Anemia perniciosa – Conto de Nelson Rodrigues

By | 10/05/2022

Apanhou o envelope que acabava de chegar e, bocejando, fez a si mesmo a pergunta: “De quem será?” Antes de começar a ler, procurou, com os olhos, a assinatura. E teve, então, a surpresa: era uma carta anônima, a primeira que recebia em seus 36 anos de vida. Com uma sensação de mal-estar, quase de medo, leu a primeira frase: “Você é um idiota muito grande.” Continuou: “Sua mulher passa você pra trás, direitinho.” O missivista desconhecido continuava nesse tom e terminava com o conselho prático: “Deixa de ser burro e abre o olho.” Sem querer, fez a meia-voz, o comentário irreprimível:

– Cachorro!

Leu e releu aquilo, dominado por uma raiva cega e impotente. Logo, porém, se convenceu de que era inútil um rancor sem destinatário. E, então, andando de um lado para outro, pensou na mulher, tão linda e tão nova, com seus modos sóbrios e bonitos de juvenil senhora. A verdade é que, casado há dois anos e alguns meses, punha a mão no fogo pela esposa. Chamava-se Maria de Lourdes e não se podia exigir mais de uma criatura. Sempre com a mesma cara, terna e alegre, incapaz de irritações, de grosserias. Leu ainda uma vez a carta anônima e, depois, começou a sua minuciosa destruição. Rasgou o papel infame em mil pedacinhos. E só então respirou, mais ou menos compensado. Nessa noite, quando chegou em casa, foi mais amoroso do que nunca. Entrou e, sem uma palavra, agarrou a mulher e a beijou com uma ferocidade de lua de mel. Dir-se-ia que, nessa efusão tremenda, queria desagravá-la da ofensa que ela ignorava. E mais: fê-la sentar-se no seu colo e teve o seguinte arroubo:

– Tu és a mais pura das esposas!

Ainda no namoro, ela o advertira: “Sou normal.” E acrescentou, com jeito: “Lugar errado, não.”

O amigo

No dia seguinte, porém, fez o que não devia. A caminho do ônibus, passou pela casa de um vizinho e amigo, o Godofredo. E teve a inspiração súbita: parar e chamar o Godofredo, para irem juntos. De fato, o amigo já estava de saída. Com pouco mais, os dois, lado a lado, caminhavam, na calçada. E, então, um pouco constrangido, Alcides fez a pergunta: “Que ideia faz você das cartas anônimas?” Godofredo parou, em plena calçada. Era um cidadão que tinha teorias, as mais extravagantes, a respeito de tudo. Viu, na pergunta feita, o ensejo de brilhar. Então, começou:

– Respeito profundamente as cartas anônimas. São as únicas que dizem a verdade!

Alcides gaguejou, atônito: “Como?” O outro, inflamado, continuou:

– Claro! O fato de não ser assinada é uma garantia de veracidade. O anônimo não mente!

– Você acha?!…

E o outro categórico: “Lógico!” Nessa altura dos acontecimentos, Alcides começou a transpirar. Sabia que o Godofredo era um pobre-diabo, mas… Quase no fim da viagem tomou coragem e fez mais uma consulta ao outro: “Dá um palpite. Eu tenho um amigo assim, assim…”

Godofredo se antecipou:

– E teu amigo recebeu uma carta anônima? Exato. Uma carta dizendo que a mulher dele o traía, etc., etc. Mas eu conheço o casal: é uma senhora honestíssima!

Godofredo teve um risinho: “Meu caro, a mulher é honesta até o momento em que… Compreendeste?” Alcides já não sabia o que dizer. A lógica trivial do outro o intimidava e emudecia. Antes de se despedirem, Godofredo sugeriu:

– Diz a teu amigo o seguinte: para simular uma viagem. Isso é um velho golpe que ainda produz seus resultados.

– E depois?

– O resto é claro como água: às 11 horas da noite, quando a vizinhança estiver dormindo, o cara há de aparecer… E teu amigo, se estiver nas redondezas, poderá cavar um flagrante em grande estilo!

Dúvida

Diante da sugestão, Alcides não disse uma, nem duas. A verdade é que estava fora de si, praticamente incapaz de ligar duas ideias. Só no escritório é que, mais lúcido, pôde raciocinar. E deliberou, em termos definitivos: “Se eu fizesse isso, seria um patife, um canalha!”

A simples perspectiva de duvidar de Maria de Lourdes parecia-lhe uma indignidade. De noite, porém, ao entrar em casa, dizia:
– Imagina tu o abacaxi. — Ela fez, cordialmente, a pergunta: “Qual?” Alcides, na vergonha antecipada da mentira, anunciou:

– Amanhã tenho de ir a Barra Mansa e passar lá três dias.

– E eu?

Beijou-a na face e suspirou: “Você fica. O chefe vai comigo e…” Maria de Lourdes deu um muxoxo: “Que coisa aborrecida!” Ele, porém, julgou perceber, no tom, nos olhos, em toda a atitude da esposa, um frêmito suspeito. Nessa noite, não dormiu direito. Virava e revirava na cama, repetindo para si mesmo: “Eu sou um cretino!” Pela manhã, a mulher quis levá-lo ao aeroporto. Improvisou uma desculpa e a dissuadiu. Veio o táxi e, com a mala pequena, de mão, partiu. Antes beijara a mulher na boca. Maria de Lourdes insistiu, até o fim:

– Não deixa de me telefonar — e repetiu, sobretudo, a recomendação: — Juízo!

