Curiosidade – Conto de Machado de Assis

I
Carlota leu curiosa o anúncio do espetáculo. O título da peça era uma pergunta: O que é o casamento? A peça era de Alencar e ia à cena pela primeira vez.

— O que é o casamento? repetiu a moça consigo; título singular… Quando é a representação? É amanhã; vou pedir a papai para irmos vê-la.

Carlota ficou ainda a pensar no título da comédia, não só porque era mulher, mas também porque era noiva; leu os nomes dos personagens, e os dos atores, a hora em que começava o espetáculo, e, finalmente, entrou a ler as tábuas do teto e os fios de seda de uma das borlas da poltrona em que estava sentada. Foi nessa leitura que a veio achar a mãe.

A mãe tinha notícia de que eram as semanas anteriores ao casamento; sabia que em tais períodos contam-se todas as tábuas, todas as borlas do mundo. Fingiu que pensava em outra coisa, e quis sair, mas a filha deteve-a.

— O que é o casamento, mamãe?

D. Fausta estremeceu, levantou os ombros e não lhe respondeu nada. Como a filha insistisse, retorquiu que o casamento era uma loteria, mas que havia um meio certo de tirar prêmio grande: ser boa esposa.

— Compreendo; mas não é disso que se trata agora, trata-se de irmos ao teatro amanhã.

— Ao teatro?

Carlota mostrou-lhe o anúncio.

— Vamos? disse ela. Vou pedir ao papai.

D. Fausta viu o título, que também lhe pareceu curioso, abanou a cabeça, e disse à filha que era arriscado ir buscar ao teatro a explicação de coisas que só a vida real podia dar cabalmente. Em todo o caso, a resposta, se resposta havia no drama, seria à feição do entendimento do autor e cada autor poderia dar diferente solução ao mesmo problema. Vão trabalho! Carlota determinara ir ao teatro, não havia persuadi-la de outra coisa.

— Tens razão, disse D. Fausta; é uma noite de espetáculo, e nada mais.

D. Fausta era assim organizada; exagerava a defesa da sua opinião para ceder dela ao primeiro embate. Era uma senhora afetuosa, boa, de espírito acanhado, medrosa das trovoadas e tumultos, tendo perdido um casamento rico pelo único motivo de que era preciso acompanhar o marido à Europa. D. Fausta embarcou uma única vez para a nossa clássica Praia Grande, antes de 1840, quando alguns dos nossos poetas ainda rimavam Oceano com Netuno, e quando as navegações se faziam por meio de simples cascas de nozes. Tal medo colheu da viagem que preferia ver o diabo a ver o mar, posto que o diabo fosse a coisa que mais temesse abaixo do marido, que, aliás, era um anjo.

Davam quatro horas da tarde quando a mãe cedeu ao desejo da filha que lhe retribuiu a complacência com um beijo estouvado e terno.

— Doidinha! exclamou D. Fausta.

Desta vez foi a mãe quem afagou a filha, depois saiu Carlota ficou novamente a pensar na peça e no título. Já então não contava as tábuas do teto nem as borlas da poltrona, cerrou as pálpebras e abriu a porta ao canário que tinha no cérebro. Cerrando as pálpebras, tapou dois belos olhos castanhos, expressivos, talvez um pouco menores do que comportavam as dimensões do rosto. Era a única feição que destoava das outras, as restantes eram regulares e belas mormente a boca que era fina e casta. Mediana, nem magra, nem cheia, Carlota representava assim nas dimensões do corpo as proporções da beleza física e das qualidades morais. Efetivamente, não eram extraordinárias as graças dela; sua elegância, que a tinha, agradava aos olhos sem os arrastar após si. Era a mesma coisa o espírito. Não era águia nem galinha, mas um passarinho médio que trepa ao alto dos coqueiros e faz o ninho nos telhados. Tinha a virtude da curiosidade e o defeito da inconstância; e tal foi a raiz do caso que vou narrar.

Levantou-se Carlota, quando ouviu chegar o pai e foi direita a ele com intenção de lhe pedir para ir ao teatro no dia seguinte; mas recuou o pedido até à sobremesa. Nisso mostrava observação, porque o dr. Cordeiro era homem de negar dois mil-réis antes da sopa, e dar as minas de Golconda depois do café.

— Estás hoje muito risonha, disse Cordeiro quando a filha se sentou à mesa.

D. Fausta ia falar, a filha impôs-lhe silêncio.

— Percebo, temos algum mistério, concluiu filosoficamente o pai, e o jantar foi comido no meio da alegria dos três.

O dr. Cordeiro, médico de longa prática, tinha mais prática do que saber, e gozava de reputação de ser feliz nas curas; reputação que lhe dava extensa clínica. Sabia dedicar-se aos seus doentes; e apesar de político, jamais sacrificou uma hepatite a uma reunião eleitoral. A única cobiça de sua vida fora acumular um pecúlio com que pudesse amparar a velhice e dotar Carlota, o que conseguiu à força de muita economia e muito trabalho. No tempo em que este caso se passa era ele proprietário de boas casas além daquela em que morava, na praia da Gamboa, que era excelente. Tinha também apólices e escravos. Sobre tudo isto uns cinqüenta anos verdes, rijos e capazes de outros cinqüenta, e uma grande confiança em dobrar o cabo deste século.

— Vamos lá, disse ele comendo uma colherada de doce de coco; qual é então o motivo do teu ar risonho?

— Quero pedir-lhe uma coisa, respondeu Carlota.

— Não era motivo para estar alegre, mas para estar ansiosa.

— Mas se eu tenho certeza de que papai não me nega o que lhe vou pedir?…

— Atrevida! trata-se então?…

— De ir ao teatro.

— Quando?

— Amanhã.

— Que teatro?

— De S. Januário.

O dr. Cordeiro deixou-se ficar com um pedaço de queijo entre os dentes a olhar espantado para a filha, que pôde afrontar quietamente o espanto do pai.

— O Teatro de S. Januário! é o fim do mundo! exclamou o médico.

— Não chega lá; fica um pouco antes.

— E por que não iremos a outro?

— Porque é lá que se representa uma peça nova do Alencar.

— Ah!

— Vamos? está dito, vamos.

— Tu!…

O dr. Cordeiro leu o anúncio do espetáculo, e franziu o sobrolho; compreendeu então que a curiosidade da filha tinha pouco de literária, e que só a interrogação do título é o que a seduzia. Compreendeu isso, mas consentiu e recebeu um beijo em paga. Depois, com um ar que aparentava indiferença, murmurou esta frase:

— Pena é que o Conceição não possa ir conosco.

Conceição era o noivo.

— Por quê? perguntaram a mãe e a filha.

— Está doente; deixei-o hoje com uma forte constipação.

O dr. Cordeiro proferiu isto lançando um olhar furtivo para a filha, que devia empalidecer, e efetivamente empalideceu. Verdade é que também mordeu o lábio, donde se pode inferir que a moléstia do noivo tanto a compungia como a irritava. Esteve assim calada alguns minutos.

— Nesse caso não vamos, disse D. Fausta.

— Por quê? interrogou Carlota. Uma constipação não é coisa de cuidado; depois, é possível que amanhã ele esteja bom.

O dr. Cordeiro abanou a cabeça.

— Não creio, disse ele, não creio que esteja bom, deixei-o muito prostrado.

Carlota estremeceu; impedimento com o acréscimo de moléstia. Sempre era noiva; e o pai contava com essa qualidade quando se lembrou de exagerar a doença do futuro genro, que era um simples defluxo; e tanto era um simples defluxo que o Conceição, ditas aquelas palavras, entrou tranqüilamente na sala.

— Desastrado! disse consigo o dr. Cordeiro.

— Não está doente? perguntou Carlota.

— Coisa de nada; apanhei um ar na cabeça, endefluxei-me. Por quê?

— Porque desejava que nos acompanhasse amanhã ao teatro.

— Ao teatro? Pois sim. A que teatro?

— S. Januário, disse o dr. Cordeiro com uma lentidão expressiva, como um homem que estivesse a golpear outro.

— Perfeitamente, concordou o Conceição.

— Tolo! pensou o pai de Carlota.

Vencera a moça, e a vitória foi dura de suportar porquanto toda aquela noite e o dia seguinte gastou ela em cogitar o que seria o casamento. Chegou a sonhar com uma comédia; era diferente da que devia apresentar-se no teatro. Na comédia imaginária, o casamento aparecia-lhe como uma charada de muitas sílabas e nenhum sentido. Era essa a primeira versão, porque depois viu que era um banquete dos anjos, ao som da harmonia das esferas. Como este sonho fosse melhor, acordou mais alegre e almoçou mais tranqüila.

