A parada da ilusão – Conto de João do Rio

A João de Barros

Como tinha sido aquilo! Diante do espelho, a dar um laço frouxo no lenço de seda, Geraldo sorria o sorriso satisfeito e vagamente mau que têm todos os homens quando recordam uma aventura em que foram os mais expertos. Como tinha sido!… O acaso, apenas o acaso. Pobre, sem pretensões, alugara por uma ninharia aquele casinhoto do morro, bem na rua de Santa Luzia, defronte do mar. O mar é um fornecedor de energia. Contemplar as ondas, aspirar o ar infiltrado de salsugem fazia-lhe bem. Depois, acordava cedo, quase de madrugada, e como a vizinhança era quase toda de pescadores, de banhistas, de jovens dos centros de regatas, ia mesmo de camisa de meia, com os pés nus metidos nuns enormes tamancos, ao estabelecimento balneário. Quem o visse grosso, forte, o bigode espesso, a negra cabeleira ondeante, o braço cabeludo, não o diria jamais um estudante de medicina. Havia no seu olhar qualquer coisa dos barqueiros de Nápoles, do langor das serenatas, e na alegria do semblante, na gesticulação, o ar da raça, o ar que não falha. Basta olhar um homem para se sentir donde ele veio. Geraldo começara humilde, de origem italiana. De trabalho em trabalho fizera-se afinal acadêmico, graças à pertinácia da sua inteligência. Mas por mais querido que fosse entre os colegas, era uma delícia para a sua alma ir arrastar as pernas pela madrugada nos corredores da casa de banhos, quase nu, a conversar em napolitano com os banhistas, os tradicionais banhistas há vinte anos os mesmos.

Era tão bom, tão bizarro! A princípio, postava-se no pátio, junto da barraca do gerente, escura de roupas em trouxas com um quadro das chaves e o bico de gás aceso. Era a chegada dos frequentadores. Havia mulheres pálidas, mães de família, acompanhadas de crianças e de criadas, verdadeiros regimentos de cloróticos; havia sujeitos de passo trôpego, reumáticos, beribéricos, talvez tísicos; havia os habituais, senhores respeitáveis, burgueses de ar solene, que tomavam banho de mar desde crianças, aconselhando para todas as moléstias um mergulho no salso elemento; e sujeitos que vinham especialmente para a pândega, as lições de natação, os namoros com apertões debaixo da água, as meninas assanhadas, as cocotes, as cocotes de uma palidez mortal àquela hora… E havia também muita mulher chique, muita mulher de estalo, que os mirones da praia até olhavam de binóculo.

Mas Geraldo não tinha pretensões a conquistas, e aquele espreguiçamento na casa de banhos era apenas uma tonificação para o estudo, que recomeçava horas mais tarde, com o curso dos hospitais, as aulas, os livros. Depois de descansar na gerência ia a trocar palavras com os banhistas, rindo, brincando. Afinal atirava-se à água, no meio da algazarra dos conquistadores e das pequenas, e sempre tímido, só metido com a gente do serviço. Ninguém o tomaria por um estudante e o próprio pessoal da casa tratava-o familiarmente por tu.

Uma vez, estava no corredor estreito e escuro a conversar com o Nicolau, quando mesmo ao pé abriu-se a porta de um dos quartinhos e uma linda criatura loura chamou:

– O senhor banhista, venha cá.

Nicolau adiantou-se.

– Não, o outro. Sim, você mesmo.

Geraldo sorriu enleado. Tomavam-no por banhista! Ele, um estudante, um acadêmico! Mas, ao mesmo tempo que o fato o humilhava um pouco, sentia um desejo imprevisto e romântico de se deixar passar por banhista e ter assim a sua primeira façanha de estudante. Os estudantes são todos levados da breca! Apertou o braço do Nicolau, disse-lhe em calão de Nápoles que o deixasse, e aproximou-se. A dama loura estava já vestida para o banho.

– Não quero mais aquele banhista velho. Ha cinco dias que tomo banho e logo no primeiro pedi-lhe conservar-me o quarto seco. Não ha meio. Veja só. Fica você. Quer?

