De sunga vermelha, Antônio arrastava-se pelas poltronas, como uma jiboia. Eu lhe pedia, ação, homem, mas seus gestos frouxos não se retesavam. Também ele sabia vingar-se. Descrevia baixinho meu corpo como sendo uma cruel pistola contra a sua testa, pronta a assassiná-lo. Mesmo assim, porque era cínico, saboreava agradecido o café adoçado com açúcar e ferro gusa que lhe levava à cama, quando o deixava amanhecer em minha casa. Nessas horas, entretinha-se com a minha camisola de crepe negra que devassava um corpo que sua retina arrastaria para o escritório, ou para onde fosse, logo que me deixasse atrás.
Eu queria a luta, sobretudo afiar as unhas na pele humana tão sensível às farpas. Sempre julguei necessárias as pequenas maldades. Como prêmio, Antônio aplaudia-me a elegância que lhe afagava o orgulho. Eu era uma fêmea com medalhas. Ele via-me bela, destinada à fantasia. E, de tal modo, que poderia até, e unicamente sob as asas da fuga e do sonho, importar tecidos do oriente, humanizar a agonia de inventar adornos ao simples gesto de empilhar pedrarias e fios de prata sobre a mesa.
Mas, sempre que Antônio surpreendia-me ao espelho retocando as pestanas, ostensivamente desprezava as minhas veleidades, assim como a própria beleza. Uma vez que ele na terra estava com o único objetivo de atingir a verdade. No meu ímpeto de touro, lá eu o chamava de imbecil. Acaso não havia visto o pavão de porcelana que me decorava a cômoda e que, igual ao homem, uma espécie sem dúvida contraditória, só atingia o esplendor ao arrastar às costas as cores do arco-íris? Ele refutava a comparação. Para começar, a natureza do homem sempre primou pela simplicidade, tão funcional que dispensava adornos. Em todas partes do corpo que se tocassem, logo elas davam acordo de si, e este capricho, sim, bastava ao macho. Gritei-lhe furiosa, e o bigode, como é que você explica este capricho? Ah, o bigode obedecia simplesmente a uma circunstância histórica, às tramas do poder. E, condescendente, perguntou- me, acaso estes fios de vassoura piaçava irritam- lhe a pele?
Eu sabia da arrogância masculina. Assim, desde menina, deixei os homens à minha espera, para que perdessem o brilho da vaidade. E a inquietação pelo meu atraso os deslocasse dos seus sólidos eixos. Queria que, sob a expectativa de um prazer que unicamente se excedia quando cercado de arame e proibições, mergulhassem em uma incredulidade povoada de minúcias vorazes e sem ordem de entrada. Infelizmente, todos eles, educados na lógica, apesar da fome que tinham pelo sangue e pela paixão, não venciam a esplêndida odisséia de uma narrativa inimiga de qualquer sequência e noção de tempo.
Com Antônio, fui implacável. Ao não suportar mais o seu suor que se azedava no esforço de me amar, exigi que raspasse as axilas. Ele reagiu, cheiro é amor, não me amas então? Sentia-se desrespeitado, a sua virilidade ameaçada. Em breve, você exigirá o meu rosto, e o que há de me sobrar? Afinal, obedeceu, sem me perdoar. Vi- lhe o alívio quando o apresentei ao homem que vinha substituí-lo no leito sem ao menos haver suspeitado de uma aliança selada na surdina da noite. Podia agora buscar as mulheres que enaltecessem as virtudes das suas bagas amargas.
Foi assim que fui repelindo aros, anéis, cordéis, barbantes, compromissos. Fugia dos amantes rabiscando a parede com batom: morreu a tia, sou agora rica e independente. Bastava escrever estes avisos, para meu nome surgir no testamento de um parente recentemente falecido.
Comecei a temer uma desculpa que me cobria fatalmente de luto. E como a sorte e os sucessivos mortos já me haviam bafejado com a fortuna, passei a lutar pela conservação da família. Não queria despojar-me dos rastros de uma origem que justamente fortalecia as minhas narrativas, todas impregnadas de disputa, honra aviltada, mortes misteriosas e bodas de Caná.
