Encontro no Amazonas – Conto de Rubem Fonseca

Soubemos que ele havia se deslocado de Corumbá para Belém, via Brasília, de ônibus. De tanto andar atrás dele eu já sabia que tipo de pessoa ele era. Estava fugindo, mas isso não o impedia de ver todos os museus e igrejas no seu caminho.

O único museu que havia em Belém era o Goeldi. Ele passara dois dias seguidos visitando o Goeldi, mesmo tendo razões para suspeitar que nós estávamos chegando perto. Todo mundo o havia visto.

“Ele ficou um tempão olhando os peixes. Tinha um caderno grosso cheio de anotações”, disse o homem do aquário.

“Se isso foi anteontem é possível que ele ainda esteja por aqui”, disse Carlos Alberto.

Carlos Alberto estava naquela missão comigo. Sentamos num bar e bebemos cerveja. A cerveja do Pará não era ruim. Em qualquer lugar do mundo pode-se tomar cerveja sem susto.

“Qual será o nome que ele estará usando agora?”, perguntou Carlos Alberto. “Não sei. Mas não será nenhum dos que conhecemos.”

Ele havia entrado pela fronteira da Argentina e estava subindo para o norte. Sabíamos que chegara a Brasília e dali viera para Belém de ônibus, varando, só nesta etapa, mil novecentos e um quilômetros de estrada. De Belém, se tivesse usado avião de carreira, ele poderia ter ido para Macapá, ou para Santarém, ou para Manaus e dali para Boa Vista, mais para o norte, junto da Guiana e da Venezuela. Ou então para noroeste, Porto Velho e depois Rio Branco, junto das fronteiras do Peru e da Bolívia.

Achar o hotel dele em Belém fora muita sorte nossa. Um motorista que fazia ponto na rodoviária se lembrava dele. Era o Hotel Equatorial. O empregado da portaria informou que ele indagara sobre um vapor que subia o rio até Manaus. A passagem havia sido comprada na agência de viagens Lusotour.

“Claro que lembro dele, difícil seria esquecê-lo. Ele queria uma passagem num dos navios que sobe o Amazonas até Manaus”, disse o homem da agência.

“E ele seguiu no navio?”

“Não sei. Creio que sim. Não temos o controle do embarque. Aquilo é muito desorganizado. Mas ele pode ter ido de avião, pois tinha uma reserva para Manaus.”

No aeroporto também não obtivemos informações. Ele poderia ter embarcado ou não. Os nomes da lista de passageiros nada esclareciam. Inesperadamente, as pessoas pareciam não mais tê–lo visto, como se isso fosse possível.

Tiramos cara ou coroa para ver quem ia direto de avião para Manaus, esperar por ele, caso ele tivesse ido para lá, e quem ia subir o rio fazendo uma verificação em cada vila ou cidade em que o navio parava, até Manaus.

Coroa era Manaus e saiu para Carlos Alberto. “Você sabe o que fazer, não sabe?”

“Pode deixar”, disse Carlos Alberto.

Carlos Alberto estava há pouco tempo com a gente. Era ainda muito jovem, mas muito aplicado.

“O aeroporto de Manaus é moderno e com muito movimento”, eu disse. “Pode deixar.” Carlos Alberto só falava muito quando era sobre a mãe que ele estava escolhendo. Levei-o até o aeroporto. Esperei o avião partir.

Eu tinha uma semana para ficar em Belém, esperando o navio. Acordava às cinco da manhã e ficava ouvindo o rádio, para me familiarizar com as coisas locais. Depois tomava banho, vestia uma calça e uma camisa, e saía. O hotel onde eu estava era do tipo médio, apenas com turistas brasileiros do norte e do nordeste.

Eram sete e meia quando cheguei ao museu. Entrei pela porta dos funcionários, sem perceber que ainda não estava aberto para o público.

