Cemitério de bonecas – Conto de Nelson Rodrigues

Tinha 45 anos e usava ceroulas, dessas que se amarram nas canelas, com duas voltas. Cumprimentava todo mundo, sem distinção de classe, idade ou cor. Essa cordialidade indiscriminada impressionava muitíssimo. Dizia-se dele, de uma maneira entusiasta e unânime:

– Aquilo é um santo! E ele:

– Faz-se o que se pode! Faz-se o que se pode!

Não podia ver uma criança que não tirasse um níquel do bolso, que não fizesse festinhas no rosto. E essa tendência para os pequeninos era mais que uma simples ternura; era uma espécie de doença, de mania. Se, por acaso, via uma senhora batendo no filho, promovia um comício: “Mas não faça isso, minha senhora! Não é batendo que se educa!”

A mãe, reacionária, explodia:

– Criança precisa apanhar! Ele perdia a compostura:

– Quem precisa apanhar são os adultos! Sim, minha senhora, os adultos, únicos responsáveis por este belo mundo de crimes, adultérios e atropelamentos! E fique sabendo: nós, marmanjos, devíamos aprender com as crianças!…

Dr. Basílio

Chamava-se Basílio e era doutor. Uma simples dor de dentes de criança, ou de ouvidos, o atormentava mais do que a morte de um adulto. E nada o comovia mais do que encontrar um órfão. Fazia, então, as indagações intermináveis:

– Órfão de quê?

– De mãe.

E se era de pai e de mãe, comovia-se até as lágrimas. Tinha uma úlcera no duodeno. Sua piedade pelos pequeninos se refletia, diretamente, na lesão. Por fim, já o desamparo dos órfãos o afligia como um problema pessoal. Um dia, acordou de olho aceso e lábio trêmulo: “Tive um sonho…” Tremia, ao referir o fato, como se uma febre o consumisse. Alguém pediu:

– Conta, conta!

Sonhara que uma voz o induzia a sair, pelo mundo, em prol das crianças órfãs do Brasil. Os amigos, assustados, inclinaram-se a ver, ali, um sintoma de insanidade mental. Houve um, mais íntimo e confiado que os demais, que sugeriu: “Você precisa casar! Olha: eu conheço uma viúva daqui!” Mas já o destino do dr. Basílio estava traçado. Em casa, na repartição, no bonde, gemia: “Como é que eu não pensei nisso antes?” Pediu demissão do ministério, do qual era chefe de seção. O ministro admirou-se:

– Mas que foi que houve, dr. Basílio? Aborreceu-se? E ele, sóbrio, mas irredutível:

– Sr. ministro, cansei-me de ser um inútil, um egoísta. Vou dedicar minha vida às criancinhas.

No corredor sozinho, depois da conversa com o ministro, o dr. Basílio abriu os braços e murmurou, com as lágrimas caindo, de duas em duas, pela face:

– Vinde a mim os pequeninos!

Desde o próprio ministro até os serventes, todos foram categóricos:

– O velho está tantã!

Mas dr. Basílio estava convicto de que chegara o momento de cumprir sua grande missão terrena. Tinha dinheiro no banco e tratou de movimentá-lo. Dias depois, alugava um casarão na Tijuca, de salas e quartos imensos, porões habitáveis, varanda fresca e larga. Na frente, havia um jardim inculto, com dois ciprestes, finos e fúnebres, em cada lado do portão; nos fundos, um quintal imenso, cheio de árvores, inclusive uma jaqueira. O velho esfregou as mãos:

– Ótimo! Ótimo!

Ele próprio, com suas calças listradas de vinco impecável, dirigiu os trabalhos de reforma. De vez em quando, descobriam, no corredor escuro ou no banheiro, algum escorpião, alguma lacraia. No fim de 15 dias, aquele prédio, do tempo de d. João Charuto, estava, no dizer do novo proprietário, “um brinco”. Por outro lado ele tomava todas as providências práticas para instalação, ali, de um educandário de órfãs. Andando de um lado para outro, com ar de inspirado, sacudindo ambos os braços, ele vociferava:

– Aqui, senhores, as órfãs terão um novo lar!

O santo

Já então não havia mais dúvida possível — o dr. Basílio não era, como erroneamente se supôs, um velho tantã. Inesperadamente, fazia gelar a ironia do mundo, com a sua doçura sem igual. Dir-se-ia um santo. E fora mais coerente com esta condição um par de sandálias. Mas um homem tão superior tinha, como vaidade única e desculpável, umas polainas inatuais, que usava, obstinadamente. Mas seus gestos, suas inflexões, traíam a dignidade dos seus desígnios. Num instante, de um dia para outro, aquela casa encheu-se: quarenta órfãs! Um dia, apareceu um menino, surdo-mudo. Dr. Basílio, num misto de ternura e intransigência, declarou:

– Nós, aqui, só aceitamos meninas.

