Cristo ou Crista – Crônica de Antônio Torres

Tem-se visto no Rio de Janeiro muita coisa estranha. Faltava-nos, entretanto, assistir ao que está anunciado para a Semana Santa: o papel de Cristo, no Mártir do Calvário, feito no Recreio por uma mulher, a Sra. Itália Fausta!

Dizem que a Sra. Itália Fausta, quando representava ali no campo de Santana, era admirável no papel de Antígona, o que eu por mim mesmo não afirmo, porque não o vi. Dizem que S. Excelência é admirável na Ré Misteriosa — o que eu também não afirmo, por não o ter visto. Dizem ainda que S. Excelência é admirável em tudo — o que eu mais uma vez deixo de afirmar, porque não conheço a ilustre senhora nem em tudo nem em nada. Para evitar discussão, admito que ela seja estupenda em cena e fora de cena, quer no palco, quer nos bastidores; mas representando o papel de Jesus Cristo?!… Não se deve julgar do que ainda não se viu; mas, francamente, não há emoção de espectador que resista a estes pensamentos: “Aquele Cristo que ali vai, de cruz às costas, ajudado pelo Dr. Gomes Cardim, quero dizer, por Simão, o cireneu, é uma linda senhora; aqueles cabelos, porém, melhor diriam em Madalena do que no Salvador; aquela garganta é tudo quanto há de menos masculino; e se descermos pela garganta abaixo, verificaremos que aquilo não pode ser Cristo nem à mão de Deus Padre…”

Assim pensando, iremos acompanhando os passos do Redentor até o momento em que ele houver de ser pregado na cruz. Aí então é que hão de ressaltar, com evidência científica, à luz forte das gambiarras, entre relâmpagos de breu e trovões de bombo, todas as diferenças anatômicas que há, que pelo menos devia haver, entre Jesus Cristo e a mulher de Pilatos. E quando Maria Madalena se ajoelhar junto à Cruz, contrita, arrependida e lacrimosa, como Cristo é fêmea, ficaremos nós a conjeturar se porventura aquela Madalena não será macho, para não perturbar o equilíbrio do mundo…

Não, minha senhora, tenha paciência. Tem-se visto homens a fazer de mulheres, mas mulher transformar-se em homem, e ainda mais — Homem Deus, — isso nunca se viu, embora se digam por aí certas coisas… O nosso sexo é privilegiado. A quantidade de linhas curvas que abunda nas mulheres belas permite logo, à primeira inspeção, distingui-las imediatamente dos homens; portanto a Sra. Itália Fausta, quando for pregada na cruz (felizmente com cravos postiços), há de revelar-se mulher até ao cândido olhar dos impúberes. E se quiser ser tida e havida por Jesus Cristo, há de recorrer a antiguíssimos e obsoletos processos de carpintaria teatral.

No tempo de Shakespeare, como a arte cenográfica ainda não existia, quando em cena se queria mostrar ao público uma floresta, colocava-se no lugar próprio um letreiro: Floresta. Quando se queria figurar a lua, pendurava-se numa trave uma lanterna, com um letreiro: Lua. Assim, a Sra. Itália Fausta, se não quiser ser confundida com a mãe de São Pedro, deverá aparecer em cena com um letreiro na testa: Jesus Cristo. Ora, Jesus Cristo, que nunca foi réu misterioso, quando aparece no teatro, mesmo no Rio, traz na cabeça a sua famosa coroa de espinhos, que provavelmente deve ser incompatível com qualquer letreiro, ainda luminoso. Além disso, esse letreiro, por cima da coroa de espinhos, é uma crueldade tão inútil que os próprios judeus não a praticaram.

Resumindo, cara Sra. Itália Fausta, suplico-lhe, tão humildemente como se falasse ao próprio Jesus Cristo, o seguinte: vá ter com o empresário e declare-lhe, muito positivamente, que Vossa Excelência, por motivos anatômicos, não pode ser Cristo; poderá ser, quando muito, mãe de Deus, mas nunca filho d’ele. E se Vossa Excelência persistir nessas intenções, que eu reputo contrárias à natureza e ao bom senso, irei ao teatro, na Sexta-feira Santa, de gravata vermelha e barrete frígio, e farei berreiro para exigir que Madalena seja o Sr. Paulo Barreto.

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