Fui até a jaula dos animais. Dentro de poucos anos não existiria mais nenhum, toda a fauna amazônica estava sendo dizimada. Quando me viu, a onça começou a brincar; corria e rolava de barriga para cima, como se fosse um gato. Outro animal muito bonito e elegante era a suçuarana, uma espécie de leopardo; seu pelo lilás lavado brilhava na claridade matutina. Os macacos, porém, pareciam animais tristes, infelizes e maníacos. Havia um que escondia o rosto agarrado nas barras de ferro. Suas mãos eram parecidas com as minhas. O rosto e o olhar do macaco tinham um ar de desilusão e derrota, de quem perdeu a capacidade de resistir e sonhar.

O restaurante do hotel era pequeno, mas muito eficiente. Eu comia diariamente unhas de caranguejo ao vinagrete e camarões regados ao vinho branco do Rio Grande do Sul. Não adiantava ficar nervoso. Eu tinha que ser paciente. Ele podia estar subindo o rio, até Manaus. Se ficasse no meio do caminho eu o encontraria, a menos que ele desembarcasse, pegasse um barco e se metesse num dos afluentes do Amazonas. Então ele desapareceria sem deixar traço e nem todos os poderes do mundo seriam capazes de achá-lo. Mas ele não queria e não podia desaparecer na Amazônia. Ele também tinha a sua missão.

Se quisesse sair do Brasil de avião, via Manaus, como parecia, ele podia ir ou para o Peru ou para a Bolívia, ou Venezuela ou Colômbia. Então nós dificilmente acharíamos o seu rastro outra vez.

Na Argentina ele tinha se dado mal. Também no Paraguai. No Brasil ele fizera um bom trabalho, considerando as circunstâncias, até que nós o apertamos — custamos a descobrir quem era — e ele começou a se deslocar do sudeste, onde agia, para o norte, de maneira insólita que quase nos enganou.

Uma cidade pequena para nós era a que tinha até um milhão de habitantes. Era assim Manaus. Nas pequenas cidades tínhamos que ser mais cuidadosos, os forasteiros eram facilmente detectados. Além de outras dificuldades.

Na véspera do meu embarque fui tomar um sorvete de frutas perto da praça Bernardo Santos. Era um lugar que tinha mais de oitenta tipos de sorvete. Eu queria tomar um sorvete de bacuri.

“Está bom?”, ela me perguntou. Era uma garota miudinha, loura, que surgira inesperadamente perto de mim. “Você é de fora?”

“Sou”, respondi. Não adiantava mentir que não era. Belém era uma cidade grande, de mais de um milhão de pessoas. Talvez eu passasse despercebido, mas mentiras óbvias deviam ser evitadas. A garota evidentemente não era nenhum risco, mesmo assim eu agiria com ela de acordo com o figurino.

“De onde?”

“Porto Alegre.” Era mentira, mas eu conhecia Porto Alegre bem. “Do outro extremo. Quantos quilômetros até lá?”

“Milhares. Quatro mil, mais ou menos.”

“Eu sou de Macapá. Estou estudando aqui, sou a ovelha negra da família.”

Seus olhos eram de um verde esmaecido. Com o seu olhar ansioso e o rosto pequeno ela parecia o macaco triste do Goeldi.

“Também sou uma ovelha negra”, eu disse. Fomos andando e tomando sorvete.

“Para onde você vai agora? Quer jantar comigo?”, perguntei.

Comemos churrasco de tambaqui, no restaurante do hotel. Os peixes da Amazônia são todos muito gostosos. Sempre que ia para o Norte eu só comia peixe. A cozinha do Pará é muito rica. Dizem os gastrônomos que é a única genuinamente brasileira.

Ela comeu pato no tucupi. Com tanto peixe, tucunarés, pirarucus, tambaquis, pintados e camarões, lagostas, caranguejos, eu não iria perder tempo comendo pato como se estivesse na França.

