De olhos fechados – Conto de Emerson Silva

De fronte a enfermaria meus olhos permanecem fitos no seu Robervaldo Pereira Magalhães. Agora na cadeira de rodas, ele faz questão de me comover com lembranças, responsáveis por estruturar aquilo que pode ser reservado dentro de mim como “humano”. De seus lábios não sai uma palavra se quer. Não por causa de seu bigode crescido que já cobria todo exercício labial possível de sua boca. Sua triste mudez fora devido a uma infecção generalizada em seus dois pulmões. Mesmo assim sua voz permanecia clara em mim enternecida mediante seus olhos. Não me refiro a sua cor. Não há história, neste exato momento, naquele verde que quando criança desbravava para mim reinos fantásticos, ou quando adulto, reluziam na presença de seus netos. Mas são seus olhos fechados que me prendem. Esse véu, outrora aberto às ternuras e às satisfações, não possui mais forças para permanecerem neste estado. No esconderijo residente entre suas pálpebras fechadas é que ouço histórias surpreendentes sobre nós e sobre o mundo.

Ele foi um dos primeiros a me ver abrindo os olhos. Feliz pela minha demonstração de vitalidade levou-me à Igreja consagrando-me aos caminhos do Senhor. Era mais do que antropologia a sua crença. Certa vez, me aproximei dele em um de seus momentos de oração. Fascinava-me a crença de se falar com quem não se ver. Sem entender muito bem esse excurso percorrido pela alma humana, perguntei por que ele fechava os olhos enquanto orava. Ele me respondeu que assim falava melhor com Deus. Algo que talvez me faça entender por que agora ele não os abre mais. Fecho também os olhos para o que vejo, mas parece que Deus permanece escondido nos olhos dele, pois não O consigo ver.

Ora abertos, ora fechados, seus olhos cumpriam a função sacramental para o qual foram predestinados. Reitero minha convicção, independente dos posicionamentos de Robson Souza Cruz, psicólogo da família: Não tive complexo de Édipo! Enquanto abertos, seus olhos nunca me permitiam a sentimentos de disputas, ou egoísmos. E agora fechados, eles se encontram na melhor posição possível para quem não deseja ver o mundo em seu estado atual. Desejaria muito que eles voltassem a abrir, mas controlo desumanamente meu desejo. Não incido sobre eles (seus olhos) os olhares de Maria Eduarda, minha primogênita que já escreve em linhas tortas o nome de todos os membros da família. Não incido sobre eles os olhares de Dona Adelaide, seus olhos já não percorrem com a mesma intensidade os olhares do meu pai, sua carne já não recebe mais seus olhares cálidos, pois já não mais se reconhecem. O Alzheimer os divorciou sem litígio. Seus olhos acredito eu, talvez terminem assim. Fechando eles, falo ao Mistério que faz com que os meus olhos permaneçam abertos. Se o meu pai os fechar, tenho certeza que os olhos de Deus continuarão abertos sobre mim. Deus também é Pai!

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