Era um ponto de vista da maior circunspeção. Alegava o dr. Basílio que a convivência entre os dois sexos é “abacaxi”. Foi mais claro, quando acrescentou: “Acaba em bandalheira.” Achava o sexo uma coisa vil. O surdo-mudo teve de voltar, com as mãos abanando. E no “Asilo Dr. Basílio” as crianças sem pai, sem mãe, encontravam todo um ambiente de lar, de família. De vez em quando, fotógrafos e repórteres apareciam por lá. Tiravam retratos de todo mundo, inclusive do dr. Basílio e da diretora, uma d. Emília, ex-parteira, gorda e cheia de varizes. E o velhinho tinha iniciativas verdadeiramente espetaculares: convidava os jornalistas e os fotógrafos para comerem na mesma mesa que as internas. Pedia desculpas:

– Hoje até que a comida não está muito boa! O repórter, estalando a língua, protestava:

– Está ótima! Espetacular!

De fato, por coincidência ou não, o fato é que as visitas jornalísticas calhavam com os cardápios mais impressionantes: galinha ao molho pardo, imaginem! A sobremesa era compota de pêssegos ou, nos dias mais pobres, goiabadas com catupiri. Na saída, o jornalista ia com a seguinte impressão secreta:

– Esse pessoal tem um vidão!

A glória

As reportagens foram saindo nos jornais, com abundante ilustração fotográfica. Havia uma circunstância que jamais deixou de ser lembrada: o dr. Basílio renunciara, franciscanamente, a um emprego público nababesco, para se dedicar à sua missão. O velho não parava: cercado de respeito, saía, de porta em porta, angariando donativos. Fazia um gesto, explicando:

– Aceitamos qualquer contribuição.

A partir de dez tostões, tudo servia. Queriam saber detalhes que ele ia fornecendo, abundantemente. Fazia questão de esclarecer que “não morava lá”. Por quê? E ele:

– Mas evidente! Lá é um lugar cheio de meninas. Que diriam de mim? E o interlocutor:

– Ninguém desconfiaria do senhor! O velho suspirava:

– Quem sabe?

Todos os dias, às sete horas da noite, o dr. Basílio, com a pasta debaixo do braço, saía, ostensivamente, do estabelecimento. Vinha pela calçada, prodigalizando cumprimentos a todo mundo, inclusive desconhecidos. Tinha a mania de dizer que os desconhecidos também são filhos de Deus. À sua passagem, as senhoras, à janela, suspiravam: “Quando morrer, vai diretinho para o céu!” Graças à imprensa, a opinião nacional estava crente de que o dr. Basílio era um desses homens, tão raros, tão raros, que já caíram em desuso e não existem mais. Um dia, porém, em plena madrugada, toda a rua ouviu gritos, que partiam do “Asilo”. Que foi? Que não foi? Bateram lá. Então, apareceu, com um candeeiro de querosene na mão, a diretora; explicou:

– Foi uma menina, que foi mordida por um escorpião. De manhã, o dr. Basílio confirmou:

– Esse negócio de casa velha é o diabo! Espeto!

O cemitério

O modelar educandário alcançara, então, seu décimo ano de vida. Tinha subvenções do Governo, o diabo. A correspondência do dr. Basílio parecia de cantor de rádio. E ele vivia, assim, tranquilo e glorificado, quando um jornalista de escândalo publicou uma reportagem, anunciando, entre outras coisas: que o “Asilo Dr. Basílio” era uma arapuca e que a d. Emília não passava de uma sinistra “fazedora de anjos”, etc., etc. O santo velhinho teve um desgosto medonho; mergulhou numa tristeza irremediável. E, numa tarde, mordido nos calcanhares pela ingratidão humana, teve um colapso e morreu. Armaram a câmara-ardente na sala principal do educandário; o corpo foi exposto à visitação pública. Às dez horas da noite, quando era mais intensa a afluência, ouvem-se gritos, no fundo do corredor. D. Emília, vestida de preto, ergue-se e avisa: “Não foi nada! Não foi nada!” Mas os gritos continuaram; o corredor foi invadido. Abre-se, então, uma porta: uma das internas surge, anda, cambaleia, encosta-se na parede. E, por fim, cai. Os presentes espiam o rastro de sangue, percebem a hemorragia medonha. É uma mocinha, de 15 anos, talvez; olha para os estranhos e geme:

– Foi ele! Foi ele!

Parece indicar a sala, onde está exposto o cadáver. O velório foi abandonado; ninguém se interessa mais pelo morto. E um mensageiro, que viera trazer uma coroa, pasma, no corredor, para o desperdício de sangue. Levaram a pequena para um quarto; alguém telefonou para a Assistência. E ela, agonizando, contava que fora o dr. Basílio, sim… No corredor, uma das internas, com o vestido azul, de fazenda ordinária, gritava: “Eu também! Eu também!” Foi um alarido infernal. Uma delas chamava e corria para o fundo do quintal. Num instante, as moças cavam com as próprias mãos. Então, foram aparecendo os pequenos esqueletos tão frágeis e pequenos como se fossem bonecas. E o dr. Basílio era o pai múltiplo e implacável. O anjo mais recente fora enterrado naquele dia mesmo. Como era de cinco meses, menorzinho ainda que os outros, d. Emília o enterrara dentro de uma caixa de sapatos. Quando se destampou a caixa, lá estava ele, o anjo, nu e roxinho.

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