Apareceu na sinuca e fez a pergunta:
– Vocês viram a besta do Gouveia?
Um sujeito, de maus dentes, que passava giz no taco, respondeu:
– Não vejo o Gouveia há trezentos anos! Mas um outro, que vinha chegando, indaga:
– Hoje não é sexta-feira? — e insistiu: — Sexta-feira é o dia em que ele se encontra com a mulher do despachante.
Então, Arlindo, que também era despachante, teve que admitir: “É mesmo! É mesmo!” E, de fato, às sextas-feiras, o Gouveia era uma figura impraticável. Desapareceu, sem deixar vestígios. Mas os amigos, os íntimos, sabiam que ele estava em alguma parte do Distrito Federal, às voltas com uma trintona que, segundo ele próprio, era a sua mais recente paixão imortal. Esse único e escasso encontro semanal era sagrado para o Gouveia. Largava negócios, largava compromissos, largava outras mulheres, para se meter num apartamento, em Copacabana, que um amigo lhe emprestava, ou, antes, que um amigo alugava, numa base de duzentos cruzeiros por vez. Mas como era um big apartamento, com geladeira, vitrola, banho frio e quente, vista para o mar, o Gouveia reconhecia:
– Vale as duzentas pratas e até mais!
Arlindo saiu da sinuca, furioso: “Ora, pinoia!” Fez seus cálculos: o romance do Gouveia com a mulher do despachante começava, às sextas-feiras, às quatro da tarde. Mas a partir das sete da manhã, já o Gouveia não atendia nem telefone, a pretexto de que o amor exige uma concentração prévia e total. Conclusão: só reaparecia, para o mundo, às 11 da noite, meia-noite. Cercado de amigos, costumava dizer:
– Vocês não se admirem se, qualquer dia, eu sair do apartamento de rabecão! Naquela sexta-feira, o Arlindo tinha que resolver um assunto urgente com o Gouveia; e dramatizava: “Assunto de vida e de morte!” Mas o fato é que teve de esperar que o tempo passasse. Às 11 da noite, aparece na sinuca. Mais, dez, 15 minutos, surge o Gouveia. Arlindo atira-se:
– Até que enfim, puxa! Vamos conversar, vamos bater um papo!
Gouveia, cansado, bocejando e com sono, queria sentar-se, queria conversar tomando cerveja. E, então, caminhando, pela calçada, lado a lado com o amigo, Arlindo começou:
– Responde: tens confiança em mim? Admirou-se:
– Por quê?
– Tens?
– Tenho, claro!
Pararam na esquina. Arlindo puxa um cigarro e o acende. Atira fora o palito de fósforo e continua:
– Bem. Se tens confiança, tu vais me dizer o seguinte: quem é essa mulher do despachante? Chama-se como? Eu conheço? Fala! Tu nunca me escondeste nada! Quero saber ou, por outra, preciso saber.
Pausa. Finalmente, o Gouveia balança a cabeça:
– Tem santíssima paciência, mas não abro a boca para falar dessa senhora. É um caso sério, muito sério, que pode dar em tiro, morte, o diabo. Desculpa, mas esse negócio de identidade é espeto.
Arlindo respira fundo:
– Quer dizer que você não diz? E o outro, firme:
– Não. Arlindo põe-lhe a mão no ombro:
– Já que você não fala, falo eu. Tua distinção é inútil. Eu conheço, eu sei quem é essa cavalheira.
– Sabe?
– Sei. Perfeitamente. Sei. Nova pausa. Gouveia arriscou:
– Quem é?
E o outro, baixo, sem desfitá-lo:
– Minha mulher. Sim, senhor. Minha mulher, sim. Gouveia recua, lívido:
– Não, não!
Mas já o outro, rápido, o agarra pela gola. Na sua cólera contida, continua:
– Ontem, dormindo, ela falou num nome. Era o teu. Fui beijado como se fosse você. Então, descobri que a tal mulher do despachante era a minha. E que o despachante sou eu.
Lívido, Gouveia nega:
– Juro! — e repetia: — Juro!
Quis desprender-se, num repelão selvagem. Mas o outro, muito mais forte, o subjugou, com uma facilidade apavorante. E, súbito, Gouveia começou a chorar. Pedia: “Não me mate! Não me mate!” Arlindo larga-o:
– Olha, seu cachorro, não vou matar ninguém, nem a ti, nem a ela. Gosto demais de minha mulher. E gosto tanto, que não te mato, para que ela não sofra. Mas quero que saibas o seguinte — pausa e pergunta: — Estás ouvindo?
Soluçou:
– Sim.
E Arlindo:
– Minha vingança é a seguinte, daqui por diante, sempre que te encontrar, seja onde for, eu te cuspirei na cara. Vai começar, agora!
Era tarde e a rua estava deserta. Foi uma cena sem testemunhas: como um hipnotizado, Gouveia não esboçou um movimento de fuga, nada. E, até, instintivamente, ergueu o rosto, pareceu oferecer o rosto. Viu Arlindo afastar-se, tranquilo e realizado, e ficou, em pé, na esquina, com a saliva alheia, a pender-lhe da face, elástica e hedionda. Finalmente, apanhou o lenço, fino, caro e perfumado, que usava, às sextas-feiras, para o encontro com a esposa do outro; e enxugou aquilo. Saiu dali, desvairado. Perguntava a si mesmo: “E agora? E agora?” O que havia, no mais profundo de si mesmo, era a certeza de que o outro havia de persegui-lo, a cusparadas, até a consumação dos séculos. Nessa noite, não conseguiu dormir. De manhã, com o olho rútilo, o lábio trêmulo, recorreu a amigos comuns, contava o episódio e pedia conselhos. Um, genioso, foi taxativo:
– Se um sujeito me cuspisse na cara, eu dava-lhe um tiro na boca!
Gouveia replicava:
– Mas eu tomei-lhe a mulher! Tu não compreendes? Eu tomei-lhe a mulher?! E o amigo:
– E daí? Tu não és o primeiro, nem serás o último a dar em cima da mulher do próximo! Ninguém é perfeito, carambolas, ninguém é perfeito!
De todos os conselhos recebidos, o mais ponderado foi o de um tio de Gouveia. Eis o que sugeriu o velho: “Emigra, rapaz! Vai para a China, pra Conchinchina! Se não tens coragem de reagir, de partir-lhe a cara, a solução é emigrar!”
Bem que gostaria de fugir, desaparecer. Mas era um fascinado, um hipnotizado. Sempre que via o inimigo, plantava-se no meio da rua e o impulso de fuga morria nas profundezas do seu ser. O outro vinha e, publicamente, cuspia-lhe na face, sem que o Gouveia, ao menos, baixasse a cabeça, desviando o rosto. Já andava com um lenço especial, um lenço sobressalente para enxugar as cusparadas. Mas o pior foi no velório de um amigo comum: Arlindo apareceu e, sem o menor respeito pelo local, veio vindo na sua direção. Gouveia ainda balbuciou o apelo:
– Aqui, não! Aqui, não!
Mas o Arlindo, implacável, cuspiu-lhe, ainda uma vez. Era demais. Alucinado, Gouveia correu de lá. Mais tarde, em casa, meteu uma bala nos miolos.