Jantou menos tranqüila: a hora aproximava-se. O pai sorria, murmurando que Deus lhe dera uma filha sem cabeça.

— Ou com cabeça de mais, disse a mãe.

— Pode ser.

Carlota ria só; estava alucinada com a idéia do que ia ver e ouvir. O dr. Cordeiro, abrindo mão do seu voltarete fazia um dos maiores sacrifícios que um pai pode fazer à curiosidade filial. Nem por ser grande a curiosidade da moça impediu que se aformoseasse com a arte e perfeição do costume. Realmente estava bela com o seu magnífico vestido de gorgorão e os seus longos brincos de brilhantes. Calçou as luvas sem impaciência, e desceu a escada sem precipitação. Para quê, se o carro devia chegar ao teatro muito antes de começar o espetáculo, tão cedo viera buscá-la por ordem da mesma moça?

— Era melhor ir comer a sobremesa ao teatro, resmungou o pai dando a mão à filha para entrar no carro.

E foi a última expressão de mau humor, não tardou que se lhe restituísse a alegria do costume. Ele próprio gostava de teatro conquanto o seu ideal dramático fosse outro que não o gênero já então em moda. Demais a filha ia contente, e ele adorava a filha, a ponto de ir da Rua da Gamboa à Rua de D. Manuel: ir e voltar.

Só D. Fausta estava um pouco preocupada, alguma coisa lhe fazia tremer o coração.

II
O Teatro de S. Januário é apenas uma tradição para a geração novíssima. Era situado na rua de D. Manuel: tinham ali representado bons atores, entre eles João Caetano, que era o primeiro de todos. Não se pode dizer que o teatro fosse feio; velho sim, e mal situado — circunstância esta, que explicava a pouquíssima freqüência que sempre teve.

No tempo em que passa a ação deste conto, há 16 anos — representava ali uma companhia regular, sob a denominação de Ateneu Dramático, a qual conseguira trazer algum público. Essa companhia dera algumas peças notáveis, tais como Os Íntimos, Os Descarados, Dalila e outras composições do moderno teatro francês, que é o grande fornecedor da nossa cena, e de outras, aliás adiantadas. Mas na noite de que tratamos exibia-se pela primeira vez a comédia de Alencar, citada acima, e nunca representada em nenhum outro teatro. O nome do autor, já glorificado por outras obras, era suficiente motivo para a expectação do público fluminense.

Carlota fez convergir toda a sua atenção para a cena, pouco ou nada curando da platéia e dos camarotes. Para uma moça era caso raro; melhor diremos caso virgem. Mas se ela queria saber o que era o casamento, antes de o contrair?

No fim do 3º ato disse-lhe o Conceição:

— Já sabe o que queria saber?

— Não sei tudo, respondeu ela; posso até dizer que não sei nada. A peça não responde inteiramente à minha pergunta.

— Naturalmente.

— Por quê?

O Conceição hesitou um instante.

— Por quê? repetiu a moça.

— Porque a sua pergunta era talvez complicada demais, e a peça não pode resolver todo o problema. Acresce que, em certos casos, quando fazemos uma pergunta, só desejamos ouvir uma certa resposta; e, se não a ouvimos, parece-nos que ou não nos responderam ou responderam-nos mal.

Carlota tinha os olhos cravados na ponta do leque, e não replicou logo.

— Não tenho razão? perguntou o noivo.

— Talvez, disse ela.

Foi a única palavra que o Conceição logrou arrancar-lhe. Durante o resto do intervalo, Carlota limitou-se a olhar para o leque, para a divisão do camarote, para o lustre, e uma ou duas vezes para a platéia.

Numa das ocasiões em que olhou para a platéia, os olhos demoraram-se mais do que das outras vezes, e mais do que lhe convinha, dados o lugar e as circunstâncias. Fitara um ponto único, o ponto em que reluzia um pince-nez de ouro, cobrindo um par de olhos que pareciam negros, e efetivamente o eram. A razão por que Carlota fitara esse pince-nez de preferência a outros, era difícil achá-la, desde que se ignorasse uma circunstância, a saber, que ela vira, oito dias antes, o referido pince-nez a vagar pela praia da Gamboa. Ora, há certos pince-nez que se vêem e se esquecem; outros, pelo contrário, vêem-se e não se esquecem mais. O de que se trata pertencia a esta categoria — não pela matéria, que era simplesmente ouro — não pela forma, que era a forma mais usada e comum, mas porque estavam diante de uns olhos grandes, bonitos, expressivos; os quais olhos ornavam uma bela cabeça, a qual cabeça era o remate de um corpo esbelto, vestido com certa arte.

Conceição não reparou no destino dos olhos da noiva. Saiu antes de levantar o pano e foi ocupar a sua cadeira, que ficava justamente ao lado do pince-nez. O pince-nez estava de pé, voltado de costas para a cena, conversando com um amigo.

— Mas não dizem que ela vai casar? perguntou este.

— Dizem.

— E então?

— Então, que tem?

— Parece que, se vai casar, podes tirar dali o sentido.

O pince-nez torceu o bigode.

— Talvez não, disse ele sorrindo.

— Que me dizes? Eras capaz de tirar o outro do lance?

— Quanto perde?

— Perco… coisa nenhuma, disse o amigo emendando-se. Já tens feito muitas proezas desse gênero, e não há pequena que te resista. Contudo, é a primeira vez que tentas suplantar um noivo; e a menos que pretendas casar…

— Pretendo casar, disse o pince-nez.

O amigo não pôde reprimir um gesto de espanto.

— Casar! exclamou ele daí a um instante.

— Casar.

— Tu?

— Eu. Ouve-me. Não te digo que estou cansado da vida de solteiro; não estou; mas preciso de um capital…

— E ela possui…?

— Possui um bom dote.

— Coisa que valha a pena?

— Se não valesse, por que motivo me iria eu meter nessa embrechada? Verdade é que é bonita, como os amores…

— Vai levantar o pano, interrompeu o amigo.

E os dois sentaram-se tranqüilamente.

Conceição estava pálido; não sabia positivamente de quem tratavam os dois desconhecidos, mas alguma coisa lhe dizia ao coração que se tratava de Carlota. Que importava isso, se ele estava seguro da noiva? A vontade e a cobiça de petimetre não eram bastantes para mudar uma situação assentada, quase definitiva. Não obstante este raciocínio, o Conceição ouviu o último ato da peça sem lhe prestar a mínima atenção; e quando o pano caiu, no meio de aplausos, ele só teve um cuidado: foi correr ao camarote do dr. Cordeiro.

Era tempo; a família só esperava por ele.

— Que demora! murmurou a noiva aceitando-lhe o braço.

Conceição sorriu satisfeito; a censura fez-lhe a impressão do carinho. Esperaram alguns minutos, à porta, para que se aproximasse o carro. Já ali estava o desconhecido da platéia, encostado a um portal, tranqüilo, quase impassível. Conceição fitou-o com certa insistência, o que de algum modo denunciou ao outro qual a posição dele na família. Devia ser com certeza o noivo.

A demora foi curta; o carro aproximou-se da porta e a família Cordeiro entrou. O amigo do petimetre chegou-se a ele.

— Parece que há mouro na costa, disse-lhe sorrindo.

— Parece…

— Ela olhou para ti?

— Francamente, não; mas por baixo da pálpebra.

— Deveras?

— Tal qual.

— Não é bastante, Borges; um olhar vale pouco, sobretudo quando…

Borges interrompeu-o:

— Sobretudo, quando estou com fome. Vens cear?

— Não; tomarei uma xícara de chá apenas.

O Borges enfiou a capa e saiu. O amigo, que respondia ao nome de Ernesto, quis reatar a conversa duas ou três vezes; mas o Borges fugiu habilmente com o corpo, de maneira que Ernesto desistiu do assunto, e limitou-se a fazer alguma observação acerca do drama, pouco antes visto, e da arte dramática em geral: assunto em que o Borges acompanhou, como se não houvesse nenhuma Carlota no mundo.

III
— Mas que tem ela, que veio calada durante a viagem toda? perguntava a si mesmo o Conceição, quando entrava em casa.

Tinha razão o noivo. Recostada no fundo do carro, ao lado da mãe, Carlota nada disse, desde que saiu do teatro até que se apeou. Minto; disse duas palavras únicas: e foi a primeira a afirmar que estava com sono, quando a mãe lhe perguntou o que tinha. A segunda foi quando o noivo se despediu dela.

— Até amanhã.

— Até amanhã.

Afora isto, não abriu os lábios a noiva do Conceição; e sendo longa distância do teatro à casa, e indo no mesmo carro o noivo, força é confessar que tamanha parcimônia de palavras era, pelo menos, esquisita. Foi o que o Conceição devia pensar, e foi o que não pensou.

