As quatro penas brancas – Conto de Nélida Piñon

By | 27/12/2022

Eu faço amor só de porre. E você? Eu, na base da água, água do filtro. Foram para o bar. Rubem, o que amava com água, e Pedro, que expelia bagas dê álcool. Beberam até o amanhecer. Para onde vamos daqui? Até a vida do outro lado, disse Rubem.

Em casa, Rubem programou, escrevo o artigo hoje mesmo, à tarde passo no jornal, amanhã estou livre para desaparecer. Pedro apanhou-o pela gola, na portaria do jornal. Não adianta fugir. Sempre que partir para Niterói, vou atrás e não deixo. Teu destino vai cumprir- se no Rio de Janeiro, nas artérias solitárias desta cidade.

A mulher de Rubem exigiu, se não me paga a pensão do mês retrasado, cobro-lhe sem piedade a do mês anterior. Tenha paciência, mulher, eu não posso tirar dinheiro do meu saco, tá. Alice mostrou-lhe o retrato dos filhos. Estão crescendo e você finge não ver. Claro que eu vejo, o Rubinho é a minha cara, a mesma aflição. A mulher disse, te espero amanhã até às sete da noite.

Pediu socorro a Pedro. Depressa, senão a mulher me come. Ora, então coma ela primeiro. Já não tenho mais forças, comi todas as mulheres do mundo. Estou seco como bacalhau. Em Niterói, o pai emprestou-lhe o dinheiro. Mas, tome cuidado, tem caminho de volta. Não estou aqui para sustentar as tuas mulheres. É uma só, pai. E depois, deu-lhe netos, não foi? Não foi o que vocês todos queriam, que paríssemos como coelhos? O problema também é de vocês, gritou com raiva, só diminuindo o tom de voz na barca, bem no meio da baía. De onde olhava a ponte, que merda de elefante eles construíram, quantos corpos sepultados nas colunas de concreto.

Posso sentar-me ao seu lado? De camisa esporte, a calça amarfanhada, o homem vendia amendoim. Rubem olhava a cidade do outro lado. O homem insistia, estou assim agora, mas já fui de andar em boate grã-fina, dar gorjeta, as mulheres vinham lamber na minha mão. Até que abandonei bens, herança, triunfos, os banqueiros perderam a fé em mim. São uns filhos da puta, só têm tesão pelo dinheiro. E estava já no meio da história, quando Rubem decidiu que seguramente a vida daquele homem superava a sua. Comece de novo, pediu. E onde eu estava? o vendedor entusiasmou-se. Na hora em que a tua mãe te pariu.

O homem amarrou a cara. Escuta aqui, quem organiza a narrativa sou eu, escolho a porta por onde entrar e a janela por que sair. Quem não está satisfeito com o volume e a posição das palavras, abandona a sala. E como vou deixar esta merda de sala, a não ser dando umas braçadas por esta baía imunda. E logo recordando o dinheiro, Rubem apalpou discretamente o bolso, a protuberância de que se desfaria na casa de Alice. A mulher roubava-lhe todos os meses o suor mais difícil do seu corpo. Como represália, obrigava-a a arrastar pela vida os quatro filhos que haviam parido em momento de insensatez. Minha vingança é que ninguém se casa com ela, que homem é besta de agüentar os meus quatro filhos, orgulhava-se em dominá-la à distância. Aceitou o amendoim. Qual é mesmo o seu nome? Colombo, o descobridor da América. Rubem mastigava sentindo o prazer do sal. Está gostoso. Eu mesmo preparo. Veja como é a vida, antigamente eu chegava da farra de madrugada. Agora vou trabalhar na mesma hora. Sem dúvida, havia rebaixado na escala social. Mas, tinha certeza de que no seu tempo áureo jamais frequentaria os mesmos bares de Rubem. Vê-se logo que você é um cara teso.

Foi mulher que te depenou? Rubem queria saber. Justamente um amigo que vinha pelas manhãs, sem respeitar o seu sono. Bulhões esfriava o seu café com o próprio bafo. E repetia, salve-me, a aventura de hoje deixou-me infeliz.

