Disponha. Com licença.
CASO SÉRIO
O espanto de Marion foi profundíssimo. Durante meses, a ocupação predileta do Fortuna, em casa, fora dizer horrores do chefe. De tanto ouvir o marido, Marion, que não conhecia o homem, imaginava-o da maneira mais horrenda. Acreditava que o dr. Benevides fosse uma espécie de búfalo, de javali, sei lá. Súbito, vê o patrão do marido.
E cai das nuvens. O fulano tem uma aparência cordial, normalíssima. E mais: dá-se ao requinte de beijar a mão das damas. De noite, quando o marido chegou, ainda humilhado, ainda ofendido, ela teve uma sinceridade imprudente:
— Sabe que eu achei o teu chefe uma simpatia?
Fortuna, que tirara o paletó e arregaçava as mangas, quase a comeu viva.
— Deixa de ser palpiteira! Mania de dar palpites! E fica sabendo de uma coisa: eu tenho que arranjar mediatamente outro emprego! Senão acabo dando um tiro nesse palhaço!
Marion deixa passar. Na hora de dormir, depois de ter enfiado a camisola, a pequena resolve sondar o marido: “Posso te dar um palpite?”. Fortuna está com as calças do pijama arregaçadas até o joelho, pesquisando pulgas nos cabelos da perna.
Rosna: “Dá!”. E ela:
— Queres que eu vá falar com teu chefe?
Fortuna vira-se, e tão espantado que deixa escapar uma pulga laboriosamente caçada. Faz uma série de perguntas, à queima-roupa: “Pra quê? A troco de quê? E que piada é esta?”. Ela tenta explicar: “Afinal de contas, ele precisa saber que você é um chefe de família…”. O marido ri, amargo. Coçando as pernas magras, tem um humor sinistro:
— Olha aqui, velhinha: tu pensas que a besta do doutor Benevides liga pra esse negócio de família, de miséria e outros bichos? Conversa! Um velho descarado que só pensa em brotinhos, que não pode ver uma menina de dezessete anos! Fica bonitinha, sim?
ASSINATURA
Na tarde seguinte, Fortuna volta para casa fora de si. Nas últimas vinte e quatro horas, piorara a situação no emprego. Nunca a assinatura do dr. Benevides fora tão cruel e deslavada. Em casa, diante da mulher, chorou pela primeira vez. Então Marion, que percebia toda a imensa fragilidade do marido, retoma a idéia da conversa da véspera: “Eu falo com o doutor Benevides! Não custa tentar, custa?”. Tanto insiste que, afinal, ele perde a paciência, explode:
— Não adianta, ouviu? Ainda se você fosse uma “boa” espetacular, uma grande mulher, vá lá! Aquela besta só atende mulher bonita. Fora disso, não interessa! Estava tão exasperado que não percebeu a angústia da esposa. Marion, que estava sentada, ergue-se, atônita. Pergunta: “Quer dizer que você me considera um bucho?”.
Ele veio apanhar o cigarro no bolso do paletó. Sem tato, sem paciência, esbraveja ainda:
— Não faz drama. E vamos e venhamos, você não é nenhum brotinho, carambolas!
Pausa. Ela foi apanhar uma costura em cima de um móvel. Suspira: “Talvez você esteja enganado a meu respeito. Quem sabe? Você me acha sem graça. Talvez nem todos sejam da mesma opinião”.
ESPANTO
Durante uma semana, Marion o perseguiu com indiretas, ironias: “Eu não sabia que era uma velha horrorosa!”. E se telefonava para o marido, no emprego, começava assim: “É o bucho!”. Havia entre eles uma crise, que se agravaria pouco depois. Um colega de Fortuna, o Penafiel, funcionário relapso e inepto, acabava de ter um astronômico aumento de ordenado. Fortuna apareceu em casa alucinado:
— Penafiel é casado com uma “boa”. E já sabe: empurrou a mulher para o doutor Benevides e foi batata!
A prosperidade do outro converteu-se num desgosto atroz e pessoal para o Fortuna. Depois do jantar saiu, foi beber. Voltou para casa depois da meia-noite, num estado de embriaguez total. Na sua obtusidade de bêbado avarento, avança para a esposa:
— Se tu não fosses um bucho, eu hoje tinha um big emprego!
SOLUÇÃO
Mais uma semana e acontecem no emprego duas coisas simultâneas e dramáticas: o Penafiel foi despedido e o Fortuna chamado à presença do chefe. Rilhando os dentes, ele faz seus cálculos: “Bilhete azul”. Entra no gabinete do chefe e, dez minutos após, sai de lá transfigurado. No fim do expediente, apanha um táxi e voa para casa:
— Estou com a minha cara no chão, besta! Imagina tu: dobraram o meu ordenado! Sabes que ainda não compreendi? Por quê? Não entendo essa mudança! Marion está pondo verniz nas unhas. Parece achar graça. Diz sem desfitá-lo:
— Eu não sou tão bucho assim!
Então ele compreendeu, subitamente, tudo.