Caixa de sapato – Conto de Nelson Rodrigues

Na antevéspera do casamento, andou sentindo umas coisas esquisitas. Chamou a atenção de d. Flor:

– Mamãe, olha meu braço! A velha veio espiar:

– O quê?

E Olivinha, num suspiro:

– Estou toda arrepiada!

Era verdade. De vez em quando, apesar do dia quente, experimentava um frio breve e intenso. Por alguns segundos, chegava a tiritar. D. Flor coçou a cabeça com a agulha de tricô. Surpresa e inquieta, sugeriu:

– Gripe?

Olivinha negava: “Não, não.” Explicava, sumária:

– Nervoso.

Era a natural e quase necessária emoção da noiva prestes a ser esposa. Então, numa brusca nostalgia do seu noivado antediluviano, a mãe suspirou, também:

– Ah, comigo foi a mesma coisa. Igualzinho. E sabe que, na igreja, a caminho do altar, eu estava tão nervosa que quase enjoei?

Olivinha pasmou:

– Que coisa!

O medo

Amava e era amada. De noite, apareceu o noivo. Chamava-se Gilberto (sobrenome, Peçanha) e era um desses Apolos de banho de mar que fazem um sucesso tremendo no voleibol de praia. Orgulhosa do noivo bonito e atlético, Olivinha lamentava uma coisa: que ele não pudesse andar, o dia todo, de calção de banho, só de calção, ostentando o peito de estátua. Gilberto veio nessa euforia que dá uma antevéspera de casamento. Beijou a pequena na face e, gaiato, soprou:

– Está chegando a hora da onça beber água!

E esfregava as mãos, numa felicidade escandalosa, inconveniente. Insistiu, baixo, no mesmo tom:

– Sabe como é, vamos fazer uma lua de mel caprichadíssima! Olivinha o encarou, com falso melindre:

– Você hoje está impróprio pra menores!

Riram ambos, numa alegria recíproca e perfeita. Súbito, a pequena estaca.

Sentia o mesmo arrepio. Cruzou instintivamente os braços, apertou os lábios.

Gilberto inclinou-se, surpreso:

– Que foi?

Fechou os olhos, ergueu o rosto. Balbuciou num presságio:

– Tenho medo!

– De que, ora, bolas? E medo de quê? E ela, baixando a cabeça:

– Sou feliz demais. Minha felicidade está passando dos limites.

Mas Gilberto, no seu otimismo de “astro” de voleibol, enfiou as duas mãos nos bolsos:

– Ótimo! Se é feliz, ótimo!… Ela insistiu:

– Mas tenho medo que, antes do casamento, aconteça alguma coisa, que…

Rápido, Gilberto se pôs de cócoras. Bateu no próprio assoalho as três pancadinhas. Otimista, mas supersticioso, bufou:

– Isola!

Presságio

Ele despedia quase à meia-noite. Antes, ralhou com a noiva:

– Parece criança! Tira essas ideias da cabeça!

Fosse como fosse, Olivinha foi dormir, quase de madrugada, e numa tristeza de todo o ser. O presságio existia, no mais íntimo de si mesma, contaminando sua vida. Imaginou não sei que misteriosas e catastróficas possibilidades. E uma das hipóteses, que se fixavam no seu espírito, era a de que ou ela ou o ser amado morresse antes da cerimônia. Chorou, então, no escuro do quarto, temerosa de uma felicidade que lhe parecia quase um pecado. Mas quando acordou, na manhã seguinte, era outra. Geralmente, costumava ir da cama para o banheiro, de pés descalços. Desta vez, foi mais prudente. No medo de um resfriado, uma gripe e talvez de uma fantástica pneumonia, enfiou os pés, pequenos e nus, nas sandalinhas de arminho. E, depois, quando desceu, tinha um meio-sorriso, que a tornava mais linda. Suspirou:

– Faltam 24 horas!

Todo o medo se extinguira no seu coração. Já não se acovardava diante da própria alegria. Vangloriou-se, na mesa do café, como se desafiasse todas as mulheres do mundo, passadas, presentes e futuras:

– Ninguém é mais feliz do que eu!

O presente

Ainda estava na mesa, comendo bolachinha de água e sal, quando bateram na porta. A criada foi atender e demorou. Quando reapareceu, parecia espantada: “Tem uma pessoa com uma encomenda pra senhora.” Apanhando entre os dentes uma bolachinha, deu a ordem sumária: “Apanha.” E a empregada:

– Ela diz que só entrega em mão. E que se não for assim, não entrega.