Aos sábados, escalavam as montanhas da Gávea, até o vento sudoeste atingir-lhes o coração. Colombo era o primeiro a descer correndo, sob os protestos de Bulhões que exigia tempo para descobrir o céu. Colombo tranquilizava-o com a certeza de que lhe sobrariam dias para conhecer o paraíso. Já na terra1, dizia-lhe, sente- se melhor agora? Tenso, Bulhões lambia a mão com a própria língua. Convencia Colombo a deixar a cidade juntos, seremos felizes em outro lugar. E por que vou te seguir, sou lá tua mulher? Mais que isto, você é meu amigo.

Bulhões ia direto ao seu coração. A mãe botou ali manteiga em vez de uma região rica de veias estofadas, engolindo sangue e sabedoria. E deixava-se convencer. Sobretudo porque as mulheres haviam-lhe afirmado, especialmente na cama, que mais sublime que o amor só a amizade. O amor ficava na cama, nos lençóis sujos. Ele próprio amava com dificuldade, como se arrancasse do sexo uma espinha de peixe.

Diariamente Bulhões vinha alimentar-lhe o sonho. Afirmava, a vida está no vinho e na amizade. E queria Colombo a provar-lhes o gosto. Um dia, engasgado com a côdea do pão, Colombo gritou, já não te suporto mais. Altivo, Bulhões deu-lhe as costas, condenou sua arrogância desmedida. Ele ainda conheceria o sofrimento. Desapareceu uma semana c Colombo passou a contar os minutos de sua ausência, não dormindo depois da hora que ele fizera sua com uma assiduidade impecável. Era como tê-lo ali, apenas sua tristeza fora banida. E confundia toda batida na porta com seu modo de fazer a madeira ressoar. E só não o buscou em casa para não forçar a sua intimidade, embora quisesse pedir-lhe que desrespeitasse o seu sono, mas o completasse. Eu me estava faltando.

Dispunha-se até a segui-lo às montanhas do seu afago, refinar a atmosfera com as narinas dilatadas. O sentimento pelo amigo agarrava-o como erva, confundia-o. Como compreender uma emoção unicamente educada para o regaço da mulher e que, de repente, pula no peito e te exalta, te abandona à mercê das ondas.

Enviou-lhe os bilhetes: 1º peço perdão quantas vezes o seu orgulho assim o exigir. 2º se você não volta, é porque recusa a salvação. 3º quem recusa os recursos de um amigo é imbecil. Logo, você é o imbecil de quem falo.

Bulhões resistiu ainda sete dias. Me queria sofrendo sua morte, pronto a prestar-lhe honras fúnebres. Colombo abandonou os bares, as boates, temia que ele antecipasse o horário de visitas. Afinal, apareceu com um pacote de recortes nas mãos. Veja só a situação trágica do Brasil, não queria Colombo comovido. Proibia celebrações, aceitava apenas o café e a felicidade de porta aberta.

E por onde andou, eu insisti. Livrou-se do pacote sobre a mesa, estive sempre onde me causou aflição. Seus olhos pediam consolo e um abraço de boas-vindas. Fora de enterro, Colombo jamais havia abraçado um homem. Até chegar ao seu corpo, deveria vencer anos de resistência. Sentiu sua barba contra o rosto, foi gozado, porque o constrangimento não me deixou ser feliz. Eu só sabia viver a vida de modo confuso. E, para disfarçar, controlou-se. Se a sua vontade é mesmo criar animais e aves de ninho, compro uma fazenda. Mas, logo que lhe prometeu desistir das noites que se prolongavam porque voltar para casa significava interromper o matagal alucinado da aventura, arrependeu-se, que loucura seguir um homem que nem irmão é, ou amante.

Na fazenda, cada vez que anunciávamos a vida, ela nos fugia. Ambos matavam os animais que justamente queriam fazer viver. Bulhões era um desastre quando se empenhava em salvar a colheita, o leite, as batatas, os porcos. Logo o fogo derreteu a casa justamente ao excursionarem pela montanha, queriam ali surpreender ovos raros. Talvez naquelas alturas nascesse o condor americano. De tanto sonhar com este mesmo condor, Bulhões nem chorou pela casa.

