Caiporismo – Conto de Artur Azevedo

– Oh! Secundino!

– Oh! Borges!

– Tu no Rio de Janeiro!

– Há oito dias.

– Vieste a passeio?

– Não, meu amigo; vim tocado pela desgraça.

– Pela desgraça?

– “Desgraça” é talvez forte demais. Pelo caiporismo, se quiseres.

– E és tão caipora assim?

– Pertenço ao número dos tais que caem de costas e quebram o nariz!

– Oh, diabo! entremos neste café, e, enquanto tomamos alguma coisa, conta-me qual tem sido a tua vida nestes doze anos de ausência.

Passava-se isto na rua do Ouvidor, em frente ao Pascoal. Os dois amigos e comprovincianos entraram no Café do Rio, e sentaram-se a uma das mesas.

– A minha vida, principiou Secundino, resume-se numa palavra: miséria. Quando vieste da Vitória e lá me deixaste, eu era ainda, por bem dizer, uma criança. Vivia em casa de minha família, onde nada me faltava. Morreu meu pai, morreu minha mãe, minhas irmãs casaram-se, e eu fiz-me sócio de uma loja de fazendas. Ao fim de seis meses, abriram-me falência. Saí com uma mão atrás e outra adiante, e fui ser caixeiro de um bruto, um ingrato, que, ao fim de oito anos, em vez de me dar sociedade, passou a casa a um sujeito meu desafeto. Desgostoso, abandonei o comércio e quis ser empregado público. Apresentei-me em quatro concursos, e, apesar de bem classificado, não consegui que me nomeassem. Fundei uma folha, que acabou logo por falta de assinantes. Contratei casamento com a filha de um fazendeiro rico de S. Mateus, e a minha querida noiva, que me estimava muito, morreu um mês antes do dia marcado para o casamento. Afinal, desesperado, baldo inteiramente de recursos, aceitei um lugar de contínuo na Tesouraria da Fazenda…

-Tu?! Com as tuas habilitações?!

– É para que vejas, respondeu Secundino com lágrimas na voz. Mas isso mesmo foi considerado muito para mim. Demitiram-me acintosamente por não ter votado no candidato oficial nas últimas eleições. Resolvi então vir para o Rio de Janeiro, ao Deus dará… Arranjei duzentos e tantos mil réis, vendendo tudo o quanto possuía, e aqui estou sem emprego, sem esperanças, sem promessa, sem relações, e com sessenta mil réis no bolso. É tudo quanto me resta da minha fortuna.

– Pois bem , ofereço-te um emprego.

– Deveras.

– Oh! não é coisa para arregalares desse modo os olhos. É um biscate, que te pode servir enquanto não arranjar coisa melhor.

– Tudo me serve, meu amigo: a minha situação é desesperadora.

– Pois bem. Conheces a viúva Salgado?

– Não conheço aqui ninguém.

– Tens razão. A viúva Salgado é uma senhora riquíssima. Tem duas filhas. Quer que elas saibam francês, inglês, e me incumbiu de contratar um professor que lhe dê lições em casa, duas vezes por semana, ganhando cento e vinte mil réis mensais.

– Mas é uma pechincha.

– Não tens que perder tempo. Aqui está um cartão meu para te apresentares hoje mesmo, agora mesmo, se quiseres, em casa da viúva Salgado.

– Onde é.

– Rua do Catete.

– Número?

– Não sei o número, mas o condutor te indicará a casa. Não há quem não conheça a viúva Salgado. Olha, toma-se o bonde ali defronte e para-se mesmo na porta. Sabes onde é o Ministério dos Estrangeiros?

– Não.

– Conheces o Palácio de Nova Friburgo? deves conhecer, que diabo! já tens oito dias de Rio de Janeiro!

– Conheço.

– Pois é nessas imediações; quase defronte.

– Já sei pouco mais ou menos onde deve ser.

– Pois vais tomar o bonde, e sê feliz.

Daí a dois minutos, Secundino partia para a rua do Catete.

O bonde parou no largo da Carioca.

Uma senhora de meia idade, muito gorda, muito feia, mas luxuosamente vestida, aproximou-se para entrar no carro. Havia um único lugar desocupado ao pé de Secundino. Este encolheu-se todo para deixar entrar a senhora, que só a muito custo conseguiu abrir caminho entre os joelhos do provinciano e o banco da frente.

Depois de sentada, a senhora gorda encarou o seu vizinho com um olhar cheio de ódio, e disse bem alto, para que todos ouvissem:

– Com efeito! Sempre há sujeitinhos muito malcriados! E repetiu, depois de alguns segundos:

– Sujeitinhos muito malcriados!

– Isso é comigo, minha senhora? perguntou Secundino timidamente.

– Pois com quem há de ser? Se fazia tanto empenho em ficar na ponta do banco, devia levantar-se um instantinho para deixar-me passar sem me magoar as pernas nem amarrotar o vestido! Ora vejam como ficou esta saia!

– Minha senhora, quem não quer se sujeitar a estas contrariedades não anda de bonde: aluga um carro.

– Cale-se! Não seja insolente! Você responde assim por ver que não tenho um homem a meu lado.

E a senhora gorda percorreu com os olhos todos os passageiros do bonde, na esperança de que algum tomasse as dores por ela.

– O meu caiporismo! refletiu Secundino. E, enfiado, apeou-se no largo da Mãe do Bispo.

Veio outro bonde. O provinciano entrou nele, e um quarto e hora depois, subia a escada da viúva Salgado. Calcou o botão de uma campainha elétrica, Veio um copeiro encasacado. Secundino entregou o cartão do seu amigo Borges, e esperou.

Daí a cinco minutos abriram-lhe a porta da sala, uma sala opulenta, atapetada com luxo, mobiliada suntuosamente, cheia de quadros e quinquilharias.

Esperou meia hora. Rasgou-se afinal, um reposteiro de seda, e apareceu a dona da casa. A viúva, mal encarou Secundino, gritou, cheia de surpresa e de cólera:

– Pois é você, seu malcriado?! E eu que supunha ser o senhor Borges! Ponha-se já, já no olho da rua! Já!… Secundino reconheceu na viúva Salgado a senhora gorda do bonde. Saiu da sala precipitadamente e desceu a escada aos pulos. Só respirou na rua.

Foi realmente, muito caiporismo!

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