No restaurante baratinei a menina. Ela disse que tinha dezenove anos, era de Macapá, o pai comerciava com madeiras (um dos que estavam devastando o Brasil), recebia uma mesada, morava sozinha, ia fazer o vestibular de administração na Universidade de Belém. Era tudo verdade, eu podia ficar tranquilo.

Fomos para o meu quarto. Seu corpo pequeno era muito bem–feito. Porém nua ela parecia mais velha e flácida.

“Posso ficar para dormir?”, ela perguntou. Isso acontecia muito comigo. Às vezes, nas cidades pequenas, eram cães que me seguiam pelas ruas até onde eu estava morando. Sempre lhes dava comida e tapinhas na cabeça.

“Pode”, eu disse.

Durante a noite fiquei mais tempo acordado do que dormindo.

Foi uma semana de tédio. Carlos Alberto telefonou de Manaus dizendo que estava a postos. Havia feito um reconhecimento completo no aeroporto.

“A cidade está cheia de bagulheiros. O que tem de gente carregando caixa de papelão com equipamentos eletrônicos não é normal. Gente do Brasil inteiro. São uns malucos. Quem foi que inventou essa porcaria de Zona Franca?”

“É uma longa história que não vou explicar pelo telefone”, eu disse. “Encontrou a tua mãe?”

“Ainda não. Aqui só tem burguesa nojenta de short, paulistas e cariocas e paranaenses e gaúchas, olhando pra vitrine de loja de importados. Umas escrotas perfumadas.”

A garota de Macapá se chamava Dorinha. Maria das Dores. Dorinha, dor pequena, dorzinha. Era assim que eu a chamava.

“Dorzinha, vou embora hoje.” “Posso ir com você?”

“Eu volto.”

“Jura?”

Juramentos não valem nada. Os meus menos ainda. “Juro.”

Eu viajava com pouca bagagem. Uma bolsa a tiracolo e uma mala-saco de ny lon. Dorzinha carregou o saco até o cais Mosqueiro Soure. A bolsa eu nunca largava. Não podia, é claro, seria um erro.

No cais havia centenas de pessoas carregando um montão de bagagem, bujões de gás, colchões, mobílias, sacos de mantimentos.

O Pedro Teixeira tinha uma primeira classe, com cem passageiros, e uma terceira. Eu havia conseguido um dos poucos camarotes com dois lugares. Um lugar fora bloqueado. Eu não queria viajar com ninguém. A maioria dos camarotes de primeira tinha quatro beliches, geralmente ocupados por pessoas que não se conheciam. Apenas dois camarotes, chamados de luxo, tinham banheiro próprio e ar-refrigerado. Todos os outros passageiros usavam os banheiros comuns.

Meu camarote era o 30, e ficava a boreste.

“Não deixe de me escrever”, disse Dorinha. “Adeus, Dorzinha”, eu disse, beijando-a no rosto.

Pelo alto-falante colocado no cais anunciaram que os passageiros da terceira classe já podiam embarcar. Eles correram para o convés da popa e armaram suas redes.

As pessoas se colocavam umas sobre as outras, as redes se tocando, num emaranhado que parecia algo inventado pela natureza,uma flor do fundo do mar. Uma rede de redes que não poderia ser planejada e criada por nenhum arquiteto ou engenheiro, mas que brotou, em apenas meia hora, da necessidade e da ânsia das pessoas.

Estava muito quente. Tirei a cadeira do meu camarote e coloquei-a no corredor. Dali eu avistava as redes. Uma porta de comunicação estava aberta, mas os passageiros da terceira apenas olhavam para o corredor da primeira com curiosidade reverente. Um homem acompanhado da mulher e do filho atravessou a porta. Passou por mim e o ouvi dizendo — “esse aí deve ser danado de importante”. Não havia rancor na sua voz. Ele aceitava que o mundo tivesse pessoas danadas de importante que viajassem de camarote e possuíssem uma cadeira para sentar, no corredor, e outras que viajassem em redes dependuradas, como réstias de cebola.