E, não bastando tais desditas, enquanto armavam um acampamento que servisse de lar, as águas do rio vieram lamber seus pés. Agarrados às árvores para a correnteza não arrastá-los, Colombo proclamou furioso seu desamor por uma natureza que ensinava através de princípios avassaladores. Para a sua surpresa, Bulhões defendia com o rosto crispado a natureza que apenas expandira a própria luxúria através, isto sim, de manifestações ruidosas. Afinal, se o homem havia nascido com a terra pronta, muito bem feito que lhe sobrassem padecimento e o exílio.

Comecei a suspirar pelas boates do Rio. Sempre havia buscado a felicidade em suas cadeiras vazias. Além do mais, o sentimento pelo amigo já não era o mesmo. O convívio derretera o chumbo de seus corações, já não unia como antes. Bulhões tomava rumos contrários aos de Colombo. Até o café tinha agora gosto de fel. Sentia-se incapaz de afetos fortes e prolongados. A verdade é que Colombo sempre havia amado com displicência. Especialmente quando o último extrato bancário revelou-lhe uma conta exaurida.

Escreveu ao banco: não pretendo responsabilizá-los pelo fracasso que a natureza me impôs nesta experiência rural, mas expressar-lhes meu desconsolo em ser cliente de uma casa que não me preveniu a tempo pelos desastres e a rápida deteriorização do meu saldo. O banco acudiu-o com presteza, concedendo-lhe crédito em troca da fazenda. Como Bulhões me pedia sementes, porcos e touros reprodutores, não hesitei um minuto em hipotecar a terra.

Todas as manhãs, beijava os animais através da cerca. Implorando que se empenhassem na reprodução da sua espécie. Não fosse assim, perderia os últimos bens. E seguiriam eles para o corte, ou novo dono que não lhes prestaria seguramente a mesma vassalagem. Mirava-os na pupila emocionado, enquanto Bulhões o recriminava, com que direito exigia dos animais e das parreiras um excesso que fatalmente os levaria ao desespero. Seria como obrigar um homem a fazer amor dez vezes seguidas, embora lhe ministrando gemas com açúcar, vinho do Porto e mulheres com sabor de sal e suor.

Claro que discordei de tal descrença no humano. Contrário a ele, Colombo via o corpo capaz de todos os arrebatos, uma terra abrigando o sonho. Disse-lhe, exija dessas criaturas, que você ama mais que a mim, tudo que jamais me deram. Ele não me deu atenção. Insisti, socorra-me, seu louco, senão afundamos juntos e arrastaremos o sentimento que nos obriga a permanecer nesta terra maldita. Sua voz chegou-lhe displicente, esforçou-se em ouvi-lo, desprezo sua ambição pelo poder.

Dei-lhe tal soco que o prostrei ao solo. Mas, Colombo não o queria ferido pelas mãos que só quiseram resgatá-lo do sofrimento. Abracei-o, que me perdoasse. Ele, porém, arrumou as malas, nem se despediu dos animais especialmente voltados para a intensa re- produção. Preso aos restos da casa, Colombo deixou de visitar os currais. Imaginava os animais escravos das próprias funções. E quando passaram a anunciar-lhe a morte de cada um deles, designando nomes e respectivos pesos, simplesmente dava baixa na parede chamuscada, onde agora fazia a contabilidade.

Ali fiquei até perder o último animal. Telegrafou ao banco, venham buscar a fazenda, querendo eu empacoto e despacho pelo correio. Em Niterói, alugou quarto na casa de uma viúva, decidido a alcançar a felicidade vendendo amendoim. O calor das brasas no fundo da lata aliviaria seus rins embebidos de álcool. A viúva censurou que homem fino se prestasse a tal serviço. Mas, onde mais poderia atracar em dois territórios a cada meia hora, ou encontrar quem lhe escutasse os lamentos?

Primeiro, Rubem chupava o amendoim, depois o estraçalhava. Minha ex-mulher sempre temperou bem. A comida transformava- se em suas mãos. Fazia milagres na cozinha. Algumas vezes, Alice o havia alimentado de farrapos de colcha, sempre com sucesso. Era sua escrava na casa e na cama. Ela aceitou o fato sem revoltas. Desde pequena foi educada para o ofício. Nada mais fiz que prosseguir na tradição até encher o saco. Largou então a mulher em troca de algumas moedas de fantasia. Já não agüentava mais possuir uma criatura humana. Dei-lhe falsa alforria, que a pobre nem sabe agora governar.

