Não é rio sem mistério o Capibaribe, o principal do Recife. O poeta João Cabral de Melo Neto tomou-se de tal paixão por esse rio recifense que o vem cantando com o seu melhor fervor desde “O cão sem plumas”.
E o historiador José Antônio Gonsalves de Melo — outro Melo descendente, como João e como eu, do mesmo recifense profundo chamado Ulisses Pernambucano de Melo — colhe há anos material para escrever a história dessas águas de rio que há quatro séculos se misturam à vida do recifense, inundando-lhe às vezes as casas com a fúria de um inimigo, de um rebelde, de um Volga revoltado até contra os próprios barqueiros. De ordinário, porém, servem elas aos homens, principalmente aos pobres, com a doçura de um são Cristóvão que se prestasse a carregar aos ombros pessoas e fardos; a recolher a imundície das casas, dos hospitais e das usinas; a lavar cavalos.
Do meio dessas águas mais de uma vez têm surgido aos olhos do homem do povo — e não apenas de colegiais fugidos das aulas — aparições que talvez sejam — pensam eles — de almas de afogados. Ou de suicidas. Ou de criminosos arrependidos dos seus crimes. E há quem diga que às lavadeiras que lavam roupa às margens do Capibaribe não tem faltado a presença do vira- roupas: fantasmazinho perverso que se especializa em roubar às trouxas das pobres mulheres camisas finas de doutores, toalhas de casas lordes, lenços caros de iaiazinhas. O escritor Ademar Vidal, no mais interessante dos seus livros — um livro sobre superstições do Nordeste — recorda essa assombração de beira de rio e nos dá um retrato de fantasma zombeteiro que se divertisse em fazer mal a gente pobre e simples.
Muito crime tem se praticado no Recife com a cumplicidade das águas nem sempre ingênuas do Capibaribe. Muito recifense nelas tem encontrado a morte de desesperado ou de desenganado da vida ou do amor ou do poder. Não é um rio apenas lírico, de serenatas melifluamente românticas nas noites de lua. Nem apenas de banhos alegres de estudantes com atrizes como outrora o Beberibe. Também dramático. Rio de afogamentos, de suicídios, de crimes. Rio de doenças que roem fígados, devastam intestinos, rasgam entranhas. Rio de romances russos acontecidos nos trópicos. Donde suas sombras guardarem segredos, alguns terríveis.
Nem todas as aparições porém têm sido de almas penadas. Sobre as águas do Capibaribe é tradição que apareceu um dia a própria Virgem. Apareceu não a um branco ou a um rico ou a um fidalgo de casa-grande — das que outrora davam a frente e não as costas para o rio — mas a simples escravo negro que ia se afogando ao atravessar as águas, de Ponte d’Uchoa para a Torre. E como era bom católico, quando se sentiu sem forças para lutar com as águas gritou como um desesperado por Nossa Senhora da Conceição. Então Nossa Senhora apareceu — segundo o ex-voto hoje no Museu do Estado — e salvou o escravo bom das fúrias do redemoinho do rio.
Ainda hoje se pode ver recordada essa aparição — ou pelo menos intervenção — de santa branca ou cor-de-rosa a escravo retintamente preto num ex-voto da capelinha da casa-grande, agora recolhido ao Museu do Estado. Aí se lê: Mercê q fes N. S. da Conceição; a Antonio escravo do Mestre de Campo Henrique Miz; querendo atraueçar este rio naponte dochoa para outra banda sem saber nadar, cahio nofundam, eacorrenteza dagoa olevou por baso daponte te coaze aolaria do Cappitam Joam de Andrade, echamando por esta Snra; da mesma olaria leacodirão eosalvaram, ficando Livre demorrer afogado, em dias de Agosto de 1770.
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