O camarote 28 (a boreste os camarotes tinham números pares; a bombordo, ímpares) era ocupado por três homens. Um deles começou a conversar comigo. Disse que era advogado em Goiás e que estava se mudando para Parintins.

“Lá só tem um juiz, um promotor e um advogado. Não adianta ficar em Goiânia, a concorrência é muita.”

O nome dele era Ezir. No dedo anular da mão esquerda exibia um enorme anel de grau com pedra vermelha.

Meu camarote, além dos beliches, tinha dois armários e uma pia. Verifiquei as portas — uma de venezianas, e outra, por dentro, com uma tela, para evitar os insetos. O taifeiro me havia dado duas chaves — uma do camarote e outra do banheiro.

O banheiro, mesmo antes da viagem começar, já estava sujo.

Três apitos longos ecoaram na noite morna. O navio começou a se deslocar.

Uma brisa fresca e agradável soprava. A porta de comunicação com a terceira classe foi fechada por um taifeiro. Senti um certo alívio. Pobreza me incomodava, como se fosse uma doença contagiosa. Eu me irritava com aquela gente suportando tanta humilhação e sofrimento.

Eram dez horas. Tirei toda a roupa e deitei-me no beliche inferior. Dormi mal. Sonhei com ele. Não era a primeira vez. Eu nunca o tinha visto mas sonhava com ele. Com a descrição que me haviam feito dele. Eu queria vê-lo, encostar a mão no seu corpo, estava cansado de correr atrás dele inutilmente.

Levantei-me às quatro e meia. No camarote não havia toalhas nem sabão. Eu tinha uma toalha na minha bagagem e um pequeno sabão do hotel. Vesti um calção e saí, carregando minha bolsa. Um vento frio envolveu meu corpo. O navio inteiro dormia.

O banheiro tinha três privadas e dois chuveiros. Tentei defecar, como sempre fazia ao acordar, mas não consegui. Tomei banho e enxuguei apenas as nádegas, o pênis e os testículos, para poupar a toalha. Minha bolsa ficou sempre perto de mim.

Voltei ao meu camarote e vesti uma calça de brim e uma camisa. Fui para o convés superior aberto, da popa.

O dia raiou nublado, quase às seis horas. Ainda estávamos no rio Pará. O café seria servido às sete horas. O almoço das onze às doze e o jantar das dezessete às dezoito horas.

Os passageiros da terceira haviam sido segregados no convés inferior, mas alguns conseguiram escapar e dormiam nas cadeiras de descanso de cima.

Às sete horas fui para a mesa de refeições. Eu tinha que agir como um passageiro comum, e decidira adotar a identidade de um turista do sul, interessado em visitar a Zona Franca para fazer compras.

Eu havia estado em Manaus logo nos primeiros anos da Zona Franca. A cidade me dera a impressão de ter mais farmácias do que qualquer outra em que eu já estivera. E o espetáculo dos compristas carregando sacas coloridas das importadoras dava-lhe um ar materialista e corrupto. Fui comer, no melhor restaurante da cidade, um churrasco de pirarucu. Os frequentadores do restaurante, que me pareciam as pessoas finas da terra, eram como os fregueses de qualquer churrascaria do Méier ou do Brás. Só que não havia pretos e mulatos. Usavam relógios vistosos, vestiam-se como os sulistas, de paletó e gravata. Fui para a cama com uma prostituta de quatorze anos, que tinha dentes postiços.

Minha mesa, no navio, tinha, contando comigo, dez pessoas. Um casal estrangeiro, ambos louros, na casa dos trinta anos; duas mulheres mais velhas, possivelmente compristas; três homens que haviam se conhecido na viagem e dormiam no mesmo camarote, sendo um deles o advogado Ezir, e um casal que só vim a conhecer na hora do almoço, pois dormia até tarde.