Na presunção de um presente, d. Flor catucou Olivinha: “Vai, minha filha, vai.” A pequena obedeceu. Foi encontrar, na porta, com um embrulho na mão, uma Fulana que ela não conhecia. Miúda, magra, duma polidez inimaginável, uma cara de preá, a desconhecida fez questão de saber:

– A senhora é que é d. Olivinha?

– Pois não.

Convencida de que não havia mistificação de identidade, a Fulana passou a encomenda, dizendo, baixo, sem desfitar a destinatária:

– Mandaram isso pra senhora.

– Está entregue.

Ocorreu, ainda, a Olivinha, a ideia de perguntar pelo remetente. Mas já a estranha se afastava, rente à parede, como se fugisse. Olivinha voltou para o interior da casa, com aquilo nas mãos. Fez a reflexão: “Parece caixa de sapato.” Sentou-se numa poltrona do hall e, um pouco espantada, desembrulhou o que era, de fato, uma caixa de sapato. Mas quando, com a maior das inocências, destampou, pôs-se a gritar, numa pavorosa histeria.

O anjo

Todas as pessoas da casa acudiram. E os vizinhos, alarmados, apareceram de roldão. Soluçando perdidamente, Olivinha apontava: no chão estava a caixa de sapato aberta; dentro, um guri, de dias, nuzinho e morto. Tiveram que arrastá-la dali, porque, no seu desespero, estava no limite da loucura. No quarto, com a mãe e umas senhoras da vizinhança, soluçava: “Mandaram isso na véspera do meu casamento!” O pai, que foi chamado às pressas, não compreendia aquele presente fúnebre. Andando de um lado para outro, mascando um charuto apagado, estrebuchava:

– Que mágica besta!

Suspeita

Veio a polícia. Até repórter e fotógrafos apareceram. Súbito, acontece o imprevisto. Olivinha, que chorava baixinho, num desmoronamento total, tem um repelão feroz. Grita: “Já sei!” Encara com a mãe, com as vizinhas e anuncia, com os olhos terríveis e videntes: “É dele! Esse menino é filho do Gilberto!” Insistia, fanatizada pela própria suposição: “Tenho certeza!” Pronto. Era uma hipótese gratuita e cruel, mas tremendamente persuasiva. Todos na casa se entreolharam, tocados por uma quase certeza. E quando Gilberto surgiu, espavorido, requisitado pela família, o pai se trancou com ele. Fez-lhe a pergunta frontal: “É teu ou não é teu?” A princípio, quis negar; acabou admitindo: “Deve ser.” Então, o sogro o segurou, enérgico: “Mas não confessa! Nem a bacamarte! Em amor, deve-se mentir, sempre! O golpe é mentir!” Arrasado arquejou: “O.k.”

Drama

Pouco depois, era interpelado pela noiva. Mentiu. Mas ela criou o dilema: “Ou tu confessas ou não caso!” A família pôs as mãos na cabeça. Com medo de escândalo, o pai queria casamento de qualquer maneira. Em pé, os braços cruzados, uns olhos frios e cruéis, Olivinha teimava: “Ou confessas ou…” Gilberto era um fraco, um pusilânime e, além do mais, um apaixonado. Explodiu, afinal:

– Era meu, sim. Era meu filho.

Com minuciosa curiosidade, Olivinha extorquiu o resto; e Gilberto, chorando, reduzido a um trapo, contou o romance com uma menina pobre, que o perseguia com o apelo: “Quero um filho teu.” Sabia-o comprometido com outra, o diabo. Mas queria assim mesmo. Com a maternidade, mudou, num ciúme súbito e medonho. Provavelmente, matara a criança.

Quando ele acabou, Olivinha encostou-se à parede, com as duas mãos no estômago. Trancava os lábios, numa náusea de todo o ser. E começou a gritar:

– Tirem esse homem daqui! Pelo amor de Deus, tirem esse homem! Tenho nojo desse homem!

O casamento não pôde ser realizado. E Gilberto, que a amava com loucura, tentou reconquistá-la. Mas sempre que surgia, Olivinha se crispava em ânsias mortais. A simples presença do noivo ou ex-noivo tinha o poder de fixar no seu espírito a imagem do anjo morto, na caixa de sapato. Primeiro, era só com Gilberto. Depois, passou a abominar e a ter náusea de todos os homens. E, por fim, já via em cada mulher uma possível assassina de anjos.

778 Visualizações