— Foi realmente sono, disse ele respondendo a si próprio; era tarde, e a viagem fatiga muito.

Logo de manhã, tornou ele a pensar no incidente da véspera; mas não durou mais de cinco minutos a preocupação.

— Pareço tolo! disse ele consigo.

Conceição era um espírito reto, honesto, íntegro; podia ter uma suspeita absurda, mas não a acalentaria muito tempo. Supor que Carlota daria atenção às pretensões do outro, quando o casamento estava prestes a ser realizado, era coisa que o espírito dele não admitia; facilmente varreu a sombra da suspeita; e se o não fizesse então, fá-lo-ia nessa mesma noite, porque jamais a moça lhe pareceu tão afável, tão exclusivamente dele.

E contudo, leitora amiga, a noite que ela passou não foi a mais quieta nem a mais descuidada. Carlota dormiu tarde e mal — um pesadelo de pince-nez e bigodes. Acordou cedo e quis sacudir, com os lençóis da cama, aquela preocupação singular. Não pôde; a preocupação era mais forte que o desejo; dominou-a durante o dia todo.

Tal foi o motivo da afabilidade da moça, à noite, quando lá apareceu o Conceição. Era um modo de agarrar-se a alguma coisa, que a desviasse de uma complicação nova, e sabe Deus se fecunda em males. Infelizmente o espírito de Carlota tinha o mau jeito da frivolidade, sobre ter o da curiosidade. Três dias depois perseguia-a de novo a idéia do pretendente.

Um dia, de manhã, indo abrir uma gavetinha do toucador, deu com uma carta sem sobrescrito. Hesitou um instante curtíssimo, e abriu-a com ansiedade.

Dizia a carta:

Alguém que a ama muito, e há longo tempo, acaba de saber que a senhora está prestes a casar. Não podendo, não devendo, nem querendo obstar ao casamento, resta-lhe só dizer que, por muito que seu marido a ame, por muito que a amem seus pais e seus filhos, ninguém jamais a amará como este alguém, que não morre, porque as paixões não matam, mas cuja vida vai ser a perpétua e profunda solidão da morte.
Carlota ficou estupefacta com o achado da carta, em semelhante lugar, onde provavelmente a pusera a mão de algum fâmulo. Quis ir dali mostrá-la à mãe; depois, refletiu que era dar publicidade ao caso, e resolveu indagar por si mesma, como se a sua pesquisa singular, entre servos, não tornasse o caso notório. Nesse mudar de resoluções, ia amarrotando o papel, cheia de uma comoção, que não era de raiva, nem de indignação.

— Que atrevimento! dizia ela.

E esta palavra, murmurada com os lábios, não vinha do coração, vinha da cabeça.

Pouco a pouco foram os olhos voltando à carta, e de novo a leram, pesando-lhe desta vez cada palavra. A carta não tinha data nem assinatura; não tinha pontos de admiração, não tinha chamas, não lhe elogiava a beleza, como tantas outras, que Carlota recebera, antes de se cartear com o homem finalmente escolhido para seu noivo. Acrescia o tom do correspondente, a maneira dócil e tranqüila com que ele respeitava a afeição da moça, prestes a ser legalizada. O misterioso não lhe pedia nada; contentava-se em noticiar-lhe o seu amor.

— Mas quem será ele? perguntava Carlota.

E o pensamento ia ter com o pince-nez e os olhos negros do Teatro de S. Januário. Seria esse? Podia ser que sim, podia ser que não. Como sabê-lo? Quem lho diria? Nesse momento, ouviu passos na sala contígua: era a mãe. Carlota escondeu vivamente a carta no seio…

Pobre Conceição!

D. Fausta não viu o gesto da filha, que, aliás, lhe falou como se nada lhe trabalhasse o cérebro. A dissimulação, porém, durou pouco. Durante o resto daquele dia e nos dias seguintes, Carlota pareceu abster-se de toda a intervenção nas coisas e palestras da família. Vivia no ar, tão absorta que não raro era preciso falarem-lhe duas e três vezes para que ela chegasse a responder alguma coisa, e ainda assim respondia mal. Não gostando muito do piano, Carlota passou a despender longas horas diante dele, a decifrar os melhores pedaços de Verdi e Rossini. Lia romances em quantidade, e quando os não lia, fabricava-os com a imaginação e a memória, porque inventava sempre alguma coisa já inventada, não falando nos bigodes do Borges, que ocupavam a melhor parte de seus sonhos.

Uma semana depois da carta, meteu-se o diabo de permeio neste negócio, que bem podia ser acabado pelos anjos. O diabo protege as rivalidades amorosas; a árvore que lhe dá mais frutos é a árvore das paixões. Mas ou fosse o diabo, ou outra qualquer pessoa menos conspícua, o certo é que Carlota e Borges encontraram-se numa reunião familiar, dada em casa de um amigo do dr. Cordeiro. Para que a trama diabólica fosse melhor urdida, o Conceição não compareceu ao sarau; não se dava com a família.

— Que tem isso? disse o dr. Cordeiro quando dois dias antes lhe ouviu a declaração; eu o apresento lá hoje, trocam dois cartões…

— Não, não, disse o futuro genro; não é preciso isso; eu aproveito a noite para pôr em ordem alguns papéis.

Duas quadrilhas, duas valsas, meia hora de passeio, cinco minutos de conversa a uma janela, tais foram os preliminares das relações entre o Borges e a filha do dr. Cordeiro. Carlota escolhera o seu melhor vestido, e pusera as mais belas jóias — e se não havia muito gosto na toilette, havia certo aparato, justamente o que mais podia fascinar o novo pretendente. Quanto a este, estava no trinque; e nunca o pince-nez lhe brincou melhor sobre o nariz. Havia nele um arzinho atrevido e dominador, uma expressão de vaidade, que o tornavam insuportável aos homens, mas que era justamente o segredo da influência que desde logo exerceu no espírito de Carlota. Como ele lhe pedisse mais uma valsa, Carlota recusou com uma palavra indiscreta.

— Não, disse ela sorrindo; podem reparar que é a terceira.

Borges aceitou esta recusa com igual contentamento ao que lhe daria uma simples sucessão. Talvez maior. Fitou-lhe uns olhos muito compridos e muito magoados, a que ela respondeu com outros não menos magoados e não menos compridos.

— Será ele o autor da carta? dizia a moça, já na alcova, sem poder conciliar o sono.

E no pendor em que o coração lhe ia para o Borges, começava a lastimar-se se a carta não fosse dele, porque esta lhe parecia o natural complemento do rapaz…

No dia seguinte, Carlota ergueu-se um pouco envergonhada e irritada contra si própria. Acusava-se de ter sido indiscreta, de haver dado ao Borges esperanças que não podia realizar, lembrou-se que era noiva, e que amava… ou devia amar o marido. O Conceição almoçou lá nesse dia; era domingo. Carlota fez-se muito amável com ele, mais amável do que nunca. Verdade é que, se comparava os dois, não dava a palma ao noivo. Não havia neste nem a preocupação elegante, nem a graça das maneiras, nem sequer a regularidade das feições, acrescendo que o Conceição era uma fisionomia um tanto austera, com uns longes de apático, ao passo que o Borges tinha aquele arzinho, de que acima se falou. Não obstante, Carlota procurava esquecer o Borges, entregando-se toda ao Conceição, e fazia-o com muita sinceridade, e algum estrépito, como se quisera aturdir-se.

— Ainda hoje me não tocou um bocadinho de piano, disse o Conceição.

— Quer?

— Peço.

— Vou cumprir suas ordens, redargüiu a moça com infinita graça.

O noivo acompanhou-a e sentou-se ao pé dela. No outro lado da sala ficava o pai, lendo o Jornal do Commercio. A mãe estava à porta do corredor, dando ordens a um escravo. Foi nessa ocasião que soou a campainha da escada, e outro escravo veio trazer um cartão de visita ao dr. Cordeiro.

— Que entre! disse este.

— Quem é? perguntou a moça erguendo-se e olhando por cima do piano.

Disse isto, e subitamente empalideceu; o Borges estava à porta da sala.

IV
O Borges — ou, mais exatamente, Lulu Borges — que era esse o nome familiar do mancebo — não voltou a cabeça para o lado do piano, e foi direito ao pai de Carlota. Não quer isto dizer que não tivesse adivinhado a moça, ou porque lhe ouvira o eco amortecido da voz, ou porque possuísse o faro da ave de rapina. Carlota pôde dominar-se, e, sem dizer palavra ao noivo, retirou-se cautelosamente para dentro. O noivo atribuiu a retirada da moça a um sentimento de simples discrição, e fez a mesma coisa, indo para o gabinete contíguo. D. Fausta já se havia retirado. Os dois homens ficaram a sós.