Ao partir para a França, a família que me restava permaneceu no cais até que recolhessem a âncora revestida de ferrugem, sal e tristeza brasileira. Quem sabe temerosos que ao apito do navio eu trocasse o mar pela terra. Acenei-lhes com dois lenços, cada qual homenageando um ramo familiar. Netuno batizou-me no meio das águas. E o Conde de Chirac livrou-me dos excessos da festa com seu lenço de seda, em seguida propondo-me casamento. Viveríamos na província, sua família tinha o hábito de trancar-se na propriedade rural, da qual saía para lamber as uvas com a língua, os pés, e com a ilusão nascida da vindima.
Apesar de tanta nobreza, recusei um estado que cm nome de vinhos sábios despojava-me da vitalidade. Não era mulher de bordar numa colcha iniciais eternas que me seguissem do casamento à mortalha, sem antes danificar a costura. Dava-me prazer entrar por uma janela e deixá-la pelo calor da casa vizinha. O sol sempre confirmou meu destino andarilho. No alçapão, eu debatia pelos espaços amplos. Desfiz-me dos avós, pai, mãe, maridos, com alpistes e mi- galhas de pão enquanto me afastava.
A prática de quebrar grilhões instruía-me a sucumbir às tentações e ao mesmo tempo substituir o cavalheiro que quisesse no meu corpo constituir ninho, botar ovos de andorinha. Mas, o que podem significar estas minhas modestas aventuras diante das adversidades das telenovelas. Elas, sim, capazes de registrar a vida, impondo suspiros e modelos que, até então, trancados no coração, aguardavam revelação. Chorei quando a Janete Clair obrigou o Maestro di Lorenzo a abandonar o país em busca da própria identidade, a purgar solitário as incompreensões de uma aristocrática família. Quis escrever-lhe, insinuar à autora que se excedia, talvez não se dando conta, e que minha intervenção era amistosa, não pretendia por pura ambição desviar os rumos da sua história.
Confesso que sou vulnerável e cheia de labaredas. Pronta a enfrentar o inimigo com lança e elmo. Mas, foi com astúcia que expulsei o marido da cobertura de Ipanema. Bem que ele não queria sair. Havia avisado, não adianta agir no escuro, ou sob a proteção da vela, ninguém é homem para me expulsar daqui. Marcou-me o braço com a brasa do beliscão e da ofensa. Deixei que saísse vencedor. Durante uma semana jejuei, queria ele repousado sobre a minha fraqueza. Trazia-me frutas obediente à tática de que ao inimigo também se alimenta. E, porque cu mal reagia aos seus cuidados, ele adormeceu. Em verdade, dormia como um anjo quando botei fogo no colchão, na cortina, antes tendo o cuidado de avisar aos bombeiros.
O marido venceu as chamas de cueca. Pessoalmente abri-lhe a porta do elevador para que se salvasse. No pátio, os vizinhos suavizavam-lhe os danos com a certeza de que saberia reconstituir o futuro. Mas, quando o olhei firme, para ele não se perder na piedade humana, e soubesse quem havia ateado fogo à casa, não quis acreditar. Apelou para amigos comuns. Não é possível que ela chegue a tais extremos!
Os amigos batiam-lhe às costas, não podiam inocentar-me. Ou garantir-lhe que eu abdicara da desforra. Viu-se só, acossado pela dúvida e o pânico. Da próxima, usarei outras armas. E, como prova do meu espírito guerreiro, espalhei pelo quarto tesouras, alicates, aparador de grama, um bisturi emprestado. Sob a ameaça da noite, fechava os olhos. Julgava esvair-se em sangue. Resistiu três dias.
O advogado aconselhou-o a não dar queixas. Seria incômodo explicar que a mulher, para livrar-se do marido, incendiara o apartamento. Melhor largar os bens com ela e aceitar a versão do acidente e a apólice da companhia de seguros. Ao arrumar a mala, ele quis despedir-se, sejamos civilizados. Não sou civilizada nesta cidade desnaturada, e recusei a reconciliação. Dois anos depois enviei- lhe uma corbelha de frutas, legumes e salame como presente de casamento. E o bilhete, e para você não passar fome, agora que sustenta duas casas. Ele telefonou, você não toma jeito, ouvi-lhe a respiração acelerada.
O amor para mim nunca ultrapassou uma estação. Eu resplandecia no verão, as narinas mergulhadas na maresia, tudo me impulsionando a viajar. Quando obedecia, sempre prometi festejar a minha volta aos primeiros sintomas da primavera. E constantemente telegrafava, não queria a família ansiosa pelo inventário.