Não comia amendoim desde as matinês do velho cinema Pirajá. Nos domingos, havia o seriado da Nayoka. Você se lembra, Colombo? Nayoka sempre de calça cáqui, botas, de punhos firmes contra os brancos safados que assaltavam o solo africano. Os mesmos bran- cos safados das esquinas brasileiras. Nayoka vivia em perigo. Cada domingo esgotava-se com ela amarrada aos trilhos do trem, ou arrastada pelas correntezas. Rubem não tinha como salvá-la, ou poupá-la de vida tão acidentada. E não era só a África que os separava, havia o oceano, a mãe que não o deixaria viajar, e a tela do Pirajá, inalcançável para a sua reduzida altura. Tantas eram as peripécias que, sem fôlego, temia pela perna de galgo de Nayoka fraturada em mil pedaços a cada queda. Sentia-se impotente ante os possíveis gritos da mulher suplicando que lhe estancassem a hemorragia das inúmeras feridas. Felizmente, ela rejuvenescia a cada capítulo, desatenta aos seus temores. E ele, já pensando no próximo domingo, tinha a mãe à porta perguntando, como é, comeu todas as bananas, se não fica fraco.

Não queria desgostar a justiceira Nayoka a quem amava com amor’ que mal o deixava dormir. A noite via-se entre mãos assassinas, em perigo de morte, até que Nayoka estilhaçasse o vidro da janela, resgatava-o pisando os corpos inimigos. Dali seguiam para o topo da árvore transformada em ninho, onde se beijavam com volúpia. A lâmina da língua de Nayoka alcançando o seu sexo que inchava abastecido de ímpeto e sentimento mortal que, por sua vez, o instigavam a querê-la mais ainda. Prisioneiro de seus braços, Nayoka tomava a iniciativa de amá-lo, amar como se quer a um bezerro, e o lambia restaurando a sua vida.

A verdade é que eu me empolgava mais com as aventuras do que com os beijos. Queria com ela pular árvores, rasgar cipós com os dentes, organizar o fogo com gravetos, transformar galhos em armas de grande operacionalidade. Fazer de um lenço uma bandeira que toda África enxergasse. Nayoka era uma ilusão, uma carto- grafia, um rio por onde Rubem podia navegar sem rumo. Ela era um rosto que hoje havia esquecido, não se lembrava mais, não saberia descrever. Ainda esforçando-se, só lhe restava o seu nome. Um nome diariamente esvaziado, e que tratava de preencher com uma vida monótona. Uma vida sem forças de imitar qualquer seriado. Me pergunto, às vezes, se não estaria ainda hoje casado com Alice não fosse pela memória de Nayoka.

Foi um amor sem ciúmes, não fazia sofrer. Os outros podiam desejá-la, aplaudi-la ao seu lado. Não queria um amor solitário, ou que lhe faltassem amigos com quem dividi-la. Entre eles havia os sinais externos próprios de uma seita. Já à entrada do cinema, identificavam-se os adoradores de Nayoka. Talvez pelo brilho no olhar. Ao mesmo tempo, enquanto Nayoka permanecesse no chão africano, sentia-se seu único dono. Rezava para ela não vir ao Brasil. Às vezes, doía-lhe pensar que deveriam os dois vencer mil braçadas atlânticas para o beijo de amor. E que não era forte suficiente para reter em suas mãos as pulsações daquele coração ardente.

Durante o filme, deslizava para debaixo da cadeira as cascas de banana. Ninguém deveria padecer dos desastres de seu ardor. Eu estava a serviço do bem. E por isso repetia a mesma sessão não sei quantas vezes. A mãe se enfurecia, gritava em direção à sala escura, Rubem, Rubem, nem mais um minuto. Ele vinha com o peito agitado, temeroso do castigo do qual nem Nayoka, na sua escura África, o livraria.