— Como passou o resto da noite? perguntaram um ao outro, visto que no baile da véspera tinham sido apresentados pelo dono da casa.

Feitos os cumprimentos, e trocadas as primeiras palavras, Lulu Borges disse que motivo o levava ali. Era um motivo patriótico; tratava de fundar nova sociedade destinada a festejar o dia 7 de setembro, e ia convidar o dr. Cordeiro para sócio e presidente dela. O dr. Cordeiro que tinha a paixão dos cargos, por uma tal ou qual vocação de governo que a natureza lhe dera, sorriu imperceptivelmente, mas recusou a pé firme, durante cinco minutos. Não há, porém, modéstia que possa resistir às instâncias de um homem disposto a triunfar; o pai de Carlota cedeu enfim.

— Com uma condição, disse ele; servirei o primeiro ano, ou ainda dois…

— Três, peço-lhe eu, interrompeu Lulu.

— Pois sim, mas não mais. Não é que me falte sentimento patriótico; é porque estou velho, cansado…

— Velho!

— Depois, sou muito obscuro; acho que estes cargos devem ser confiados a pessoas ilustres…

— Não sei quem o seja mais, em todo o nosso bairro. Seus talentos, seus longos serviços, a posição científica, a verdadeira popularidade de que goza, são títulos de alta valia. Aceita, não é? Agradeço-lhe em nome dos meus amigos. Na verdade, o nosso bairro precisava de uma sociedade destas, não só para lhe dar alguma vida, como para mostrar que o sentimento nacional não se acha extinto nele.

— Perfeitamente.

Lulu Borges disse ainda muitas outras coisas galantes, que o dr. Cordeiro ouviu encantado. O rapaz era mestre na arte da cortesania; sabia tecer um louvor dando-lhe a intensidade apropriada ao caráter da pessoa. Acresce que era insinuante, metia-se facilmente no coração dos outros. Quando dali saiu deixou o pai de Carlota vibrante de entusiasmo.

A sociedade organizou-se depressa, conquanto nada existisse feito ou sequer iniciado no dia em que Lulu Borges falou ao dr. Cordeiro. Dentro de oito dias estavam apalavradas umas trinta pessoas e convocada a primeira reunião. Logo aí, o Ernesto, o rapaz que encontramos de passagem no Teatro de S. Januário, propôs que Lulu Borges, na qualidade de iniciador, fosse aclamado presidente da sociedade; mas este, que parecia não esperar ouvir outra coisa, recusou nobremente tamanha honra, propondo que ela fosse conferida ao digno e ilustrado médico, “uma das ilustrações do Brasil”.

O dr. Cordeiro sorriu e aceitou. Lulu Borges foi nomeado secretário.

Confessam todos os amigos de Lulu Borges, que jamais lhe atribuíram uma décima parte do patriotismo que ele revelou naquele tempo. Lulu Borges era uma das almas da sociedade, que tinha a boa fortuna de contar duas, sendo a outra o digno presidente. Parecia não ter outra preocupação que não fosse celebrar de modo brilhante o grande dia da pátria, e para isso tratava de aumentar a associação, e fazê-la conhecida. Por um verdadeiro rasgo de gênio, a nomeação do tesoureiro recaiu na pessoa do Conceição, indicada e sustentada por Lulu Borges. Houve, é certo, um grupo que recalcitrou, alegando que o Conceição era quase da família do dr. Cordeiro, e que assim dois dos primeiros cargos ficavam na mesma casa; mas venceu a indicação de Lulu Borges, não obstante a oposição do grupo e a pouca vontade do escolhido.

Os trabalhos da sociedade reuniram freqüentemente o dr. Cordeiro e o secretário, em casa daquele. Lulu Borges fez-se assim familiar do médico; vieram os chás e os jantares, as palestras longas, os passeios em família. Simpático, insinuante, o secretário era também dotado de algumas prendas; tocava flauta, recitava ao piano, contava anedotas. Parece que também desenhava, porque um domingo, pouco antes do jantar, Carlota foi achá-lo no gabinete a traçar um perfil; desconfiou, ou pareceu-lhe ver que esse perfil era o dela. Lulu Borges escondera o papel e guardou tranqüilamente o lápis.

— Que estava fazendo? perguntou a moça.

— Nada.

— Nada? Vi-o esconder um papel; é um desenho, creio eu…

— Não, senhora; era uma conta.

— Deixe ver.

— Não posso.

— Por quê? Não há nada oculto ou reservado em uma conta… Dê cá; penso que era um perfil, talvez o da sua namorada…

Lulu Borges ergueu-se solenemente, olhou para ela e saiu do gabinete. Carlota sentiu cair-lhe uma lágrima e murmurou:

— Não me ama, não me ama!

V
A lágrima de Carlota foi largamente paga, porque, alguns dias depois, Lulu Borges lhe fez diretamente a confissão do seu amor; Carlota ouviu-o contente e palpitante. Não lhe respondeu nada; mas o olhar disse tudo, e a mão, em que Lulu Borges pegou e que estava trêmula e fria, disse o resto se alguma coisa ficou por dizer.

O caso ocorreu no gabinete do dr. Cordeiro, onde Lulu Borges escrevia não sei que ofícios relativos à sociedade patriótica. O médico estava fora; Carlota entrou lá com dois fins, um aparente e mentiroso, outro escondido e verdadeiro. O motivo aparente era ir ver um livro, um romance; coisa que aliás não existia no gabinete do dr. Cordeiro. Lulu Borges, depois de procurar em vão o romance pedido, compreendeu que o melhor era dar-lhe uma página de romance real. O que se fez do modo mais correntio do mundo; Carlota corou e não disse nada; depois fugiu, mas fugiu deixando com ele o coração e a confissão.

Lulu Borges triunfara: possuía a moça; restava saber se o pai consentiria em trocar de genro. Não era infalível, mas não era impossível. Quanto ao Conceição…

O Conceição não dava mostras de entender coisa nenhuma; entrava e saía como antes, falava do mesmo modo, posto que a alegria das suas palestras fosse mais aparente do que real. Ninguém reparava nisso, nem Carlota, nem mesmo Lulu Borges. Ele aparecia nas horas do costume, com a sua graça usual nos lábios; jogava o mesmo voltarete, à noite; e se Carlota não ia já, como dantes, colocar-se ao pé da mesa do jogo, ele fingia não reparar nisso e até estimá-lo. O que ninguém percebia é que ele acompanhava os movimentos da moça, via-a ir disfarçadamente até à janela, ou até o sofá, com o outro, falarem, rirem, divertirem-se sem ele, e pode ser que à custa dele.

A falar verdade, o Conceição desconfiou do intruso desde o dia em que o viu ir à casa do dr. Cordeiro; comparou a figura com a do teatro, e viu que era a mesma; assistiu ao zelo patriótico do rapaz, à maneira por que fez eleger presidente da sociedade ao dr. Cordeiro e só hesitou um pouco quando o viu levantar a própria candidatura dele Conceição para tesoureiro da sociedade. Supôs a princípio que ele não conhecesse bem o futuro genro do dr. Cordeiro; mas pouco durou essa suposição; compreendeu que o Lulu Borges era um grande velhaco.

Ora, o Conceição, se não tinha as aparências e a elegância do Lulu Borges, tinha uma grande sensibilidade e não menor circunspecção. No dia em que se persuadiu deveras de que, não só o intruso pretendia arrebatar-lhe a noiva, como que esta parecia aceitar com simpatia as pretensões do intruso, nesse dia, o Conceição padeceu um profundo golpe no coração. Levou quase toda a noite desse dia, a fumar e a contar estrelas do céu. De madrugada, meteu-se em água fria, segundo era o seu costume, e saiu do banho com uma resolução feita. Carlota merecia-lhe muito, mas ainda mais lhe merecia a sua dignidade.

Um dia, pois, quando nenhuma dúvida podia haver, em seu espírito, sobre a aquiescência de Carlota à corte que lhe fazia o rapaz, determinou o Conceição romper o casamento, mas não o quis fazer sem entender-se com ela.

Carlota estava longe de esperar semelhante resolução. No turbilhão em que ia, no gozo de um sentimento, que lhe era agradável, Carlota fechava voluntariamente os olhos às dificuldades inevitáveis; lembrava-se muita vez do casamento projetado, da vontade de seus pais, da aceitação pública, e só não se lembrava do amor do Conceição, que era o menos grave ponto do conflito. O que é o coração humano! Pensava às vezes que podia deixar de casar com o Lulu Borges, mas surgia-lhe a figura do outro, e em vez de buscar meio de vencer a dificuldade, lançava mão do adiamento, e deixava-se ir na corrente de todos os dias.