Os amigos sempre aceitaram a versão que faço de mim mesma. Foram eles os primeiros a saber do meu rapto. O bilhete com o pedido de socorro chegou-lhes dentro da garrafa que fiz deslizar pelo rio atrás da casa. E porque o raptor imediatamente identificou-se como antigo vizinho que me amava de longe data, adverti aos amigos que não se apressassem, viessem um mês depois. De nada eu tinha a reclamar, o tratamento era fidalgo e o corpo flexível do homem sussurrava-me à noite os motivos da violenta transgressão.
Um mês depois, às cinco horas, pedi liberdade ao raptor. Esgotara-se o prazer daquela temporada. Ele não aceitou, será para sempre minha prisioneira. Mas, como aceitar o serralho se tenho a alma cheia de asas? Não há porta e janela da casa que se abram ao seu comando, disse-me, com a cintura vergada pelo acúmulo de chaves. Na bergère, eu sorvia meu gim-tônica: o mundo se arruma mesmo contra a nossa vontade.
Às cinco e quinze, três carros invadiram a propriedade. Aos gritos, reclamavam a prisioneira. A prisioneira era eu cercada de aflições e joias da família de quem me havia acorrentado para ter- me por toda a vida. Os amigos exigiam detalhes. E enquanto eu enriquecia minha lenda com pormenores que se cravassem na imaginação popular, uma súbita dor tomou- me a garganta, foi crescendo o desejo de ser de novo prisioneira da vontade de ferro daquele homem. Quem mais me havia amado com volúpia e exagero a ponto de cortar-me as asas e impedir-me o vôo? Descrevendo tal paixão, a paixão do homem tornava-se a única com que sonhei e jamais vivi.
Corri à sua casa. Sou sua prisioneira. Tenha-me outra vez trancada a sete chaves. Ele não quis ouvir-me. Você negou o meu amor. Mas, cu nem sabia que era amor! É tarde demais para revivê-lo, assistia a televisão de robe vermelho. Insisti, experimente o meu amor, não é assim que sempre me quis, despojada e só arrebato? Pediu licença, precisava arrumar-se, teria visitas naquela noite. Por que deixou de amar-me? supliquei-lhe. Despedindo-se indicou o rio atrás da casa. Se ao menos não tivesse usado o rio da minha infância para trair-me!
Bem que Dona Nadir havia-me avisado, evite banhos de mar, cruzeiros, a água não lhe assentará nesta temporada. Não se entristeça, filha, em breve surgirá o homem da sua vida. No baile de Iolanda, fui de máscara negra. Ela havia dito, venham fantasiados, reviveremos a corte de Pedro I, o libertino libertador. Era fácil prever que as mulheres iriam de Marquesa de Santos, assim fui de Pedro I. Uma originalidade festejada por todos logo que se derreteu minha máscara de cera. Francamente, que originalidade é esta que não ousa abandonar os limites da história oficial do Brasil? E por tais palavras os convivas me aplaudiram.
Unicamente Pedro de Alcântara Miggioro lamentou: se eu fosse embaixador, apresentar- lhe-ia minhas credenciais. E quais seriam, disse-lhe, informada que viera de São Paulo, rebento de família quatrocentona e de imigrantes chegados no último barco a atravessar o Atlântico. Ah, Imperador, isto é segredo de alcova, sorriu-me galante. Aceitei ser o Imperador por dois dias. Ele tocava a campainha e eu confidenciava, através da fresta da porta, não insista, o cerimonial condena-nos à solidão. Rindo, ele afirmava, breve proclamaremos a República.
Aceitei afinal que a Monarquia derrotada regressasse ao berço português. Vivi em seus braços os festejos da revolução republicana. Passávamos em revista a história brasileira à medida que sensibilizávamos cada parte nova dos nossos corpos. Assim, vencemos o verão, a primavera, o outono, o inverno. Não mais recordo a ordem das estações. Tratando-se de Pedro Alcântara Miggioro, o tempo atuava em sentido inverso. E as ondas do amor podiam arrastar- nos por todas as partes.
As amigas ameaçavam: esta felicidade não dura muito. Eu batia-lhes o telefone, o que sabiam da vida, se haviam sempre se alimentado de ervas e de medos. Ele deixava bilhetes debaixo da porta desculpando-se pela pressa que o arrastava à própria casa, onde por dois dias meditaria sobre o nosso amor. Eu me queixava, por que não me entregara o bilhete pessoalmente garantindo-se assim que eu leria suas disposições testamentárias. Ah, se eu visse você, ainda que negligente, triste, pálida, me faltariam forças para penitenciar-me com a saudade. Ninguém melhor que Pedro de Alcântara Miggioro conciliava a transparência dinástica de um vaso chinês com a turva espessura da paixão.