Os estrangeiros falavam em voz baixa. Eram educados e prestativos. Estavam no centro da mesa e passavam os bules de café e leite e o açucareiro de um lado para o outro, com um sorriso. Eu conhecia esse tipo de gente. O homem carregava uma Nikon, para documentar a viagem e mostrar os slides para os amigos. Fotografava a imensidão das águas e a pobreza das pessoas e dos barracos na margem do rio.

Tentei descobrir a origem do casal pelo sotaque. Havia ecos do sotaque italiano, reminiscências sonoras do francês, uma certa guturalidade germânica. Não era difícil concluir que eram suíços.

Depois do café a suíça foi para o convés tomar banho de sol. Seu corpo era bem-feito. No café ela se alimentara parcamente, como alguém fazendo regime para manter o peso, recusando as bananas servidas, o que não acontecera com o homem. O pé da suíça, porém, era muito feio; como a maioria das mulheres, ela tinha calos nos dedos e nos calcanhares; o dedo grande era torto; mas suas pernas eram bonitas.

Sempre que passávamos ao largo dos barracos da margem do rio, canoas se aproximavam do navio, tripuladas por mulheres, com uma ou duas crianças, que pediam coisas em gritos que pareciam ganidos de cachorros, como se esperassem que os passageiros lhes jogassem coisas, comida talvez, roupas. Mas não vi isso acontecer uma vez sequer.

Na hora do almoço conheci o casal que faltava na mesa C. O homem era moreno e forte, tinha bastos cabelos negros ondeados, um bigode grosso e usava óculos escuros. Parecia, inicialmente, sinistro e ameaçador. Ela era magra, queimada de sol, alta e mais jovem do que ele. Devia ter no máximo uns vinte anos. Os dois riam muito, descontraídos.

Os outros homens da mesa conversavam com Ezir. Um deles era funcionário aposentado do governo do Pará e ia passar o Natal com a família. O outro era funcionário do Ministério das Relações Exteriores, lotado na Comissão de Limites e Fronteiras, um homem grande e falastrão, que sabia muita coisa sobre a Amazônia e gostava de contar histórias pitorescas. As duas mulheres eram pernambucanas, estavam interessadas em aparelhos de som e máquinas fotográficas. “O senhor acha que eles descobrem uma Olimpus escondida no meio das roupas?” Eu podia ficar tranquilo quanto à mesa C. De qualquer maneira, eu me sentava de costas para a parede. Eram seis mesas, ocupadas em três turnos, o meu era o primeiro. Muitos passageiros da terceira haviam pago por fora para poderem comer na primeira. A alimentação da terceira era muito precária. Os passageiros tinham que possuir um prato e uma caneca, e comiam no próprio local onde estavam armadas as suas redes. Vi muitos passageiros da terceira jogando a comida fora, no rio.

Não havia no navio uma mulher que Carlos Alberto escolhesse para ser mãe dele. Eu não sabia o que ele procurava, mas sabia o que ele não queria. Carlos Alberto fora criado num asilo e nunca conhecera sua mãe. Toda mulher que via ele imaginava, “será que essa é a mulher de cujas entranhas eu gostaria de ter saído?”. Mas não conseguia encontrá-la.

Às vinte e três e trinta do segundo dia de viagem paramos em Gurupá, no Urucuricaia. Apesar da hora o cais estava cheio. Eu sabia que sempre haveria gente nos cais das cidades por onde passássemos. Seria impossível sair sem que ninguém o visse. Perguntei aos vendedores de frutas, aos vendedores de artesanato, às mocinhas, se o haviam visto desembarcar do outro navio.

“Uma assombração dessas se aparecesse todo mundo via”, disse uma mocinha depois de ouvir a descrição que fiz dele.