Não durou muito essa situação ambígua, porque não convinha ao noivo prolongá-la; e um dia, quando Carlota se deixara estar, com os olhos no teto, a pensar no Borges, surgiu-lhe o Conceição, que lhe perguntou com muita brandura onde tinha naquela ocasião os seus olhos.

— No teto, respondeu ela estremecendo e fazendo-se pálida.

— Pode ser, tomou o outro, e efetivamente há ali um teto…

— Não compreendo.

— Quero dizer que a senhora parecia estar olhando para outra parte, porque os olhos fitam muita vez um ponto e a vista não se fixa aí, mas noutro lugar… mais longe…

— Mais longe?

— Por exemplo, a senhora podia estar olhando agora para o Lulu Borges, disse o Conceição sorrindo.

Carlota fez-se ainda mais pálida, e não se atreveu a levantar os olhos. Esteve assim durante alguns segundos; mas, como a situação fosse incômoda, resolveu sair dela com um gracejo.

— Ciúmes! disse ela buscando sorrir.

— Ciúmes?

— Parece…

— Parece mal, atalhou o Conceição com um modo grave; não se trata disso; trata-se de coisa mais séria.

Carlota levantou os olhos para ele.

— Trata-se, continuou o Conceição, nada menos que de romper o nosso casamento, ficando cada um de nós com a sua liberdade. A senhora ama aquele moço; acho que faz bem, se assim lho pede o coração, e agradeço-lhe o tê-lo amado a tempo de me libertar. Concluo que, ou nunca me amou, ou apenas me deu um sentimento fraco, filho do capricho, talvez filho do costume; num ou noutro caso, siga agora os seus atuais impulsos, e pela minha parte declaro-a livre.

Carlota estava atônita, com o que ouvira; misturavam-se nela, em doses iguais, o pasmo, a alegria, o vexame, e não soube o que lhe dissesse quando ele acabou de falar. Ocorreu-lhe, entretanto, um triste recurso.

— Já sei, disse ela, o senhor ama a outra, e quer deixar-me; era melhor dizê-lo com franqueza.

O Conceição sorriu com um ar de dolorosa ironia; depois disse:

— Suponha que é verdade, que amo a outra, e que me vou casar, ou ao menos que pretendo fazê-lo; suponha…

— Não suponho nada, interrompeu a moça; quer deixar-me, deixe…

— Mas se eu me arrependesse, se eu lhe dissesse que…

— Não, nada ouvirei; depois do que me disse, nada é mais possível entre nós, disse a moça com indignação.

Pobre noivo! Depois do que sabia, só lhe faltava o golpe daquela indignação simulada. Nada disse o Conceição durante alguns minutos, enquanto a moça, ora olhava para ele, com um ar de queixa, ora mordia raivosa a ponta do lenço, ora batia com o pé; mas quando todas as mostras de ciúme lhe pareceram excessivas, o Conceição disse em tom decisivo e com voz concentrada:

— Nada há mais entre nós, mas a culpa não é minha, é sua. Não lhe faço nenhuma recriminação; não seria útil nem digno; basta-me dizer-lhe que…

Carlota quis interrompê-lo com um gesto.

— Ouça, disse ele.

E fazendo-a sentar de novo, com um gesto brando e cortês, continuou dizendo que tudo sabia, e que era preciso terminar tudo.

— Minha presença nesta casa é mais do que inútil, é incômoda para a senhora e ridícula para mim; conseguintemente, é força retirar-me; e só me resta fazê-lo de um de dois modos — ou por mim mesmo — ou por iniciativa sua.

— Desde que o senhor sai porque quer, penso que não devo eu fazê-lo sair, disse Carlota.

— Carlota!…

— Perdão, atalhou a moça; já não tem direito de me tratar assim.

— Foi um esquecimento. Qual é a sua resolução?

— A que quiser.

— Está então tudo acabado, tornou o Conceição depois de alguns instantes, como agarrando-se a uma tábua de salvação.

Carlota levantou os ombros, a olhar para o espaldar de uma cadeira, com o ar mais indiferente do mundo; o Conceição não podia ocultar a comoção.

— Adeus! disse ele.

A moça cortejou-o; ele saiu.

Logo que o Conceição a deixou só, Carlota respirou largamente, ergueu-se, e deu alguns passos de um para outro lado. Parecia livre de um grande peso. Não pensava nas explicações nem nas conseqüências; via somente uma coisa: a liberdade de casar com Lulu Borges; e para ela era tudo.

Nesse mesmo dia, o dr. Cordeiro foi surpreendido com uma carta do Conceição. Dizia-lhe este que, certo de não ser correspondido em seus afetos, pedia licença para renunciar à mão da filha. O dr. Cordeiro ficou atônito; a mulher não menos atônita.

— Isto não se faz! clamava ele; isto é uma pelintragem! Quando todos já sabiam do casamento, quando eu… Ora esta! que ordinário!

A mulher persignava-se com a mão esquerda, e não podia crer no que dizia a carta; havia porém, em seu gesto, alguma coisa que mostrava não lhe ser desconhecida a origem do mal. A verdade é que ela desconfiava já de alguma coisa; nunca porém chegara a recear o que se deu, porque atribuía a um simples capricho — uma leviandade de Carlota.

No dia seguinte, o dr. Cordeiro resolveu mandar chamar o Conceição, para entender-se com ele acerca de um ato que lhe parecia desairoso à família; mas no momento em que escrevia a carta, entrou Carlota no gabinete, e, ditas as primeiras palavras, o pai deixou cair a pena da mão.

VI
— Papai, o Conceição foi autorizado por mim, disse Carlota. Já não me quero casar com ele.

Foi neste ponto que a pena caiu das mãos do dr. Cordeiro, enquanto a alma lhe caía aos pés. O pai contraiu as sobrancelhas, como a fazer uma interrogação muda; a filha repetiu o que dissera.

— Não quero casar.

— Mas por quê?

— Não gosto dele.

— Mas gostavas antes, aceitaste a mão que ele te ofereceu, marcou-se a data do casamento, preparamo-nos, dei notícia aos parentes e amigos, e…

— E não me caso, concluiu Carlota.

— Mas então quem pensas tu que eu seja, eu e tua mãe, e a sociedade? Isto é brincadeira de bonecas? Sabes que a reputação de uma moça não se expõe assim à curiosidade dos outros, e as caçoadas…

— Não sei nada disso, interrompeu outra vez Carlota, sei que não me caso com o Conceição.

— E se eu te obrigar…

— Não me caso.

O dr. Cordeiro ergue-se trêmulo de cólera, mas a filha não se alterou, nem empalideceu; deixou-se estar a olhar para ele com tranqüilidade; o dr. Cordeiro tomou a sentar-se, mas silencioso e abatido. Ao fim de alguns minutos:

— Não foi essa, disse ele, não foi essa a educação que eu e a tua mãe te demos; não foram esses os exemplos; e nunca supus que se dada esta cena entre nós. Faça-se a tua vontade; retira-te.

Carlota obedeceu e saiu.

De tarde, quando o Lulu Borges lá apareceu, chamou-o o dr. Cordeiro ao seu gabinete, para lhe contar tudo. Lulu Borges era já uma espécie de confidente obrigado do velho médico.

— Sabe? perguntou este logo que ficaram a sós.

— O quê?

— O Conceição…

— Que fez?

— Escreveu-me restituindo a palavra dada; diz que não se casará com Carlota.

Lulu Borges sabia perfeitamente de tudo, porque Carlota tudo lhe escrevera; mas era matreiro como poucos, abriu a boca espantado; depois como lhe ocorresse outra idéia, fechou a boca e baixou os olhos, dando ao rosto um ar de vexame e remorso.

— Que lhe parece o pelintra? disse o dr. Cordeiro.

Silêncio de Lulu Borges.

— Na verdade, vir pedir uma moça, preparar-se o casamento, escrever uma carta daquelas…

Silêncio de Lulu Borges.

— Só esganando-o, concluiu o médico. E depois de uma pausa:

— Ah! meu caro Borges, nunca tenha filhos! não se case! poupará grandes amarguras.

Mas porque o silêncio de Lulu Borges continuasse, perguntou-lhe o médico se não tinha ao menos uma palavra de consolação para ele, em tão desagradável conjuntura.

— Consolação? repetiu Lulu Borges. E a quem a irei eu pedir? De consolação preciso eu, doutor; de consolação e de piedade, porque vejo a sua dor, e vejo… que… não, nunca… adeus…

— Que é isso?

O Lulu Borges levantara-se; o médico deteve-o.

— Onde vai?

Não respondeu o secretário da sociedade patriótica; deixou-se estar a olhar para o chão, com um ar de confusão e vergonha. O dr. Cordeiro não podia sequer raciocinar acerca do que via; tinha tal entusiasmo por Lulu Borges, que por alguns segundos esqueceu inteiramente o episódio da filha. Instou mais, instou muito com Lulu Borges; este determinou-se então a dizer tudo.

