Almoço na serra no domingo de carnaval – Rubem Fonseca

Na subida da serra uma mulher pequena, de chapéu de abas largas, fez sinal pedindo carona. Usava minissaia de cetim, bustiê de lantejoulas vermelhas, luvas brancas longas quase até o cotovelo.

Parei o carro.

Vai subir? Voz de falsete. Dentes ruins. Batom vermelho brilhante. Tinha qualquer coisa numa das vistas, ligeiramente fechada e remelenta. Pestanas pintadas de rímel.

Não. Desculpe, eu disse acelerando o carro.

Se fosse uma mulher eu a teria levado comigo. Vergonha de dar carona para um travesti? Medo do travesti? Ele era tão frágil mas eu tinha medo dele? Era isso? Ou eu me aborrecera por ele não ser uma mulher e eu queria que o destino pusesse na minha frente uma mulher que me levasse para outro lugar que não aquele para onde eu estava indo?

Ao ver o muro de cerca viva senti um aperto no coração. Quando atravessei o portão de pedra comecei a chorar. Dei marcha a ré e segui pela estrada. A última vez que eu havia chorado fora há tanto tempo que eu até tinha esquecido como era.

Voltei, agora podia olhar a casa sem sobressaltos. Aquelas árvores estavam ali desde o início do mundo, e também os pássaros, os sapos, os esquilos e o lagarto preto de manchas amarelas que habitava a beira do rio.

A senhorita Sônia está na piscina, vou conduzi-lo até lá, disse o copeiro que me recebeu na varanda da casa.

Não é preciso, sei o caminho.

Carros nas alamedas. O gramado e o jardim estavam bem-cuidados. Havia caramanchões novos, cobertos de trepadeiras.

Parei a certa distância da piscina cercada de mesas cobertas por enormes guarda-sóis coloridos. As pessoas em trajes de banho deitavam-se em espreguiçadeiras, nadavam, conversavam, bebiam e comiam salgadinhos servidos por garçons de preto. “Apenas um grupo de amigos mais chegados”, dissera Sônia. Eram umas cem pessoas.

Você que é o Zeca?, perguntou uma garota vestida com uma pequena tanga. Eu sou Suely, irmã da Sônia, ela está na piscina. Por que você não veste a sua roupa de banho?

Eu não trouxe.

Suely segurou a minha mão. Vem que eu vou te arranjar um calção. Não, eu não quero tomar banho de piscina.

Você está muito pálido, com uma cor horrível. Não quero, obrigado.

Quer beber alguma coisa?

Não obrigado. Me faz um favor? Chama Sônia pra mim.

Eu não queria ser apresentado àquela gente, sorrir, apertar mãos.

Sônia veio correndo. Seu corpo queimado de sol parecia feito de cobre. Quis me beijar na boca, mas eu virei o rosto.

O que é? Está zangado? Não.

Vai botar o teu calção de banho.

Eu não trouxe calção de banho.

Eu te arranjo um. A água da piscina está uma maravilha. Eu não quero tomar banho de piscina.

Você está branco demais. Destoante. Destoante do que ou de quem?

De mim, por exemplo. Sônia riu, dentes muito brancos. Vem que eu quero te apresentar minha mãe e meu pai. Depois.

Eles querem muito conhecer você. Depois.

O que é que você tem?

Nada. Tua casa é bonita.

E você ainda não viu tudo, este sítio é enorme. Está vendo lá adiante? Tem um bosque tão grande que a gente até se perde dentro dele. E do outro lado do rio tem um pomar com mais de mil árvores frutíferas. Só jabuticabeiras são mais de cem.

Surgiu ao nosso lado um homem de calção de banho, segurando um copo. Ele colocou a mão com o copo no meu ombro e a outra mão no ombro de Sônia.

Então este é o jovem que está namorando a minha filha? Onde é que está o seu copo? Não está bebendo nada? E o seu calção?

Sem esperar resposta tocou com o copo frio no meu braço, sorriu e afastou-se. Adiante parou para falar com um casal.

Eu estava morrendo de saudades, disse Sônia. E o lagarto da beira do rio?
Sônia me olhou sem entender, por alguns segundos.

Ah! o lagarto. Papai mandou o caseiro matar, a mamãe morria de medo dele. Como é que você sabia que tinha um lagarto aqui?

Esta casa já foi minha, eu disse. Passei minha vida nela.

É mesmo? Que coisa mais engraçada. Nós compramos o sítio no ano passado. Então foi de vocês que nós compramos?

Olhei seu rosto perfeito, saudável. Fizeram uma pulseirinha de relógio com a pele do lagarto?, perguntei.

Papai, vem cá, que coisa mais engraçada.

O pai de Sônia parou de conversar com o casal e se aproximou de nós. Você não está bebendo nada, meu rapaz? Não quer um drinque?

Papai, você sabia que esta casa já foi do Zeca?

Não, não sabia, disse o pai de Sônia, eu não cheguei a conhecer ninguém de sua família, toda a operação foi feita através de um corretor, logo que chegamos de São Paulo. Soube do que aconteceu com vocês. A vida é assim mesmo. Mas vejo que você suportou bem os golpes. Vá botar o seu calção, rapaz. Arranja um drinque para ele, Sônia.

Outro sorriso, nova retirada. O pai dela não parava. Cem convidados.

Vocês fizeram uma pulseirinha com a pele do lagarto? ou uma sandália? ou foi uma carteira de notas para o papai banqueiro?

Meu bem, o que está acontecendo com você? Nunca te vi assim.

Estávamos andando por dentro do bosque, indo na direção do rio. Sônia havia colocado um roupão sobre a roupa de banho. Paramos em frente à cachoeira. Tirei o roupão de Sônia e coloquei-o no chão.

É pena que você não esteja de calção, podíamos tomar um banho de cachoeira, disse Sônia aflita.

Deita, eu disse.

Não, meu bem, por favor.

Agarrei os ombros de Sônia e sacudi o seu corpo. Por favor, você está me machucando.

Obriguei-a a deitar-se. Arranquei o seu biquíni. Vira de costas, anda.

Você acha que é assim que um homem trata a mulher que ele ama?

Cala a boca, eu disse, agarrando-a com força.

Quando acabei, levantei-me e fui embora sem olhar para trás. Entrei no carro.

Desci a serra velozmente. Queria ter coragem para jogar o carro num precipício e acabar com tudo. Mas apenas chorava. Duas vezes no mesmo dia! Que inferno estava acontecendo comigo?

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