Meu aplauso ao dr. Promotor de Justiça, que, contrariando a índole punitiva de sua classe, se recusou a contribuir para que um casal fosse parar na cadeia pelo simples fato de conversar em casa, de madrugada, em trajes de dormir. Do ato desse representante do Ministério Público se conclui afortunadamente que em nosso país bater papo ainda não é crime nem contravenção, ao contrário do que pensa a polícia; pois a polícia pensa tão estritamente que lhe parece contravenção até mesmo o colóquio na intimidade do lar, a horas mortas, com a indumentária leve que o local e o momento aconselham e que o calor torna imperativo.
Longe de ser acusado, o casal merecia louvor e prêmio, pois, sem saber, estava restaurando o casamento em uma de suas características essenciais e mais belas, ou seja, o diálogo; diálogo infindável, não apenas pela noite afora, mas pela vida afora e, em certo sentido, para além dos tempos; confrontação contínua de duas partes irmãs, que dessa maneira se identificam e se reúnem, restabelecendo aquele mito grego segundo o qual, no princípio, os seres humanos eram completos e bivalentes, e só mais tarde se deu a lamentável separação que é do conhecimento público.
O que impressiona antes de tudo nos casais contemporâneos é o silêncio a que eles se votam, e que só se desfaz diante de terceira pessoa, quando então os dois começam a falar, não entre si, mas com ela. E conversaram tanto um com o outro, quando namorados e noivos. Casou? Calou a boca. Se a gente encontra na rua um homem e uma mulher caminhando juntos com ar de procissão de enterro ou de indiferença total, não é difícil imaginar que se trata de marido e mulher, às vezes até se estimando, mas ao mesmo tempo acostumados e desacostumados ao convívio. E não é porque lhes falte assunto, a vida é assunto contínuo, a própria relação entre eles uma fábrica de assuntos, mas não querem botá-la para funcionar, a menos que prefiram o funcionamento alternado ou fora do circuito, cada um comentando com quem melhor lhe pareça a matéria numerosa e variada dos dias.
Por isso, o casal quase processado porque papeava noite alta no quarto faz jus à nossa admiração. É um pobre casal que mora em habitação coletiva, num sobrado carcomido de Botafogo. Imagino que se percam de vista ao amanhecer; à noite, reencontrando-se, têm tanta coisa para se contar que a conversa — oaristo, é o termo próprio — se prolonga por horas e horas e não se esgota; e conversando e rindo, rindo e conversando, pois isto não exclui aquilo, antes o provoca, os dois, em suas roupas despretensiosas, me parecem sacerdotes de uma religião perdida por incúria dos fiéis, mas que promissoramente renasce no interior de uma casa de cômodos.
Dir-se-á (e foi o que disse a polícia) que os demais moradores da casa de cômodos não gostam de ouvir conversa alheia, e deixam de dormir por causa de charla matrimonial. Tenho pena deles, não porque percam o sono, mas porque, abominando a conversação, esse prazer que antes de ser socrático já era traço da natureza humana, a repelem até nos vizinhos, e querem implantar a mudez como forma ideal de vida em comum. Coitados, precisam de uma cura de readaptação à palavra, à doce palavra de conversa íntima, tecida de pensamentos, notícias, piadas, delicadezas e deliciosas bobagens. E que às vezes nem chega a ser palavra, como no caso de uns namorados que vi conversando na praia, esquecidos de tudo e usando língua não dicionarizada: “Vlns?” “Zj swl.” “Mmmm.” “Yxk!” “…rqç.” Não era código nem nada; era amor, com seu vocabulário e sua sintaxe variadíssimos.
À polícia, tão empenhada em velar pela tranquilidade noturna, eu pediria que tomasse menos nota dos barulhos internos e mais dos externos. Numa terra em que há uma noite cada sete dias em que ninguém consegue tirar uma pestana — a noite de preparação da feira livre — é pena que ela fique de ouvido colado aos tabiques para pegar conversa de marido e mulher — a não ser que fosse para homenagear os conversadores com um ramo de violetas e a Ordem do legítimo Cruzeiro do Sul.