— Saiba…

Uma pausa.

— O quê? disse o dr. Cordeiro.

— Saiba…

E suspendeu-se o secretário; uma idéia luminosa e diferente lhe atravessou o cérebro, e, prestes a confessar-se causador do mal, resolveu apresentar-se simplesmente no caráter de reparador. Era mais patético, e sobretudo mais nobre. Mas tendo já começado a outra cena, como faria ele para passar à nova? Pareceu-lhe que o melhor era combiná-las, e disse:

— Saiba que eu já suspeitava isso mesmo; e tinha uma dor grande, uma dor calada de ver sacrificada essa moça, tão digna das adorações e da estima de um homem como o Conceição, que sempre apreciei muito. Admira-me o que fez, mas, repito, eu já o suspeitava… E porque suspeitava, entrei a contemplar com simpatia a vítima… não, não direi esse nome, não quero carregar a mão no ato do Conceição. Vítima, não; direi… não direi nada… Diremos o anjo, porque sua filha, doutor, é um anjo de resignação, de bondade, e de boa fé…

— Tem razão, aprovou o dr. Cordeiro.

— De boa fé, continuou Lulu Borges; vi-a então com afeto… e imaginava o que seria quando o Conceição viesse a fazer o que fez; e então resolvi tentar alguma coisa… evitar o golpe… mas ao mesmo tempo não supunha que ele fosse capaz…

— E foi, bradou o médico; foi capaz, e aí está minha filha na boca do mundo, exposta a mil comentários, talvez rejeitada por mais de um pretendente, desde que souber que, sem motivo, sem aparência de motivo, um malandro…

— Rejeitada? disse Lulu Borges.

— Pode ser.

— Nunca!

E Lulu Borges estendeu a mão ao médico, e disse-lhe em tom comovido:

— Ninguém a rejeitará doutor, porque se me julga digno de entrar na sua família, e se ela o quiser, o marido de D. Carlota serei eu.

O pasmo do dr. Cordeiro foi enorme; durante alguns minutos olhou para o secretário da sociedade patriótica, sem ousar dizer nada, porque mal acreditara no que ouvira, tão longe estava daquele desenlace; mas, enfim, o tempo correu, Lulu Borges continuava a estar ali, era aquele o gabinete, e o médico não dormia; a reflexão viu isso tudo, e a realidade dominou logo. Que diria o dr. Cordeiro ao pedido súbito e inesperado de Lulu Borges? Não disse nada; apertou-lhe a mão comovido, agradeceu-lhe em duas palavras mal articuladas e calou-se; depois tornou a falar, mas foi para lhe pedir toda a reserva no que se acabava de passar, enfim, disse francamente:

— Quanto a Carlota, ela será sua, se o quiser, mas então com uma condição.

— Qual?

— O casamento far-se-á imediatamente.

— Essa condição seria a minha; há situações que não permitem demora, e a nossa é uma dessas.

Lulu Borges disse isto com uma atitude e entoação teatrais; e o dr. Cordeiro, que gostava muito de teatro, achou que era aquilo a mais alta expressão da dignidade e que o secretário da sociedade patriótica era um verdadeiro amigo.

Saídos dali, pensou Lulu Borges no modo de industriar a moça, o que fez a tempo de completar a cena por ele começada; de modo que, em vez de impor o noivo ao pai, pareceu recebê-lo com resignação.

— Não te obrigo a nada, disse o dr. Cordeiro; aceita-o se quiseres; mas se o quiseres, fica certa de que terás um marido digno.

— De certo.

— Aceitas?

— Aceito.

A mãe da moça desconfiava de que havia alguma coisa, segundo já ficou dito atrás, mas vendo o marido crer alguma coisa que não era a verdade, não quis dizer qual era esta, e com o seu silêncio deixou ao lado da felicidade, a ilusão. Lá consigo, pareceu-lhe que o Lulu Borges era um pouco velhaco, mas como lhe parecia bom, afetuoso e de costumes puros, e visto que a filha o amava, consolou-se com a idéia de que não há perfeição no mundo.

Marcou-se desde logo o dia do casamento, e tiraram-se os papéis, com uma presteza rara. Todos os motivos convergiam para o ponto de realizar o casamento logo e logo: — o amor da noiva, a cobiça do noivo, o capricho ou a dignidade ofendida do pai.

— Mostrarei àquele pelintra, que não zombou de mim como pensava, dizia consigo o médico, e dizia-o muito contente.

Quanto a Ernesto, que encontramos uma vez no teatro de S. Januário, no dia em que soube do casamento de Lulu Borges e Carlota não se deteve um instante; foi ter com o amigo.

— Deveras?

— O quê?

— Casas-te com a Carlota?

Lulu Borges hesitou um instante; depois disse que sim.

— Mas… então…

— O outro despediu-se, eu caso-me. Não te disse logo, porque ficou convencionado entre nós todos a maior reserva. Vejo que a coisa está pública.

— Em toda a parte.

— Pois caso-me.

— Então ganhaste?

— Que te dizia eu? Ganhei; tudo está em querer. Quis; venci.

Fez-se o casamento no dia aprazado com um estrondo que deu muito que falar em toda a Gamboa; foi uma festa esplêndida; e o conto, acabaria aqui, se todos os contos acabassem pelo casamento, mas não é assim, e o casamento é muita vez um prelúdio, em vez de um desenlace. Este foi prelúdio; mas o desenlace não tarda.

VII
Deixamos Carlota casada, no fim do capítulo anterior, casada com o matreiro Lulu Borges, que abalou enfim o dente nos cabedais do crédulo sogro; deixemo-la durante os primeiros seis meses, os primeiros oito, os primeiros doze; é melhor; demos tempo ao tempo.

— És feliz? perguntou-lhe o dr. Cordeiro, dois dias depois do casamento, indo visitá-la, na Rua da Imperatriz.

— Sou, disse ela.

E tanto a pergunta como a resposta eram desacertadas e importunas. Não bastam dois dias para conhecer a felicidade conjugal; e os dois primeiros dias são sempre a felicidade, quando a vontade liga duas criaturas.

Não obstante esta reflexão que devera ter ocorrido ao nosso bom médico, a verdade é que ele acreditou dever fazer a pergunta, e deu-se por satisfeito com a resposta. Aliás, o dr. Cordeiro continuara a morrer de amores pelo secretário da sociedade patriótica, a achá-lo o mais simpático dos rapazes, o mais afetuoso e o mais digno. À idéia pois do sacrifício que o Lulu Borges pareceu fazer unindo-se a Carlota, a fim de tapar a boca ao mundo, que aliás nada tinha que dizer, essa idéia coroou o marido de Carlota e o fez para sempre senhor do coração do sogro; e tanto melhor se a filha era feliz: era ouro sobre azul.

Lulu Borges, na verdade, estava contentíssimo com a operação; tinha uma mulher bonita e de algum modo prendada, mas sobretudo pecuniosa, que era para ele o essencial. Carlota fora reqüestada de muitos, e o triunfo, em tal caso, tem um sabor maior, um certo pico, enfim lisonjeia a vaidade. Era, pois, excelente marido o Lulu Borges, atencioso, cortês, quase apaixonado. Parecia ter o único pensamento de fazer a mulher feliz.

— Vamos ao teatro? dizia-lhe às vezes.

— Não.

— Passear?

— Também não.

— Jogar?

— Quisera…

— Diz, meu anjo, o quê?

— Está bom, vamos ao teatro…

— Mas é contra a vontade…

— Não é; estava mesmo com vontade de ir ver a peça nova…

— Não é isso…

— É; juro, dizia Carlota sorrindo.

Saíam; e era Carlota quem delineava as distrações, quem escolhia o teatro, o passeio, a visita, ou o simples jogo ou piano, entre os dois, em casa, sozinhos.

O dr. Cordeiro ia muitas vezes achá-los assim, defronte um do outro, a conversar, ou a jogar cartas, quando os não achava ao piano — ela a tocar, ele a ouvi-la.

— Entre, papai, dizia a moça.

E o dr. Cordeiro entrava contente, e ali passava uma ou duas horas com “os seus filhos”, lá tomava chá, às vezes só, às vezes com a mulher, que estava tão feliz como ele.

No fim de algumas semanas, houve em casa da família Cordeiro uma notícia que alvoroçou a todos. Já se pode imaginar qual fosse: havia no horizonte um netinho. O dr. Cordeiro esfregava as mãos contentíssimo, logo que a mulher lhe deu a nova, e sentiu redobrar os seus afetos de pai. Um neto! Eram os seus sonhos, a sua maior ambição.

