Abolindo a abolição – Crônica de Moacyr Scliar

“Promotora vê quadro de quase escravidão: operação libera 38 em fazenda no Espírito Santo.”
Brasil, 24 jun. 1999

Tudo começou quando eles foram procurar emprego na fazenda de café. O proprietário disse que sim, que podia empregá-los. Só não poderia pagar muito. Que decidissem: era pegar ou largar, ame-o ou deixe-o. Eles se olharam. O que podiam fazer? Aceitaram.

Passado o primeiro mês, o proprietário reuniu-os e disse que os negócios não andavam bem, que a cotação do café estava em baixa no mercado internacional. Propôs diminuir o salário, coisa pouca, e não por muito tempo. Eles se olharam, mas o que podiam fazer? Aceitaram.

Um mês depois, o proprietário reuniu-os de novo. Os negócios continuavam ruins, de modo que ele tinha outra proposta: atrasaria os salários, indefinidamente, mas em compensação forneceria alojamento e comida. O alojamento não passava de um telheiro com um estrado e colchonetes; banheiro não havia. Quanto à comida, como disse o próprio proprietário, não era coisa para gourmet. De novo se olharam. O que podiam fazer? Aceitaram.

No mês seguinte, o proprietário reuniu-os de novo. Desta vez, tinha uma história para contar.

Antigamente, disse ele, os trabalhadores não cobravam salário, nem tinham previdência social, nada dessas coisas. Em compensação, recebiam casa e comida dos seus donos, para quem trabalhavam por toda a vida. Quando morriam, os filhos continuavam o mesmo trabalho, e assim por gerações e gerações. Mas um dia tinha surgido uma lei – essas leis que fazem por aí, vocês sabem – e tudo havia mudado. Os trabalhadores agora recebiam pagamento. E, recebendo pagamento, começaram a exigir mais coisas, mais direitos. Resultado: desemprego. Ninguém mais tinha segurança.

Eu proponho, disse o homem, que a gente esqueça essa tal de lei. Vamos colocar uma pedra em cima disso. Vamos voltar aos bons tempos, àqueles tempos em que não se discutia por essa coisa tão mesquinha chamada dinheiro. Vocês receberão para sempre alojamento e alimento. A única coisa que peço é: esqueçam salário, esqueçam o resto. Esqueçam o mundo lá fora. O mundo de vocês agora é esta fazenda.

Como ele disse depois ao advogado, fora um belo discurso, e os trabalhadores estavam quase convencidos: já estavam se olhando, já estavam concluindo que nada podiam fazer, que teriam mesmo de aceitar a proposta. Mas aí veio o promotor com aquela história de direitos. O problema com o promotor era esse: ele não sabia como era bom o passado, o passado que existira antes das leis.

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