Geraldo curvava-se, sem uma palavra. A dama loura abriu a bolsa de prata, tirou uma nota.

– Tome. Não quer receber? Ora esta! Receba. Para esquentar. Ande lá.

– Grazzie, signorina…

– Diga: é italiano?

– Io sono venuto da Napoli fa tre anni…

– Ah! bem. E quantos tem de idade?

– Vinte e due.

A dama loura olhou-o profundamente, teve um leve suspiro, e ainda indagou

– Como se chama?

– Túlio.

– Venha dar-me banho.

Infinitamente alegre com a aventura, Geraldo seguiu para o oceano a dar banho na dama loura, e quando voltou estava a arrebentar de riso. Não é que a mulherzinha o tomava mesmo por banhista? Entretanto, o imprevisto do caso acendia-lhe o desejo de continuar. Sim, continuaria. E falou ao dono da casa de banhos. O homem, um italiano velho, não gostava de patifarias no estabelecimento. Mas, como era para ele, Geraldo, consentia. Os outros riam a perder, um pouco envaidecidos porque, afinal, um estudante era tal qual eles. E Geraldo, que não dissera a coisa na escola por um certo pudor, não faltou mais. Logo cedo lá estava no estabelecimento, de pés nus, calção de meia, camisa aberta. A dama loura chegava sempre às seis e meia.

– Então, Túlio, o meu quarto?

– Pronto, patroa, prontinho.

No fim do quinto dia, ele fazia tão bem o papel de banhista de opereta, que ela lhe disse o nome era Alda Pereira, brasileira, do sul, tinha vinte e sete anos, e um protetor sério, o senador Eleutério, que a tomara depois da separação do marido. Dizia essas coisas naturalmente, aprendendo a nadar.

– Ai! não me afogues, rapaz. Morrer aos vinte e sete anos…

Ou então:

– Palavra de rio-grandense e de Alda Pereira que aprender a nadar custa!

Ele sorria, queria leva-la para longe.

– Não, que o senador Eleutério pode saber; e eu, meu filho, depois que me separei do meu marido, tenho muito medo do ciúme…

Uma suave intimidade brotava aos poucos daquela hora de banho.

Ele procurava termos vulgares, copiava o rir dos outros, dizia coisa grossas com um ar ingênuo, o seu tom de analfabeto, e ela parecia ter cada dia mais confiança. Já se encostava ao seu ombro, já lhe agarrava o pulso potente de certo modo. Uma vez perguntou-lhe:

– Você, um rapaz inteligente, porque não muda de vida?

– Para que, signorina? Aqui vivo, aqui hei de morrer…

– Criança! E não tem aspirações?

– Não, signorina!

– Aposto que nem sabe ler?

Ele parou um instante atônito. Estaria ela a brincar, já sabedora de tudo? Seria o caso de avançar e não gozar mais o prazer de ser conquistado. Mas Alda tinha uma expressão de tão velutínea piedade, que não hesitou na farsa.

– É verdade. Nem sei ler.

– Meu Deus! Um rapaz de vinte e dois anos que não sabe ler!

Os seus olhos nesse dia tornaram-se mais úmidos, e ao rebentar de uma onda na ponte ela se deixou positivamente cair no seu largo peito. Não tinha dúvida! A mulher amava-o como certas damas amam os impetuosos adolescentes das classes baixas; a criatura era uma nevrosada romântica. Decididamente estava de sorte.

No dia seguinte, à saída, Alda Pereira indagou:

– Ó Túlio, quereria você aprender a ler?

– A signorina paga o professor?

– Ensino eu mesmo.

– Então quero. Onde?

– Vá á minha casa. Logo, à noite, às sete; é a melhor hora.

Ele arranjara um dolmã de brim, um capote comprido; comprara o lenço de seda e um chapéu desabado para aparecer com a cor local. E fora. A dama loura habitava, numa rua transversal à Lapa, uma casa elegante e discreta, com duas criadas apenas. Fizeram-no entrar para uma saleta de estilo moderno, em que os móveis eram incômodos e as paredes tinham mulheres de túnica soprando trombetas. Alda lá estava.