— E se for uma neta? perguntava a mulher sorrindo.

— Que tem? Será ainda melhor, porque você é melhor do que eu, replicava com amabilidade o médico.

Não era marear a alegria da futura mãe, e o casal parecia chegar ao cúmulo de todas as felicidades. Se um filho é a maior de todas, eles a tiveram daí a meses, completa e fácil. Nasceu com efeito um soberbo menino, que produziu em casa do dr. Cordeiro o maior alvoroço que ali houve, desde o nascimento de Carlota. Nenhum acidente notável; tudo correu perfeitamente, de modo que, para ser completa a ventura da família, não a recebia ela com lágrimas, mas extreme de todo o dissabor. Se fosse assim até o fim da vida, a vida era uma sorte grande; mas não há vida completa.

VIII
Fui mais prudente do que o Lulu Borges; não falei em dote, assunto de que o noivo tratara, dia antes de casar, fazendo-o com arte e dissimulação, de modo que ao dr. Cordeiro ainda pareceu desinteresse. O dote foi entregue ao noivo, sob a forma de bons prédios, e não se falou mais nisso. Lulu Borges cobrou pontualmente os aluguéis e foi gastando conforme a necessidade; pode-se dizer que era bom administrador.

Um ano depois do casamento, o dote, aliás inocente, recebeu uma forte dentada do jovem marido. Não se soube bem por que motivo, mas pode ser que fosse para pagar os caprichos de uma mulher impura. Digo que pode ser isso, porque o Lulu Borges, estróina de primeira ordem, dissipado, amigo dos prazeres, mal poderia habitar a terra da família; sua vocação era outra, outro o seu mundo, outros os seus hábitos. Simulou uma coisa que não era, e o fez durante largo tempo, maior do que se pudera supor da parte de um estróina emérito; meteu-si em casa, às noites, acompanhou a mulher, os sogros, foi marido excelente e pai extremoso. Mas todos os rios tendem ao leito natural; e o leito natural de Lulu Borges era a rua.

Convém dizer que, sendo ele profundamente velhaco, não fez a mudança, ou antes a restauração, de um só golpe e sem gradação nenhuma. Tão tolo não era ele. Foi devagar, com tática, começou a acostumar a família; ora tinha uma conferência com um sujeito, ora um negócio, ora um amigo doente, ora qualquer pretexto que lhe ficasse a mão; e nisso ajudava-o com muita solicitude o amigo, com quem o vimos, no teatro de S. Januário.

— Teu marido? perguntou uma noite o dr. Cordeiro achando a filha só.

— Saiu, disse esta sorrindo, mas não tarda; foi a uma conferência…

— Sobre?…

— Parece que sobre um negócio; não sei bem o que é.

Era razoável a explicação; aceitaram-na, e não diminuía a confiança nem se alterara a paz. Mas os fatos repetiam-se.

— Não está cá o Lulu? perguntou noutra ocasião o dr. Cordeiro.

— Não, senhor, foi tratar um negócio.

No fim de dez ou doze explicações vagas como esta, o dr. Cordeiro sentiu-se um pouco incomodado, mas nada disse, nem podia dizer, tanto mais quando as doze vezes não foram em noites consecutivas. Ao cabo de dois meses começaram as ausências a ser mais continuadas do que dantes; e a própria Carlota apresentava um rosto menos prazenteiro do que costumava. Um dia chegou a parecer triste e aflita, mas nada disse ao pai nem à mãe, por mais que estes lho perguntassem.

— Sabes que mais? disse o dr. Cordeiro à mulher, cuido que nossa filha não é feliz.

— Por quê?

— Estas ausências…

— Talvez.

— Vê se ela te diz alguma coisa.

No domingo imediato, Carlota foi jantar em casa dos pais, levou o filhinho e a ama, mas o marido não apareceu nem de tarde nem de noite, e foi o dr. Cordeiro quem acompanhou a filha à casa, às dez horas da noite. No caminho, teve impulso de lhe falar, de a interrogar francamente; mas era difícil, deixou o trabalho à mulher. Contudo, à porta, sempre lhe perguntou:

— Teu marido já terá vindo?

— Pode ser, disse Carlota.

Não tinha vindo; chegou à casa de madrugada.

IX
Assim se passaram alguns dias, até que a mãe de Carlota diretamente lhe falou em vão; Carlota não respondeu nada a princípio; depois respondeu negativamente; disse que era muito feliz.

— Não creio, disse a mãe, sente-se que não és feliz.

— Que idéias, mamãe! Por quê?

— Porque sim. Teu marido anda agora fora de casa, nunca vai lá contigo, não está contigo às noites, e eu até já soube que às vezes recolhe-se quase de manhã…

— Às vezes sim; são negócios…

— Negócios?

— Sim, senhora, negócios.

Não foi mais feliz o dr. Cordeiro, que, atribuindo pouca habilidade à mulher, assentou de, por si mesmo, alcançar a verdade. Não alcançou nada; Carlota mostrou-se tão reservada, como da primeira vez.

Decorreram assim umas sete ou oito semanas. Um dia, o médico, estando numa gôndola, ouviu a dois sujeitos, únicos que ali iam com ele, falar de uns amores e escândalos, nos quais entrava o nome do genro; fechou os olhos e prestou ouvidos, mas pouco soube; soube apenas que entrara o nome do genro, e que havia uma mulher de má vida no caso.

— É preciso acabar com isto, pensou ele; aliás, este homem leva a pequena à sepultura. Falemos quanto antes, enquanto é tempo.

Com efeito, nesse mesmo dia o Lulu Borges recebia um bilhete em que o sogro pedia que lhe fosse falar no dia seguinte de manhã; foi; o dr. Cordeiro caminhou sem vacilar ao ponto; disse-lhe que a filha era infeliz, posto se não queixasse, que ele descurava a casa, que não era esposo nem pai. Lulu Borges não pôde esconder o espanto ao ouvir as palavras e censuras do sogro, e, ferido no amor-próprio, reagiu e negou tudo. O sogro, porém, repetiu o pouco que ouvira na gôndola, e Lulu Borges empalideceria, se fosse homem de empalidecer. O que lhe aconteceu foi supor que o sogro sabia tudo.

— Quem lhe disse essas falsidades? perguntou ele.

— Ninguém e todos, disse tranqüilamente o dr. Cordeiro.

— Mentiram-lhe, tornou o genro.

Mas dizendo isto, via-se bem que quem mentia era ele; o dr. Cordeiro disse-lho na cara. Lulu Borges ouviu-o daí em diante sem protestar.

Saindo dali, foi um pouco pensativo para casa, e também um pouco irritado não com o sogro, mas consigo mesmo; podia ter sido mais cauteloso, ao menos em atenção às patacas do doutor Cordeiro, que eram boas, limpas, luzidias: em suma, eram as patacas; e por que motivo brigar com elas?

— Emendemos a mão, disse ele.

Já nessa noite ficou em casa, ficou algumas outras, visitou os sogros em companhia de Carlota, tudo com uma aparência de contrição, assaz completa. Seus impulsos patrióticos renasceram e o secretário tratou de arrancar à inércia a já meio esquecida sociedade. Justamente por aquele tempo, batizou-se o jovem Borges, que recebeu o nome do avô, em atenção às patacas deste, e a festa pareceu reconciliar o marido com a virtude.

— Ainda bem! pensava o dr. Cordeiro; foi bem bom ter-lhe falado com franqueza; o rapaz emendou-se.

E dizendo-o à mulher, esta replicou:

— Pode ser, pode ser.

— Desconfias de alguma coisa?

— Não, não desconfio de nada, replicava ela sem convicção.

Nesse mesmo dia, Lulu Borges veio jantar com o sogro, em companhia da mulher e nunca lhe pareceu tão amigo, tão caseiro, tão bom; e, como o dr. Cordeiro nutria a respeito do genro um grande entusiasmo, de pronto se reconciliou com ele; e tão de pronto que, pedindo-lhe Lulu Borges, no dia seguinte, cinco contos de réis para um negócio que meditava, emprestou-lhos o médico.

— Afianço-lhe que dentro de três meses, farei dobrar esta quantia, disse o genro piscando o olho.

— Velhaco!

Isto aconteceu numa quinta-feira; no sábado, ao meio dia, entrava Carlota em casa da mãe, lavada em lágrimas e desfeita em soluços.

— Que tens?

Carlota deixou-se cair numa cadeira sem dizer palavra; os soluços embargavam-lhe a voz.

X
— Que tens? repetiu a mãe.

Carlota soluçou ainda muito tempo, sem poder falar; a mãe, aflita, beijava-a, cercava-a de todos os lados, pedia que lhe contasse tudo; lembrou-se, o neto teria morrido.

— Aconteceu alguma coisa ao Juca?

