Beijo no telefone – Conto de Nelson Rodrigues

Caiu das nuvens:

– Você é casada? E ela:

– Não sabia? Põe as mãos na cabeça:

– Nem podia imaginar. Mas casada mesmo, no duro? Sorriu, refazendo a pintura:

– Casadíssima!

Estavam numa sorveteria.

Depois do breve lanche, Angelita passara batom nos lábios, Sérgio paga a despesa, ainda impressionado. Levanta-se e sai com a pequena. Lá fora, ele continua:

– Pois olha: estou besta, ouviu? Com a minha cara no chão! E sabe o que é que me espanta, em vocês, mulheres? É a naturalidade! Você encontra-se comigo, anda comigo e nem parece!

Pararam na esquina. Antes de se despedir, Angelita ergue o olhar sereno:

– Faz diferença? Vacila:

– Bem. Fazer diferença, não faz. Em todo caso, acho gozadíssimo.

Três dias antes, ele vinha passando, de automóvel, quando a viu, numa fila de ônibus. Angelita tinha vinte anos e aparentava muito menos. Havia, nela, na sua figurinha e modos, algo de adolescente. Foi esta frescura de menina e de mulher que o atraiu. Sérgio arriscou um convite. Não houve resistência. Imediatamente, Angelita abandonou a fila, sentou-se, na frente, ao seu lado. E o automóvel — um conversível — arrancou, numa velocidade macia, quase imperceptível. Cinco minutos depois, a caminho de Copacabana, pareciam íntimos. Conversaram sobre muitos assuntos, mas não coincidiu nenhuma referência ao estado civil de ambos. Sérgio a deixou numa esquina da avenida Atlântica, com um encontro marcado para o dia seguinte. E, assim, começou o romance. Na terceira vez, ele, sabe, com imensa surpresa, que Angelita era casada. Baixa a voz:

– Posso te fazer uma pergunta?

– Claro! E ele:

– É a primeira vez que você faz isso?

– Evidente!

Uma opinião

Deixou a pequena e encontra, mais adiante, seu amigo Queiroz. Arrastou-o para uma mesa de bar. Conversa vai, conversa vem, e resume para o amigo o novo romance. Termina num desabafo:

– Não gosto de mulher casada, percebeste? Acho meio chato!

– Por quê?

– Pelo seguinte: ela trai o marido comigo; e me trai com o marido. Tipo da mágica besta!

O amigo foi cínico, foi brutal:

– Ora, não amola! E te digo mais: nada como mulher dos outros, a mulher alheia! Deixa de ser burro e mergulha de cara!

Restava o problema do medo:

– E se o marido for violento? Se me der um tiro? O outro achou graça:

– Ninguém dá mais tiro em ninguém! Hoje, o sujeito sabe e finge que não sabe!

Vai ver que o marido da tua pequena quer sombra e água fresca!

– Sei lá, rapaz, sei lá!

Continuavam com os encontros, com os passeios. Mas Sérgio era uma vítima dos próprios escrúpulos. A princípio, fez, de si para si, os seguintes cálculos: “Vai ver que o marido a trata mal, não a compreende!” Sondou a pequena. Angelita, porém, o desiludiu: “Ele até que me trata muito bem e me dá tudo.” No seu espanto, Sérgio pergunta: “Mas vem cá. Explica uma coisa.” Pausa e prossegue:

– Não te dói, não te dá remorso fazer isso? Protesta, aborrecida:

– Mas isso não é nenhum bicho de sete cabeças, carambolas! Francamente, não sei por que você está fazendo esse cavalo de batalha!

E ele:

– Não é cavalo de batalha. Afinal de contas, é seu marido, você se casou com ele!

Angelita perdeu a paciência:

– Quer saber uma coisa? Você já está enchendo com esse negócio! Ele não é o primeiro marido enganado, nem o último! Responde apenas uma coisa: você me quer ou não me quer?

Teve bruscamente o medo de perdê-la. Balbuciou:

– Quero!

– Então, já sabe: fala de mim, fala de ti, mas não fala do meu marido.