Estávamos viajando havia três dias e eu ainda não conseguira defecar. Meu organismo sempre funcionara bem. Devia ser a sujeira do banheiro. O trabalho me deixava um pouco tenso, mas não a ponto de causar aquela inibição. Afinal, não era a minha primeira missão. Fiquei um tempo enorme trepado na privada, como uma ave, a bolsa na mão, uma postura ridícula e inconfortável.

A hora do dia que eu mais gostava era a madrugada, quando todos dormiam e soprava uma brisa fresca. O convés estava sempre vazio. Eu via o dia raiar sentado numa das espreguiçadeiras do convés superior.

Surgiu um homem carregando uma gaiola com um pássaro. Era magro e alto, cara ossuda e comprida de nordestino. Apanhei minha bolsa que estava no chão, enquanto vigiava os seus movimentos.

“Que pássaro é esse?”, perguntei.

“É um xinó”, ele respondeu. Estava na terceira e transportava dez gaiolas com pássaros. Quatro eram rouxinóis.

Logo depois surgiu minha companheira de mesa, casada com o homem sinistro.

“Você acorda cedo assim?”, ela perguntou. “Sempre”, eu disse.

“Pois eu ainda nem dormi”, ela disse.

Pegou um colar de contas vermelhas que tinha em torno do pescoço, rodou-o no ar e atirou-o no rio. Olhou para mim como se esperasse algum comentário. Fiquei calado. Parecia embriagada.

“Sou mineira. Moacyr é gaúcho. Não aguento mais essa viagem.”

A felicidade dela parecia ter acabado. Chamava-se Maria de Lurdes. Fechado dentro de um navio, um casal, mais do que um sujeito sozinho, tem que saber dosar suas energias.

Durante o café, Evandro, o sujeito da Comissão de Limites e Fronteiras, me disse que havíamos passado por Almerim.

“Ali, onde você vê aquela torre de micro-ondas da Embratel, é a Serra da Velha Pobre. Aquelas árvores de copas amarelas são pau d’arco, dobram o gume de qualquer machado.”

“Está vendo lá longe?”, continuou Evandro. “São as terras do Jari. Um mundo. Cabem três Franças aí nesse mato. Tudo dum americano maluco, o Ludwig.”

Evandro me olhou, de maneira suspicaz. Ou seria tudo invenção da minha mente treinada para desconfiar? Que resposta ele estaria esperando?

“Esse Brasil é grande”, eu disse.

Maria de Lurdes aproximou-se e me ofereceu uma laranja. Agradeci, recusando. Evandro debruçou-se na amurada do navio. Maria de Lurdes tirou o lenço da cabeça e num gesto dramático jogou-o no rio.

“O amor dura pouco”, disse Maria de Lurdes. “Estou te esperando hoje às dez e trinta da noite. Minha cabine é a 25. Moacyr bebe uma garrafa de cachaça por dia e umas dez de cerveja. Quando chega a noite ele já apagou.”

Maria de Lurdes tirou a blusa e a saia e jogou dentro d’água. Usava por baixo um biquíni vermelho. Seu corpo era bonito e jovem. O sol forte fazia a água do rio ainda mais barrenta e definia o contorno verde-escuro da floresta distante.

“Está vendo os botos? Eu queria ser um boto. Às vezes penso em pular n’água e sair corcoveando.” Maria de Lurdes levantou os braços, no seu sovaco os cabelos raspados despontavam duros. Tive vontade de estender as mãos e tocar nos bicos dos seus seios que apareciam através do tecido do sutiã. Carlos Alberto a escolheria para mãe? Maria de Lurdes botou a língua para fora e para dentro, como um lagarto, enquanto me olhava nos olhos.

“Dez e meia”, disse Maria de Lurdes. Evandro, próximo, fingia olhar o rio.

“Almerim fica pra lá. Já estamos no Amazonas”, disse Evandro.