Ventava quando completamos um ano de amor e pensei, sinal de mudança, nenhuma folha velha vai agarrar-se às árvores. Ele veio. Próximos à janela, agarrávamo-nos com temor. O rádio transistor anunciava que a falta de energia devia-se a estragos na estação central. Acho que está na hora da despedida, disse-me em prantos. Chorando, também, recusei, juntos enfrentaremos o destino. Não se deixou convencer. Sigo amanhã para a Europa, sinto-me já no exílio, um rei destronado. O que houve para querer ir tão longe, levando às costas, em roteiro inverso, as naus de Cabral, cujos nomes esqueço agora?
Pediu desculpas, apesar do nosso amor, jamais lhe contei a minha vida. Fiquei abalada, que vida havia que eu ignorava? Janete Clair vencia onde eu não podia triunfar. Então, você é o meu Maestro di Lorenzo, também em busca de identidade? Recusava-se a depor. Não insista, por favor, um segredo perde suas propriedades quando conhece a voz humana, ou transforma-se em texto.
Pedro de Alcântara Miggioro escapava-me dos dedos. Vou ao encontro do destino, ouvi suas últimas palavras. As amigas afugentavam as amarguras rondando pela primeira vez o meu prato de sopa. Não quero ser amarga, não quero ser amarga, divulguei. Refrescavam-me a testa com pano molhado, enquanto eu pregava o dilúvio, as águas por todas as partes. Desesperada, ameacei alguns lares com a minha luxúria. Para logo devolver arrependida o pecador ao tálamo conjugal.
E quando terá o próprio lar? pediam-me que eu sossegasse. E o que é o lar? Este enigma que vocês me trazem à porta como se eu já não tivesse um abrigo sobre a cabeça? Trata-se de uma mistura de tijolo com afeto, disse Antônio, agora de axilas abastadas. Sorvíamos chá debatendo o dissabor do sofrimento. Você foi perder justamente o único homem que amou.
E se não o tivesse amado, ainda o teria aos pés? Antônio tranqüilizou-me, certamente eu o teria derrotado. Sílvia uniu-se a nós para o chá que esfriava. Dizem que ele está em Paris, age de modo a que pensem que ainda não chegou, nem as malas desarrumou. É verdade? Que me trocasse por Paris, posso até perdoá-lo. Agora, abandonar-me para não estar em lugar algum, fingindo que Paris não existe, isto é uma indignidade. Seguiremos para a Europa. Vocês são meus convidados.
Antônio procurava Pedro de Alcântara Miggioro obedecendo às senhas transmitidas por amigos que defendiam o anonimato. Nosso encontro devia, pois, ser casual. Numa esquina, ou bar. Durante uma semana as pistas terminavam em casas vazias, ruas sem esperança, e no ar o cheiro da sua lavanda. Até que o contínuo da embaixada brasileira, atraído pelo dinheiro prometido a quem me fizesse ver o fugitivo cara a cara, garantiu-nos: depressa, ele toma o trem das sete para Roma, e não volta mais.
A locomotiva estava prestes a partir. Pedro, Pedro, onde está você, as vozes de Antônio e Sílvia engrossavam a minha, para constituirmos um alto-falante. Pedro veio à janela, esforçava- se em responder se amara Paris ou não, se me havia deixado por aquela cidade, e se acaso a tinha para sempre aninhada em sua memória. Tocando-me os dedos com zelo, assegurou-me uma felicidade intraduzível em palavras: saberei de Paris quando estiver em Roma: não há outro modo de descobrir onde se esteve senão afastando-se do objeto de nossos sonhos: é assim que, neste instante, estou vivendo o nosso amor, agora que tudo está terminado.
A fumaça do trem e as lágrimas não me deixaram apreciar sua gravata, seus últimos gestos, enumerar-lhe o número de malas. Chorei até o hotel. Antônio e Sílvia tomavam-me a mão: o que lhe disse Pedro de Alcântara Miggioro para sofrer tanto? Custei a falar, ele me amará para sempre, a mim e a Paris. Somos sobras do mesmo sonho. No Leblon, eu pedia, agora que este amor é eterno, não nos preocupemos mais com ele. Desfrutava do orgulho de ser amada até a morte.