— Não, senhora.

— Mas, então que foi? anda, fala…

Carlota pôde finalmente dizer a causa da aflição. Havia já tempos que o marido parecia desprezá-la; vivia quase todo o tempo fora, recolhia-se tarde; às vezes nem se recolhia — ou só o fazia depois do almoço. Carlota lastimara-se a princípio, pedira-lhe de joelhos que não a desamparasse; e a princípio o marido fingiu atender às súplicas; mas depressa se enfastiou, e começou a maltratá-la. Carlota suportou ainda algum tempo os desdéns, as más respostas, as injúrias; um dia quis reagir, mas Lulu Borges depressa lhe abateu os ímpetos, ameaçando-a com um escândalo. Para poupar o escândalo, Carlota calou-se.

— Enfim, disse ela, aconteceu esta noite o que acontece muitas vezes; ele não veio para casa; esperei-o para almoçar, e cansada de esperar mandei pôr o almoço na mesa, e sentei-me. Estava já sentada, com o Juca ao pé de mim, quando ele entrou, e…

— E quê? disse a mãe, depois de curta pausa.

— Perguntei-lhe se queria almoçar; não me respondeu. Irritada, levantei-me, ele segurou-me nos pulsos, e obrigou-me a sentar outra vez; depois disse-me que eu devia pedir dez contos a papai…

— Para quê?

— Ouça. Respondi que não podia pedir mais dinheiro porque papai já nos havia dado muito, e além disso ele já devia alguns adiantamentos; disse mais, que era melhor que ele tratasse de ver um emprego, para não estar a gastar o que era do nosso filho. Levantou-se como uma cobra, e respondeu-me que eu era doida, que naturalmente recusava pedir dinheiro por ele, porque o queria pedir para outro…

— Jesus!

— Finalmente, que viesse pedir a papai, quando não ele me mataria…

— Disse isto?

— Disse; chorei muito, ajoelhei, pedi que nos poupasse mais desgostos; ele ameaçou-me ainda mais, dizendo que eu era tão atrevida como papai, mas que ele havia de ensinar-me… Estava furioso; nunca o vi assim; nunca…

A pobre mãe consolou-a como pôde; Carlota disse-lhe que não sairia mais dali; tinha medo do marido. O dr. Cordeiro soube daí a pouco toda a história, e foi ter com o genro, na ocasião justamente em que este, desesperando da volta da mulher, se preparava para ir à casa do sogro.

Lulu Borges empalideceu.

— Carlota foi lá a casa, disse o médico, pedir-me um dinheiro de que o senhor precisa…

— É verdade que eu…

— O senhor é um miserável! interrompeu o dr. Cordeiro.

Lulu Borges conteve-se; era fácil; viu que tudo estava perdido ou quase perdido. Naturalmente Carlota contara tudo, e o sogro vinha tomar-lhe contas. Em tais transes, ele era flexível e hábil; deixou passar a onda por cima da cabeça e surdiu fora.

— Não me julgue sem ouvir-me, disse ele; há de dizer que tenho gasto muito, é verdade; que tenho desbaratado o dote de Carlota e o que o senhor me emprestou por diversas vezes, é também verdade; mas se soubesse quantos esforços tenho feito! se soubesse que um caiporismo…

— O senhor é um miserável! repetiu o médico.

Desta vez Lulu Borges empalideceu.

Então o dr. Cordeiro continuou expondo tudo o que sabia dele; sabia das mulheres impuras, das noitadas do jogo, em que ele perdia e desbaratava o dinheiro ajuntado pelo sogro; lançou-lhe em rosto a grosseria com que tratava a mulher, o desamor com que a deixava sozinha para ir-se a orgias e vícios de toda a sorte; acabou intimando-lhe a separação do casal.

Lulu Borges sentiu-se naufragar, viu que nada pudera encobrir, e ouviu aterrado a ordem de separação. A separação era para ele a morte das últimas esperanças.

— Nunca! bradou ele.

— Por que nunca? disse sorrindo amargamente o sogro.

— Porque minha mulher é minha e meu filho é meu; o senhor tem o direito de me não dar o seu dinheiro, mas não tem o de me arrebatar a família. Faça um processo se quer, provoque o escândalo…

O dr. Cordeiro ficou rubro de cólera.

— Miserável! bradou.

— Provoque um escândalo, repetiu Lulu Borges.

E certo de que o pai amava a filha e o neto e não quereria pô-los na boca do mundo, continuou a bradar que tinha direito à mulher e ao filho, e que não abriria mão deles por nenhum preço.

— Nenhum preço? perguntou o médico.

— Nenhum.

— Talvez este…

E dizendo isto o dr. Cordeiro meteu a mão no bolso, de onde tirou a carteira. Lulu Borges olhou para ele espantado, sem saber o que o sogro ia fazer, nem que resposta lhe havia de dar. O médico tirou da carteira uma letra.

— Vê?

— Vejo.

— Conhece a assinatura?

Lulu Borges ficou branco como um defunto. A letra era falsa, tinha sido fabricada por Lulu Borges alguns meses antes, para obter dinheiro; chegara na véspera às mãos do dr. Cordeiro, que a pagou.

— Quem lhe deu esse papel? disse o genro, sem reparar nestas palavras.

O dr. Cordeiro não lhe respondeu; ameaçou-o com a letra; e o genro ficou aterrado. Então mudou de tática, e não já ameaçou, mas implorou o perdão e a amizade do sogro, prometeu emendar-se, trabalhar, fazer feliz a mulher e o filho; disse que a lição era cruel, e que nunca mais — nunca dos nuncas — procederia do modo por que até ali fizera. O dr. Cordeiro ouviu-o calado, e quando o outro pareceu acabar, esperando uma resposta:

— Não, disse ele; nada mais pode haver entre nós. Eu quero a separação; arranjemos a coisa de maneira que lhe possa dar alguns recursos; mas a reunião da família é impossível! É impossível! Foi o senhor que assim o quis.

XI
Fez-se a separação nos termos assentados pelo dr. Cordeiro; a filha deste e o menino vieram para casa do médico. Estava interrompida a vida de Carlota.

Quando esta pôde refletir sobre tudo o que lhe acontecera, antes e depois de casar, mediu o abismo em que caíra e viu todo o horror da situação; estava fora dos tormentos, mas estava quase só — com um filho sem pai — esposa sem marido — no meio de seus velhos pais, que podiam morrer de um dia para outro, não lhe deixando a ela, nenhuma outra afeição a não ser de uma pobre criança. Tal era a situação. Carlota chorou muita lágrima silenciosa. No meio desse cismar solitário ocorreu-lhe mais de uma vez a pessoa do Conceição, tão grave, tão afetuoso, tão capaz de a fazer feliz — o Conceição que ela desprezara para seguir um homem que mal conhecia. Depois lembrou-lhe o teatro de S. Januário, e da curiosidade que ela tivera de um dia de ir ali; lembrou isto e suspirou:

— Funesta curiosidade!

Um ano depois morreu a mãe de Carlota, dois meses mais tarde o pai. Carlota ficou só no mundo, com o filho; felizmente salvara ainda na boa parte dos cabedais; tinha alguma abastança; tratou de educar filho. Tentou Lulu Borges reatar os laços antigos, logo depois da morte do dr. Cordeiro, mas foi em vão; a mulher resistiu, resistiu por todos os meios. Era impossível unirem-se, Lulu Borges causava-lhe asco.

Mas um dia morreu o Lulu Borges, e foi para ela uma felicidade; Carlota respirou como se lhe tirassem um peso de cima. Chegou a pôr luto, mas eram só aparências de sociedade.

— Agora viverei para meu filho, pensou ela.

E dizendo isto suspirou, porque apesar de tudo ela tinha ainda muito amor no coração, e quisera tê-lo empregado em um marido digno e bom. Protestou porém que não se casaria; tinha-se enganado uma vez, e era bastante.

Um dia, porém, um ano depois de viúva, tendo o filho saído a passeio com a aia, voltou trazendo um papelinho na mão.

— Foi um homem que me deu, disse ele.

— O que é?

— Disse que entregasse a mamãe.

— A mim?

Carlota abriu e leu:

Perdoei-lhe um dia e amei-a sempre. Sei que padeceu muito; posso enxugar-lhe as lágrimas, se algumas lhe restam.
Era um bilhete do Conceição. A viúva viu-se ao espelho; não tinha as graças de outro tempo; e por outro lado, se alguma coisa possuía, Conceição também enriquecera. Que poderia inspirá-lo senão o amor nunca extinto?

— Há então amores daqueles?

— Há, respondeu-lhe o Conceição daí a algumas semanas, porque o casamento foi efetuado logo.

Tinha pressa de ser enfim feliz; podia já ser tarde!

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