A mãe, ignorando seu secreto amor, pronto deslumbrava-se diante de cada vitrine da Avenida Copacabana. Para agradá-la, apontava-lhe a bolsa de crocodilo que ela logo queria arrastar para casa. E isto apesar de Rubem pensar nos cipós que nas mãos de Nayoka provavam-se mais eficientes que nos dedos de Tarzan, rival da sua amada. Até que no começo eu gostava de Tarzan. Mas, a experiência provou-lhe em pouco tempo que o coração não tinha como abrigar dois afetos a sugarem-lhe o sangue e a exaltação. Devia escolher o mais brilhante. Em algumas semanas, Nayoka venceu a musculatura de um Tarzan monossilábico, afásico, odiando a fala humana, apesar de Jane preparar-lhe a comida e os carinhos noturnos. Pobre mãe que nada entendia. Quantas vezes trazia-o à terra com um barbante. Ela não tinha imaginação, estava toda voltada para a casa. Era também outra escrava de uma legião de escravos. Sempre apartando as brigas dele com o pai. Que é estúpido comigo, hoje mesmo nos desentendemos, ele gritou autoritário, não volte tão cedo, se é homem assuma os compromissos com a tua mulher, não vou mais responder pelos teus desatinos. Quis me humilhar, bem podia ter falado de outro modo. Eu sei que fui eu que trepei, logo tenho que pagar. Mas, sabe lá o que é pagar até o resto da vida sem direito ao menos de dormir com a mulher, ir à geladeira e comer uma coxa fria de galinha?

E tudo pelos quatro filhos. Cada qual nascido em uma estação do ano. Desde a primavera ao outono. Quatro filhos, que carga, meu Deus. Pior que vender amendoim para bandidos, piranhas, bancários, jornalistas, após ter freqüentado boate, falado bonito, dado gorjeta aos caras grudados à mesa querendo facilitar uma loura gostosa.

Rubem chegara a sonhar alto, sonhos que abririam todas as portas apenas com gazuas de papel. Agora, ninguém o entendia. Unicamente Pedro o acompanhava nos porres, salvava-o com palavras ásperas. E ainda lê os meus textos, diz que sou um escritor de merda salvo pelo anonimato. Ainda assim, Rubem insistia em ser relido, pedia nova oportunidade. Pedro recusava-se, para ele não havia salvação. Sob sua aprovação, jogava tudo no lixo. Sobretudo, Pedro amava triunfar sobre o bem. Se eu lhe pedisse, me mataria contritamente. Seus olhos brilham quando choro. Sente prazer. Mas, Rubem o queria bem, apesar de tudo. Gomo se o sentimento transcendesse a qualquer ato impiedoso. Pedro era o primeiro a admitir que a bosta era a memória do animal que pisou na estrada. Ainda que Rubem lhe pedisse explicações para o enigma, ele lhe dava as costas. Tinha o hábito de traí- lo. O sem-vergonha dorme com todas as mulheres que já passaram pela minha cama.

O barco atracou, quem sabe no antigo cais Pharoux. As sombras das árvores reconstruíam figuras da corte de Pedro II. Rubem insistiu que Colombo deixasse a lata de amendoim aos cuidados do capitão, até então dedicado às águas e aos ventos. Ele responderia pelas brasas no fundo da lata. E, caso quisesse, poderia distribuir o rico espólio entre a tripulação. Comovido, Colombo abraçou Rubem. 0 segundo homem abraçado em menos de três anos.

Rubem fez-lhe ver os ciúmes de Pedro. Mas, ainda que sofresse, haveria de recebê-lo na confraria. Telefonou ao amigo, te vejo no varandão de fora. Temos que trazer um homem de volta à vida, fazia mistério. Colombo tocou-lhe o ombro, por favor, não exagere. No bar, Rubem traçou em mil palavras o destino de Colombo, antes de atracar em terras americanas. Afinal, o que sabemos daquele puto genovês que corrompeu com o fausto e a imaginação a corte de Isabel e Fernando? Pedro abatia os chopes gelados com os tiros de uma espingarda sedenta. Rubem garantiu-lhes, se o dinheiro não chega, avanço no tesouro que o pai depositou aos meus pés. E vamos passear pela Visconde de Pirajá, antigo paralelepípedo do meu coração.