Combinado? Admite:

– Sim.

Lua de mel

Foi uma lua de mel de novela, de filme. Três vezes por semana, Sérgio vinha buscá-la, depois do almoço, de automóvel. A menina e o automóvel partiam, a toda velocidade, numa espécie de fuga. Dir-se-ia um rapto maravilhoso. Iam para uma pequena casa, de paredes brancas e janelas azuis, que Sérgio alugara na Gávea. Passavam, lá, de cada vez, três ou quatro horas, delirantes. De vez em quando, ocorria-lhe ideias voluptuosas: “Vem amanhã sem calça, vem! Saia colante e sem calça!” E a felicidade de Sérgio só não era absoluta por causa do outro, do marido. A existência de um traído, de um enganado, era algo de perturbador. Angelita parecia esquecida de tudo e de todos. Mas esse abandono não a impedia de controlar o tempo. Às seis horas, erguia-se: “Preciso ir, preciso ir.” O marido chegava em casa às oito horas, quase sempre. Angelita fazia questão de estar, lá, para recebê-lo. Às vezes, Sérgio queria retê-la:

– Fica mais um pouco. Dez minutos. Fica!

Corria nua para o banheiro:

– Não, não. Está na hora. Tenho que ir.

No telefone

Viveram assim uns três meses. E a única restrição que ele fazia à pequena era a sua absoluta naturalidade no pecado. E, com efeito, nada turvava a sua felicidade. Ele não compreendia que uma esposa pudesse trair, assim, sem pena, sem dor, sem remorso. Uma tarde, porém, os dois pareciam mais enamorados do que nunca. Foi como se, de repente, tudo tivesse cessado de existir. Perderam noção de tempo, de espaço; e houve um momento em que apertando o rosto do ser amado, entre as mãos, Angelita teve um soluço: “Eu queria morrer agora! Num momento assim!” Era tarde. E, súbito, ela apanha o relógio de pulso, na mesa de cabeceira. Toma um susto: “Já?” Vira-se para Sérgio: “Oito horas!” Levanta-se e faz seus cálculos: àquela hora o marido estaria chegando em casa. Pergunta: “E agora?” Ainda imerso no sonho, ele balbucia: “Inventa uma desculpa!” Ao lado da cama, estava o telefone. Nervosíssima, Angelita disca. Do outro lado, atende uma voz masculina. Era ele, o marido. Com uma das mãos, Angelita segura o fone; com a outra, puxa a cabeça de Sérgio. Seus rostos estão unidos. E ela fala com o marido:

– Meu bem, eu estou aqui, na casa de fulana, ouviu?

E vou chegar um pouquinho mais tarde.

O esposo faz um comentário qualquer, Angelita ri e continua:

– Não desliga, já, não, que eu quero te dar um beijo bem gostoso, daqueles. Está ouvindo?

A boca de Sérgio está bem perto. Ela aproxima, mais e mais, o telefone. Une os seus lábios aos do amante, num beijo estaladíssimo. Fala de novo:

– Você ouviu? Gostou? E olha: vou já, chispada!

Ideia fixa

Quando larga o telefone e olha para Sérgio, toma um susto. Com um esgar de nojo, ele passa as costas da mão na boca, como que para limpá-la da lembrança de todos os beijos. Em seguida, põe a cabeça para fora da cama e cospe no chão. Sem entender, Angelita faz espanto: “Que é isso!” E ele, em pé, no meio do quarto, crispado de ódio:

– Não quero mais teus beijos! Nunca mais! Tenho nojo de ti! — e soluça: — Cínica! Cínica!

Angelita teve que sair, dali, às pressas, escorraçada. E, então, aconteceu o seguinte: aquele moço rico e bonito, que vivia conquistando uma e outra, nunca mais beijou uma mulher. Encerrou-se em casa. Mas se via, da janela, uma menina, uma senhora, uma moça, torcia-se em náuseas medonhas. Primeiro, odiou uma mulher determinada; depois, todas as outras; e por fim, a própria vida.

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