Durante todo o dia, ele pensou: “A mulher infiel não tem ciúmes. E ela pediu ‘juízo!’” Andou pela cidade, sem destino e numa melancolia pavorosa. O pior de tudo era o sofrimento moral: sentia-se infame, sentia-se abjeto. Às dez horas da noite, enfim, um vulto se colocava, debaixo de um árvore, a espreita: era ele mesmo que, de gola levantada, vigiava o próprio lar. De vez em quando, olhava o relógio de pulso. Dez e dez, dez e vinte, dez e meia. Nada, absolutamente nada. O aspecto de sua casa era o mais honesto. Às dez para as 11, ele, saturado da sórdida espionagem, crispou-se de remorso, de vergonha. Para maior degradação, armara-se. E o peso do revólver, no bolso traseiro da calça, era uma ignomínia. Às 11 horas, em ponto, decidiu-se: ia invadir a própria casa e atirar-se aos pés da mulher. De joelhos, confessaria tudo, a mistificação da viagem, o aviltamento da dúvida. Abraçado às suas pernas, pediria perdão…

Deu um passo e estacou. Alguém vinha, no princípio da rua: era um vulto masculino qualquer. Enquanto o outro se aproximava, Alcides fazia seus cálculos: “Deve ser o namorado de alguma empregada ou…” Ele quase não respirava e, sem querer, sem sentir, abriu o colarinho, afrouxou a gravata. Pôde, enfim, identificar o transeunte: seu amigo Gouvea que, por coincidência, Maria de Lourdes achava de uma antipatia única. Abafou uma exclamação, quando viu o Gouvea abrir o pequeno portão de sua casa, dele, Alcides, e entrar, com a decisão e a agilidade de quem não pode ser visto. A porta da frente estava apenas encostada: tanto que o miserável a empurrou e desapareceu lá dentro. Durante uns cinco segundos, foi tal o horror de Alcides que quase se sentou no meio-fio. Tinha as pernas bambas e a vista turva. Gemia:

– Miseráveis!

Vingança

Durante quarenta minutos, pensou nos meios e modos de vingança possíveis e imagináveis. Pouco a pouco, adquiriu uma raiva fria, lúcida, como jamais conhecera. A casa continuava em trevas e, súbito, iluminou-se a janela do quarto. O pecado, com luz elétrica, exasperou-o ainda mais, enfureceu-o como uma ostentação de impudor. Então, sem rumor, atravessou a rua. Ainda sem rumor, empurrou o portão e entrou. Colocou-se, de cócoras, junto à caixa de gás, com a seguinte convicção: “Ele tem que passar por aqui…” Esperou uma hora, duas horas. De repente, chegou aos seus ouvidos o riso da mulher, livre, límpido, incontrolável. Doeu-lhe, ainda mais, que ela risse pecando. Mais uma hora e, súbito, sente que a porta se entreabre. Os dois se despediam e… Então, rápido, com o revólver na mão, a maneira de um gângster experiente, empurrou com o pé a porta e entrou. Naquele momento foi o único sereno. Bateu no comutador e iluminou a saleta. Os culpados, apavorados, estavam diante dele. Maria de Lourdes no seu pijama cinzento-claro, leve e transparente. E Gouvea, lívido, tremia, numa pusilanimidade abjeta. Alcides parecia cordial, alegre:

– Bonito! Muito bonito!

Maria de Lourdes, sem desfitar o revólver, balbuciou: “Não me mate!” Foi preciso que Alcides dissesse, rindo: “Matar por quê? Ninguém vai morrer, minha filha…” Virou-se para Gouvea, que tinha na face, na boca, um jeito de choro, fez a pergunta: “Já pagou?” O outro não entendeu. Ele insistiu: “Pague à minha mulher.” E acrescentou: “Minha mulher não fia. Pague, anda.” O pobre-diabo olhou para Maria de Lourdes e para Alcides. Perguntou, quase sem voz.

– Quanto? Veio a resposta:

– Cinco mil réis.

Ainda quis resistir: “Mas eu não posso…” Alcides encostou-lhe o revólver no peito: “Ou paga ou morre!” Meteu a mão no bolso, apanhou a carteira, e escolheu, entre muitas cédulas, a de cinco cruzeiros. O marido comandava: “Entrega à minha mulher. Agora pode ir e passar bem.” Gouvea, sem uma palavra, passou por eles, de cabeça baixa, e correu, pela rua, dentro da noite.

O martírio

Então, começou para o casal uma vida nova. Não tocaram mais no assunto. Ele, porém, apanhou aquela cédula de cinco cruzeiros e a espetou, com o punhal, na parede da sala de jantar, bem no centro. Era notável de se ver. Aquela nota, traspassada, tinha qualquer coisa de lírico como uma imagem de borboleta. Parentes e amigos viam aquilo e não compreendiam. Todos os dias o casal tomava café, almoçava e jantava sob a obsessão da cédula. Mas enquanto o marido comia muito bem, a mulher não comia nada. Vendo os cinco cruzeiros — apunhalados como um coração — seu estômago se contraía numa náusea mortal. Acabou apanhando uma anemia perniciosa. Em nenhum momento, a cédula atravessada deixou de estar presente. Só desapareceu quando a moça, devorada pela anemia, expirou, afinal. O marido foi lá, arrancou o punhal e embolsou a cédula. Alta madrugada, durante o velório dissimulou, entre os cravos e as dálias do caixão, os cinco cruzeiros.

Assim foi enterrada Maria de Lourdes.

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