Iam devagar. Colombo devia recuperar a vida sem desperdícios. Mas que reparasse nas mudanças sofridas pela avenida a pretexto de transformá-la na Via Veneto de um país jovem. Colombo não reagia, os olhos sombrios embora Rubem fizesse graças. O que há, Colombo, queremos você grudado à vida e você nada? disse Rubem, sob a custódia de Pedro, avalista de seus sentimentos. Colombo admitiu que faltava Bulhões para formarem um brilhante escudo romano capaz de enfrentar qualquer inimigo. Mas, onde encontrar este assassino de touros? Rubem é mesmo um frouxo. Comove-se com qualquer imbecil. E que faço aqui com este Colombo que vendia amendoim e era feliz? Rubem foi-lhe propor uma alforria que se esgotará ao amanhecer. Após o que terá que ceder seu lugar na redação, no apartamento, dar-lhe suas calças jeans. Se não for assim, Colombo enfuna de novo as velas e volta a respirar os odores fétidos desta baía. Sou tão estúpido quanto Rubem, nessa avenida inviável dessa cidade sitiada. Ele acusa-me de ser o carrasco que o corrompe diariamente. E só porque lhe faltam forças para comprar minha alma e imitar os meus métodos. Pergunta sempre se lhe mastigo a carne por conta do seu sabor, ou da minha fome. Ofende-me, mas eu o quero perto. Ele é o socorro que tenho. Estica as mãos quando caio bêbado na calçada. Não tem vergonha de mim, sacrifica o seu melhor lenço para limpar- me a cara, a mesma cara que igualmente registra a sua aflição.

Se o traio às vezes, é para chamar-lhe a atenção. Afinal, sou Pedro, não o quero distraído comigo, e com a vida. Ou desligado do mundo só porque vivemos e conhecemos o mesmo fracasso. Serei sempre o primeiro a abatê-lo com o chumbo de caça. E não hesito em raptar suas mulheres logo que ele deixa o apartamento. Só não me sirvo da sua própria cama. E, para penitenciar-me, conto-lhe tudo. Ele ameaça matar-me, vira-me a cara. Não aceita desculpas. Com tanta mulher você escolhe a minha, vai ver quer dormir comigo.

Será mesmo que quero conhecer o seu gozo e o seu suor através destas mulheres? Nessas horas, fico furioso, digo-lhe que estou pronto a perdê-lo. Não me fará falta, e não permito ofensas neste nível. Exijo, sim, o amigo que me estimule a abandonar a ilha em que estamos todos encarcerados, e transitar por terras onde ele, por exemplo, terá chegado primeiro e maravilhou-se porque a primavera o havia precedido. Rubem comove-se, conhece a lisonja quando o chamam de pioneiro. Quer enxergar o mundo primeiro que eu. Sua vocação para o esplendor é antiga, por isso chama os filhos das quatro estações do Vivaldi. Nestas horas, me pede dinheiro, assegura-me assim que estou perdoado. Posso de novo freqüentar-lhe a casa, devolve-me a chave com o calor ainda do seu bolso, ali esteve o tempo da nossa desavença.

Mas, quando o surpreendo feliz, levo-lhe uma flanela para lustrar os chifres que lhe ponho. Ele diz que não presto, mataria pai e mãe por algumas moedas. Aplaco-lhe a fúria contestando o direito de propriedade sobre quem arrastou até o leito para testar o ardor. Como ousa falar de traição quando o amor, este, sim, vilão, tratou de esgotar- se primeiro. Tais argumentos o convencem por algum tempo. Só foi proprietário da ex- mulher, porque a semeou de filhos e jamais poderiam agora apagar do quadro-negro aqueles quatro blocos de carne. Ambos caíram na armadilha onde o tigre-de-bengala deu-lhes as boas-vindas antes de devorá-los.

Às vésperas do Natal, chama-me de Pedrinho. Me quer murcho e choroso. Deposita sobre a mesa as sementes dos bons sentimentos. Quer contrariar as armadilhas do destino, esconder a minha e a sua canalhice. Eu lhe faço ver que as nossas cáries dentárias estão entupidas de carne amiga. A carne que se mastiga é indistintamente do amigo e do inimigo. Ele reage, por favor, Pedrinho, uma vez ao menos seja feliz. Ofereço-lhe dinheiro como se fosse uma puta, quero abastardá-lo. Com que direito exorbita, me quer transformado em reles bolo de morango com recheio de chantilly.  Acaso ser feliz significa dedicar-se a quem, com tocha acesa, promete ser seu para sempre e nos comprazemos com a segurança deste febril convívio?