– Entre, Túlio. Nada de acanhamentos. Francine, deixa a porta aberta… Sabe que já lhe comprei o seu livro? Sente-se, menino, sente-se…

Evidentemente, ela estava comovida, com um riso nervoso, as faces coradas. Ele achava aquilo deliciosamente ridículo. Outro qualquer teria avançado; a sua natural timidez, a pretensão de levar a cabo uma fantasia romântica inibiam-no de um movimento de ataque. E parecia-lhe o cúmulo aprender o alfabeto ensinado por aquela interessante mulher, tal qual nos vaudevilles franceses, numa cena de burla. Sentou-se. Ela mostrou-lhe o livro na mesa, aproximando a cadeira do outro lado. E começou a ensinar, com a voz molhada de mistério.

– Que letra é esta?

Geraldo fazia-se inteiramente bronco, curvava-se muito para sentir os louros cabelos dela roçando-lhe ao de leve a fronte. Às vezes as mãos se encontravam. As dela estavam geladas. As dele eram de brasa. Ao fim de uma hora, ela disse num suspiro

– Bom, vai embora.

Ele quase não podia falar. Curvou-se mais, respirando forte, e ia toca-la, quando ela chamou:

– Francine, acompanha o Túlio até á porta…

Como saiu ele furioso! A sua vontade foi declarar a verdadeira posição, tomar uma atitude. Mas, para que? Não teria realizado nada! Não a gozaria! Era uma aventura falha. Nunca! Tivesse que estudar o alfabeto a vida inteira -aquela, ao menos, não lhe escaparia. E, desde a madrugada, foi espera-la na casa de banhos, apaixonado. Sim, de fato, apaixonado. Ele não estava senão apaixonado. A paixão é quase sempre o desejo de um triunfo, que se imagina de um certo e determinado modo. Há sempre um vencedor na alma de um amante. Ele queria pregar uma peça. Que peça? Enfim, queria confundir a linda mulher de estranha vontade. E Alda Pereira parecia também ama-lo, porque apareceu de olheiras, com um ar fatigado.

– Sabe que estudei? fez ele, olhando-a fixo.

– Palavra?

– Quer tomar a lição hoje?

– Não, amanhã…

Ele se preparou, e foi. Já sabia o alfabeto. Alda Pereira sorria, enlevada.

– Mas como é inteligente! Vamos a soletrar. Olhe que você pode dar orgulho a um professor.

A aula ia continuar. Ela tinha a cabeça curvada, mostrando a nuca nua. Ele estava encostado à mesa, com aquele tom vulgar e potente, que o seu físico ajudava. A luz era tênue. Geraldo moveu apenas a cabeça e roçou o bigode no pescoço venusto. Ela estremeceu, estendeu as mãos e suspirou como uma rola.

– Ah! Túlio…

Ele firmou os lábios polpudos e apertou-lhe as mãos. Ela se debateu, voltou a cabeça e a sua boca purpurina, ansiosa e ávida, sugou o lábio de Geraldo. Nem uma palavra. Estavam num outro mundo. Ele caiu de joelhos, ela pendeu, rolaram os dois. Era frenética e deliciosa. Deliciosamente deliciosa. A própria paixão a vibrar. E Geraldo voltou ao casinhoto, outro homem, aturdido, sem compreender o que via, a lembrar-se dos seus abraços e das palavras suas:

– Túlio! Túlio! não digas a ninguém! É a minha vida! Lembra-te do que fiz por ti. Só o amor, muito amor…

A vida de delírio começou então. Ela entregava-se e sentia-o como um imenso acorde do seu próprio ser. Cada beijo era uma revelação, cada abraço a dissolução de um mundo. E a necessidade de ocultar de olhares profanos aquele sentimento ainda mais os incendiava. No banho, ela estudava o momento de aperta-lo, de morde-lo, esperava com a porta do quarto entreaberta para um beijo; em casa, as lições de leitura eram a leitura de Paulo e Francesca, no verso de Dante. Jamais, porém, ela mostrava desconfiar da sua verdadeira situação, e Geraldo, sentindo-se indigno de si mesmo, continuava a ser o banhista Túlio, sem forças para dizer a verdade.