Passei o resto da manhã na terceira classe. Todos os dias o ceguinho Noé tocava acordeão. Ia com a mãe para Manaus e dali para Porto Velho. Era acompanhado por três sujeitos que tocavam pandeiro, bumbo e triângulo. Depois a mãe corria o pandeiro e as pessoas colocavam nele notas sujas de pequeno valor e níqueis.

“O grosso do povo é gente indo visitar a família. Mas tem também alguns marretas, que vendem de tudo, lavradores se mudando, muambeiras, um pistoleiro procurando ares mais frescos”, disse o taifeiro J. M. Diariamente eu dava uma gorjeta para ele.

“Me mostra o pistoleiro”, pedi.

Era um homem magro e pálido, de bigodinho fino, uns quarenta anos. Matador ordinário.

“Pistoleiro de quem?”

“De quem pagar. Não tem patrão. Trabalha por empreitada pros coronéis e comerciantes da região. Olha, desculpe eu pedir, não me chama de J. M., me chama só de João.”

“Me disseram que era assim que você era conhecido.” “Me chama de João, só João.”

No jantar Moacyr apareceu embriagado. Maria de Lurdes ria jogando a cabeça para trás e abrindo bem a boca, olhando para mim. Ezir piscou o olho para Evandro. As duas mulheres segredaram entre si.

“Estamos entrando no rio Monte Alegre”, disse Evandro. “É um rio cheio de peixe, tem tambaqui de um metro.”

“Tem centenas de espécies de peixe neste rio”, disse o funcionário aposentado.

Depois do jantar fui para minha cabine e me deitei. Uma bruxa grande voava dentro do camarote e batia no meu corpo nu. Na noite anterior um gafanhoto entrara no meu camarote e pousara no meu peito. Suas patas grudaram na minha pele. Quando quis tirá-lo, ele me deu uma leve picada, uma pequena alfinetada. Iluminado pela lâmpada que ficava sobre a minha cabeça, parecia feito de folha. Havia também uma lagartixa que à noite saía de trás do espelho e passeava pelo camarote à caça de mosquitos. A bruxa se debatia e eu pensava em Maria de Lurdes.

Havia decidido que não iria vê-la, mas isso não diminuíra o meu desejo por ela; ao contrário, parecia tê-lo aumentado. O seu corpo esguio e moreno, sua boca, sua língua de réptil não saíam da minha mente. Mas eu não podia arriscar o meu trabalho.

Chegaríamos a Monte Alegre por volta da meia-noite.

Às onze horas eu estava na proa. Avistamos as luzes de Monte Alegre a boreste. A cidade dividia-se em parte alta e baixa. Antes mesmo do navio atracar, barcos com vendedores de bananas, mangas, mamões, abacates, queijos e doces acostaram o navio.

O cais estava cheio de gente. Passamos por várias gaiolas, algumas com luzes brilhantes e redes coloridas estendidas no centro, muitas já ocupadas por passageiros.

Desembarquei e falei com pessoas que haviam estado no cais de Monte Alegre quando o outro navio passara, na semana anterior. Ninguém havia visto ele desembarcar. Mas um rapaz que vendia queijos se lembrara de tê-lo visto na amurada do navio, sozinho, imóvel.

“Pensei que era um boneco”, disse o rapaz.

O navio soltou três apitos longos que ecoaram na noite enluarada. Eu estava na proa, perto da cabine de comando. A lua brilhava tão forte que parecia o sol visto através de um filtro escuro. Soprava uma brisa pura e fresca.

“Rumamos de volta para o leito da mãe de todas as águas doces — o Amazonas”, disse Evandro ao meu lado. Levei um susto ao ouvir a sua voz. Ele se aproximara de mim sem eu tê-lo pressentido, apesar do silêncio. Ouvia-se a quilha do navio fendendo as águas como se estivéssemos sendo impulsionados pelo vento.

Chegamos a Santarém às três e trinta da madrugada. Saíram vários passageiros. Um deles, da terceira classe, desembarcou com uma mobília completa de quarto — cama, armário, colchão, mesinha — além de várias malas e três bujões de gás.