Rubem é o imbecil que arrasto nas costas, o homem do bacalhau que promovia o elixir no bonde da minha infância: veja o ilustre passageiro o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado…

Será mesmo assim? Ou o versinho é do Rum Creosotado, e o do bacalhau é da Emulsão de Scott? A verdade é que Colombo padece das fulgurações da Pirajá. É hoje rei, Rubem fincou-lhe o cetro na cabeça. A coroação foi registrada pela insuportável monumentalidade do David francês, o pintor que levou a- sério as medidas humanas. Colombo repete o próprio nome como se tivesse descoberto a América. Eu, porém, cubro a sua América com a lona de um circo ambulante, toda cheia de furos pela passagem das traças e dos vendavais. E não é assim a nossa história? Feita de merda, bosta, excrescência. Nossa alma exultante resfolegando entre os tremores da pororoca amazônica? Pobre Colombo, pobre de nós pelo que somos. Só porque no passado foi marinheiro, aceita que Rubem o infiltre com um senso de grandeza que ambos mijarão no final da madrugada. E aqui estamos em busca do tal amigo que em algum lugar se disfarça de mágico e faz crer a todos que o cotidiano é a ilusão da sua cartola. Mas, o que fazemos aqui, diante da áspera formação geológica da terra, diante de uma genitália faminta e dispersa e que nos observa com olhos mortos?

Enfurecido com Colombo que o havia acusado de assassinar animais e colheitas, Bulhões registrou-se no Hotel Vermont, sob o sobrenome de proeminente banqueiro, senador mineiro, cujas atividades visavam conduzi-lo à presidência. Esquivou-se, porém, em ceder à gerência amplas explicações sobre a figura paterna, apenas fez crer que o seu herdeiro ali estava em vilegiatura por Ipanema.

Por sete dias, Bulhões não deixou a suíte. E quando o intimaram a saldar a conta, enfatizou que, sob os cuidados daquele teto, não permitiria injúrias e suspeitas. Lisonjeado, o gerente pediu-lhe inúmeras desculpas, desdobrando-se em agrados. Trouxe-lhe variadas marcas de uísque, e muito mais providenciaria sc Bulhões qui- sesse sonhar em voz alta.

Por toda parte, as pernas das mulheres recordavam-lhe os touros deixados com Colombo em instante de bravura. Em vão ensinara-lhe a proteger os animais das pragas e dos vendavais. Uns animais magníficos, capazes de procriarem com velocidade que nem a imperícia de Colombo deteria.

E mastigava o último pedaço de pizza,  quando a ilustre dama ao lado convidou-o a participar da solidão do seu vinho. Mais tarde, cm sua cama, Bulhões ofertou-lhe um corpo suado e um olhar que tinha a aspereza do cacto. A mulher sentiu-se invadida de água e de ímpeto que a fizeram recordar as grutas da Oceania. O amor durou algumas horas, ela reclamou do roxo das suas coxas. Como prêmio, ele cobrou-lhe um pijama de seda. A partir deste amor, não voltou ao hotel para recolher o que lhe sobrava de roupa. Provava assim ao gerente que herdeiro de organização tão poderosa tinha pressa em passar o país em revista, instruído que estava cm descobrir se valia a pena comprá-lo.

Dirigindo o MP aberto, o vento tornou-se uma aspiração clássica. Pensava em Colombo a alimentar os touros com os próprios dedos que se regeneravam durante a noite. A mulher soluçava, o que te perturba, Colombo, pois este o nome que lhe dera. Bulhões con- certava a fechadura do quarto, de onde não queria fugir. Trêmulo, a chave de fenda ia ao chão muitas vezes. Telegrafou à fazenda: se ainda vive algum animal, eu volto. No sétimo dia, teve certeza de Muc Colombo, milionário agora, e à custa do seu sonho, o havia borrado da memória. A ingratidão levou-o à doença, a mulher vigorava-o com leite e maisena. E sugando-lhe agradecido seus bravos seios, ele surpreendia a própria vida ali em pessoa a derramar-se sobre uma epiderme que não conseguia, no entanto, impedir as outras paixões humanas.

Antes de partir, Colombo o acusara, você jamais quis o esclarecimento, só a raiva. No colo agora da mulher, sonhou em desenterrar os leões que os ancestrais haviam transmitido a sua gene, para ornar-se com juba, pêlos, caninos, que se eriçavam todos quando o desamor o acolhia. A mulher exigiu, ou voltas à vida, ou deixo-te solto, à deriva. Bulhões levantou-se, tomou banho, pediu-lhe oito horas de liberdade.