Afinal, o senador Eleutério soubera do caso, e, mais pai do que amante, resolvera mandar Alda à Europa, a ver se o escândalo terminava. Alda chorava, queria viver sem roupas, em Santa Luzia, com o seu Túlio, e fora um verdadeiro trabalho o convence-la de uma breve separação.

– Tu queres, Túlio?

– É para teu bem.

– Queres mesmo? É o nosso amor que matas…

Eleutério comprara as passagens, combinara tudo. Era no dia seguinte que Alda partiria. Geraldo, preparando-se para a última visita, relembrava aqueles dois meses loucos de romantismo. Como aquilo fora! Era lá possível prever? Antes, porém, da partida era preciso dizer-lhe a verdade.

Ele ia para o último ato.

Então penteou o cabelo como os banhistas, com muita brilhantina, pôs o chapéu e o capote, consertou ainda uma vez o lenço de seda, e partiu. Alda estava na mesma sala da primeira vez, muito abatida. Estendeu-lhe as mãos e a boca.

– Meu amor… A última vez!

E deixou-se cair.

– Alda, que é isso? ânimo…

– Lembras-te? Há dois meses!… Quanto amor! Quando te vi, desde que te vi, meu amor, amei-te. Que me importava que tu fosses banhista? Se era a tua carne, o teu corpo, os teus olhos que eu desejava, meu adivinhado querido… Nunca, nunca mais sentirei o que senti por ti, no mar, quando te tinha a meu lado, forte, meu, fiel… Dize!… Nenhuma outra será como eu. Pois não?

– Mas, Alda…

– Àquela casa vão tantas mulheres! E tu tens que servir a todas, tens que as segurar, tens que as salvar…

Geraldo, viu que era o momento.

– Alda, tenho que te dizer…

– Não digas! não digas nada!

– Não, há um engano, um engano que não pode continuar.

– Não há, Túlio, não há!…

– Há.

– Pois deixa-o!

– Não. Tu pensas que eu sou o banhista Túlio, nascido em Nápoles.

– E não és? És sim, és o meu Túlio.

– Criança! Eu sou estudante de medicina, chamo-me Geraldo Pietri.

Mas, como Alda recuava, com a fisionomia demudada, Geraldo teve um resto de piedade.

– Sim, Geraldo, estudante, que se fez passar por banhista para te amar…

Um silêncio tombou. Alda sentara-se. Depois, como Geraldo se aproximasse, sorriu, afastando-o.

– Não, senta-te. Ou vai-te. É melhor ires. Vai-te.

– Mas a nossa última noite?

– Vai-te.

– Zangaste-te?

– Não, pensei que tinhas mais espirito. Não tens. Eu sabia, ouviste? Eu sabia desde o primeiro dia, quem eras tu. Se não soubesse, teria perguntado por ti e dar-me-iam informações. Eu sabia. O meu amor nasceu de uma brincadeira. Tudo na vida é ilusão e só a ilusão é verdadeira. A verdade é a mentira porque é o comum e o vulgar. Amei-te, querendo fazer desse sentimento uma parada de gozo superfino em que ambos nos esforçássemos por dar a cada um a ilusão. Nunca se desengana uma mulher porque não se mata a ilusão. Eu amava um ser idealizado, que seria chocante se fosse verdadeiro, um banhista imprevisto, um selvagem, filho do mar e das canções, em ti que o fingias bem. Tu mataste Túlio. Que me importa a mim o estudante Geraldo? Já nem parto. Não é preciso. Adeus! E nunca, ingênuo rapaz, queiras ser verdadeiro nas coisas do sentimento que ama a ilusão.

Geraldo, nervoso, sem saber o que fazer do seu chapéu calabrês, sentia a lamentável, uma curiosa e lamentável sensação de que retomava o seu eu; um eu vulgar e comum. Alda fez-lhe ainda um vago gesto. Na rua, outra vez, envergonhado, furioso, triste, o pobre rapaz deitou quase a correr, com o receio de que o conhecessem ainda mal vindo da parada romântica. E só no quarto humilde é que pode chorar, chorar longamente não ter sabido guardar integralmente o princípio da vida -a ilusão.

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