Caçada de Paca – Crônica de Rubem Braga

Foi o português que trouxe a mangueira-da-índia, foi o português que aprendeu, com o índio, a fazer redes, mas a idéia de armar a rede embaixo da mangueira é uma idéia toda brasileira. Creio que, ao longo dos quatro séculos e meio que tentamos formar nos trópicos uma confusa civilização, esta foi a coisa mais bem combinada que chegamos a fazer. Esta profunda reflexão sociológica nasceu em meu fino espírito no último domingo, à tardinha, ao embalo de uma rede na sombra de uma mangueira; e daí para frente meu espírito não produziu mais nada; apenas se deixou embalar junto com o corpo.

Havia uma brisa leve que tinha cheiro de mato; havia rolinhas que arrulhavam no calor meigo, no sono sereno; não era mais eu, era o Brasil que estava cochilando no bom domingo inventado por Deus especialmente para a gente poder ir ao sítio de Juca Chaves.

Depois começaram a falar de paca: conversa de paca é um negócio danado, como diz Cícero Dias. A gente começa a falar da carne de paca, fala de cachorro paqueiro, de espera da paca, então alguém diz que nesse mato tem paca e na fazenda vizinha tem um sujeito que é um bom caçador de paca, então adeus! Adeus rede, adeus sossego, adeus: o demônio da paca nos possui a todos. Tião vai pegar os cavalos, vamos conversar com o homem que tem cachorro para caçar paca, já chegamos no escuro, ainda disfarçamos olhando a bruta sala de jantar da outra fazenda com seus imensos moveis de carvalho francês, carvalho francês é chêne, o velho retrato em tamanho natural com passe-partout de veludo da menininha que morreu há muitos anos, quando tinha cinco anos, depois combinamos tudo para dez da noite no Alto do Veado, pois o homem disse: olhem que estive caçando paca desde a uma da madrugada até as três da tarde e não matei paca; meus cachorros estão cansados, mas não tem nada; minha paixão na vida é caçar paca, deixei de ser chofer no Rio de Janeiro porque lá não podia caçar paca; atraso a conta do armazém dois meses para comprar um cachorro que sabe trabalhar uma paca; já me botaram três contos de réis por esse cachorro aí, lá em São José do Rio Preto, e eu ando precisando de um dinheiro, mas não quis porque a minha distração na vida é caçar paca, e esse cachorro – ah, o senhor vai ver esse cachorro atrás de uma paca!

Nessa conversa, eu que estava tão bonito na minha rede, aqui estou eu neste caminho escuro, nesta noite sem lua sofrendo medo e cansando o braço e o corpo para conter em freio e bridão esse cavalo pai-d’égua; quem foi que disse que eu era peão? Vejo um vulto de égua, meu macho rincha, empaca, força o freio, estou suando; não é égua, é um poldro, diz Anti; eu digo que está bem, mas o poldro vem atrás, minha vontade é saltar no chão e fazer a pé essas duas léguas de noite; passamos a porteira mas não sei como o raio do poldro também passa a porteira, tenha paciência Anti, vamos destrocar de cavalo, você é cavaleiro eu não sou, só sei andar bem mesmo é de táxi, me devolve meu manga-larga preto, não tem importância nenhuma esse defeito na mão.

E mais tarde saímos outra vez de camioneta, mas é a pé que subimos morro, descemos morro tropicando na escuridão, já passa de meia-noite, os cachorros estão longe – côou, côou – lá vem a paca, apaga a luz e fecha a boca – côou, côou – a paca vem – tébéi! tébéi! dois tiros de espingarda – cuim! cuim! – e o homem gritou lá embaixo no escuro: “Chumbaram meu cachorro!”

Então há uma grande discussão, era uma paca, eram duas pacas, mas ninguém viu a paca; a moral da história é que havia cachaça demais para caçar paca e então erramos o caminho e acabaram os fósforos, voltamos subindo o morro, paramos no mato sem saber onde está a camioneta, sim havia cachaça demais e gasolina de menos, temos de voltar a pé, chegamos de madrugada e as mulheres ainda rindo de nós, perguntando: como é, cadê a paca? Foi Deus que fez o domingo, foi o brasileiro que armou a rede debaixo da mangueira e foi o Diabo que inventou a paca.

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