Este será o nosso último bar, disse Rubem. Colombo negou-se a obedecer, não se esqueçam que sou um veleiro prestes a descobrir esta pobre América. Chope para quatro, pediu Pedro. E por que quatro? No caso de seu amigo aparecer. Colombo escreveu no guar- danapo: quando descobriu a primeira terra, das muitas a que assistiria nos dias subseqüentes, sentiu Colombo a ferida do peito abrir- se, e justamente por onde deixava as lágrimas fugirem, e tudo por estar fundando um continente fodido pela morte, a injustiça e a miséria.

Que tal, para um vendedor de amendoim? Rubem aplaudiu o discurso merecedor de leitura em leito de morte. Quem sabe no meu? Pedro sorveu o último gole e não se conteve, então não vê, Colombo, que Rubem só quer usá-lo de isca, pescar com a tua alma, porque ele é um cristão filho da puta? Colombo repetia, ele só quis me encaminhar para um destino melhor, por favor, Pedro. E o abraçou de modo a que Pedro se deixasse envolver pela vela daquele mastro girando agora em torno do próprio eixo. O chope de Bulhões está quente, disse Rubem, com lágrimas nos olhos. Não se preocupe que ele chega, e então eu farei bebê-lo pela goela abaixo, há de sofrer esta noite o que nós padecemos. Colombo garantiu- lhes que se Bulhões surgisse voltava à riqueza. Tinha ainda a chave de alguns tesouros e primos que rimavam com fortuna. Sentemo-nos aqui até que nos expulsem. O dinheiro da mulher de Rubem consumia-se sem lamentos. Alice que se arrume com os quatro filhos. Precisei salvar Colombo com uma única noite de glória. Pedro escavava as unhas com palito, pensando em Júlio Verne, quem sabe se vai por debaixo da minha unha ate o centro da terra. Uma descoberta que modestamente credenciaria a Vasco da Gama, a quem o povo brasileiro devia tantos favores.

Não se fira assim, Pedro, logo não estarei mais com você. Colombo passou-lhe a metade do seu chope. Mas Pedro resmungou, o problema não era o oceano que ele, Colombo, havia conquistado e continuaria a vencer, mas a tristeza diante de um tempo a esticar eternamente as nossas roupas umedecidas na corda. E, em cada roupa, Colombo, seguem nossas esperanças e o nosso suor.

O dono do bar avisou, em uma hora expulso todo mundo daqui. Havia que aproveitar os últimos sessenta minutos. Bebiam depressa quando Bulhões entrou distraído. Bulhões, gritou Colombo, em direção ao assassino de touros e colheitas. Bulhões disse, bem que a mulher me ensinou o caminho da amizade, deu-me liberdade na única noite em que poderia encontrá-los aqui. Rubem tomou-o como irmão e Colombo ofereceu-lhe perdão pelos animais dizimados. Mas, agora que já não temos razão para a discórdia, o que faremos com a nossa impiedosa felicidade, disse Pedro. Para Rubem, o mundo se simplificava. Meus amigos, enquanto o chope chegar-nos à garganta como uma flor do campo, tomemo-lo com delicadeza.

O encontro com Alice estava marcado para o anoitecer do novo dia. Entre eles estabelecera-se a certeza de um amável cumprimento no caso de Rubem entregar-lhe o envelope com o dinheiro em atraso. Pedro ainda sugeriu que se protegesse parte do dinheiro só para a mulher não se pôr aos gritos na rua, e logo as crianças ficarem sem pai. Rubem protestou, salvo-me para sempre, ou resta-me o naufrágio. E, depois, quem conhece o mar melhor que Colombo, nosso emérito marinheiro?

Bulhões não suportava o amanhecer, o destino é a gente tirar as sucessivas máscaras do rosto, disse, ameaçando arrancar a própria sobrancelha. A frase era galante, agradou a Pedro, só que as máscaras somos nós, e elas agora se derreteram, foram feitas de cera. O garçom apresentou a nota. A soma total arrastava para o fundo do mar o último dinheiro de Rubem.

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