Após o casamento de Antônio e Sílvia, dispus-me à aventura. Bastou estacionar o carro em cima da calçada, para o guarda me multar. Ele redigia com a firmeza de um braço forte. Quem sabe ali estava o modesto aceno da liberdade. Por onde é a sua ronda nesta noite de lua? Sim, para que eu o socorra dos perigos, perguntei. Ele deteve o lápis no ar, suspendeu a multa e deixou-me na portaria. A solda de chumbo interposta entre nós não cedia à alta temperatura, eu estava entrincheirada na riqueza.
Acordei testemunhando contra os meus interesses. Mereço um tribunal, mas que crime poderia incriminar-me e ao mesmo tempo acelerar um processo condenatório? Mas, quando uma amiga insinuou que a vida faz sofrer sem merecimento, protestei. Pedro de Alcântara Miggioro foi o melhor sofrimento de minha vida. E ela, quem sabe ele volta ainda. Nunca, eu não o aceitaria. Comove-me a sua memória, jamais a sua presença.
Disposta a punir-me com os limites do meu domicílio, arrumei os móveis de maneira a esbarrar em todos sempre que deslocasse pelo apartamento. Queria corredores estreitos, progredir pelos labirintos. As visitas aplaudiam os obstáculos vencidos. Mas eu via a minha vida empobrecer-se entre a beleza, o brilho e a audácia. No domingo, desmanchei a decoração da casa. Lá estivera eu novamente a brincar com o gênero humano. E telegrafei à Janete Clair: você tem razão, a alma brasileira revela-se precisamente debaixo da Ponte dos Suspiros do Recife, e isto enquanto os esbirros assassinam princesas de sangue real, mergulhando nas águas do canal as carnes jovens e iludidas: agradeço por dizer-nos o que somos, considerando-se que é tudo o que nos permitiram ser: com admiração, disposta sempre a defender os seus enunciados estéticos ao preço do meu sacrifício, subscrevo-me: PN
Batizei num domingo a filha de Antônio e Sílvia. Com que água, do Nilo, Jordão, Negro, ou Sodoma? Apreciaram o humor cingido à história do homem, de que não me livrava mesmo nos momentos solenes. Meu regalo foi régio, um apartamento lacrava a emancipação da menina já na pia batismal. Ambos abraçaram-me, é sua filha postiça, não é? Tratei de desaparecer seis meses, há muito descuidara-me da realidade. E porque, diferente das outras vezes, não enviei notícias, os amigos me temeram sacrificada por uma tribo da Oceania.
E por que não estaria ela em Nova York? Impossível, alguns respondiam, é a cidade da comunicação, o paraíso do videocassete. Ali, você mata sabendo que estão filmando. A família ameaçou ir à polícia. Antônio e Sílvia resistiram, como penhoraremos os seus bens, se ela ainda vive, em algum rincão da terra seu peito agita-se com paixão?
Em novembro, fui recebida com choro, poeira e queixas. Em represália, adoeci. Estava necessitada de caldos fortes e enfermeiras atentas. A enfermeira do dia é delicada, corteja o sol. A da noite interrompe-me o sono temerosa de que eu perca interesse pela vida. A ambas agradeço um tratamento que me prende à cama após desertar dos grandes feitos. Este verão me terá em seu leito ardente. Até sarar de uma voracidade que me arrancou pedaços da unha sem anestesia.
Apesar deste exílio parecido ao de Pedro de Alcântara Miggioro, recordo às vezes, mesmo contra a minha vontade, o bilhete dentro da garrafa que deslizou pelo rio atrás da casa do meu antigo seqüestrador. Redigi seu texto com as mãos trêmulas, o bico da pena ameaçando secar. Suas palavras ainda me assaltam, como se as tivesse escrito hoje: em trinta dias exatamente, às cinco horas, quero três carros resgatando-me à porta da mansão cuja localização segue no desenho ao lado, pois menos de três viaturas não assustariam o corpo rijo de carvalho que me mantém prisioneira: a vida na prisão é doce, enquanto não se sabe prisioneira: até quando suportarei o regime de amor e de batata no almoço e no jantar? venham dentro do prazo ajustado, nunca antes: escutem, por favor, as batidas do meu coração, deixo que se agite para também vocês se beneficiarem das suas intensas manifestações de vida: se for possível, escrevo-lhes amanhã renovando o pedido de socorro e conclamando este insano bem- querer à existência: a vocês, meus leitores de sempre, da sua amiga: PN
Ah, naquele tempo eu estava viva.