No cais de cimento de Santarém estavam alguns navios mercantes de grande calado. Vários vendedores de artesanato expunham suas mercadorias. Os suíços desembarcaram e compraram bolsas e chapéus de palha.

Maria de Lurdes desembarcou comigo. Seus olhos estavam avermelhados e ela parecia mais jovem e frágil. “Você não sabe o que está perdendo”, ela disse, tentando parecer insolente.

“Eu sei.”

“Quem é esse sujeito que você está procurando?”, perguntou Maria de Lurdes, quando voltamos para o navio.

“Um velho amigo.” Eu podia chamá-lo assim. Nunca o tinha encontrado, mas sabia tudo dele, menos o som da sua voz. Não estava no dossiê. Anotei mentalmente essa lacuna.

O dia começava a raiar, quando saímos de Santarém, cortando a água azul escura do Tapajós, de volta para o Amazonas. Logo as águas limpas do Tapajós foram engolfadas pelas barrentas do Amazonas. O Tapajós é um grande rio, mas o Amazonas é muito forte. Arranca blocos de floresta de suas margens. Na sua embocadura empurra o mar e entra quinze milhas por dentro do oceano Atlântico.

O Pedro Teixeira subia perto da margem, a boreste. Ouvia-se, cobrindo as águas e subindo para o céu azul, o cantar dos pássaros que saía da densa floresta. O ar era limpo e transparente. O que teria ele pensado ao passar por ali? Teria feito anotações no seu livro grosso? De onde ele vinha não havia nada igual.

Excitados, os suíços fotografavam sem parar. “Já bati mais de mil fotos”, disse o suíço, tentando dar um tom modesto à sua declaração.

Na hora do almoço, o funcionário aposentado, que se chamava Alencar e pouco falava, perdeu a timidez quando o suíço perguntou quem havia sido Pedro Teixeira.

“Pedro Teixeira foi a primeira pessoa que subiu o rio, em 1637”, disse Alencar. “Era um capitão português que comandara a expulsão, primeiro dos ingleses, depois dos franceses, de Gurupá.”

Alencar falava de maneira pausada, temendo que o suíço não o entendesse. “Ele saiu de Gurupá e subiu o rio até Quito, no Equador. Fundou a cidade de Franciscana, hoje Tabatinga. Colocou o padrão de posse portuguesa no rio Napo.

Sua viagem tem características políticas importantes pois marcou a expansão portuguesa na região. Pelo Tratado de Tordesilhas, de 1494, a Amazônia deveria ser espanhola. Mas os exploradores portugueses, com sua vocação imperialista, desprezaram o Tratado, e nos séculos XV e XVI foram tomando posse da Amazônia. Em 1669, o capitão Mota Falcão ergueu o forte de São José do Rio Negro, no local onde mais tarde Manaus seria erigida. Em 1694, Lobo d’Almada subiu o rio Negro. Assim, no século XVII, quando perceberam que os portugueses já haviam ocupado de fato a maior parte da Amazônia e que, se não fossem sustados no seu expansionismo, acabariam ocupando-a inteira, os espanhóis propuseram outro tratado, que foi assinado em 1750, fixando os novos limites brasileiros no extremo norte. Pelo Napo os portugueses haviam ido até ao Equador, pelo Maranõn até o Peru, pelo Negro até à Colômbia e à Venezuela. Mais um pouco e a Amazônia seria toda brasileira.”

“Vejo que alguns brasileiros herdaram o espírito imperialista português. O senhor, pelo menos”, disse o suíço, gentilmente.

“Para que mais? A gente já não dá conta do que tem”, disse Evandro.

“Não sou imperialista”, disse Alencar. “Sabe quanto mede a bacia hidrográfica do Amazonas? Quase seis milhões de quilômetros quadrados. E a floresta? Não existe nada igual no universo. E no entanto tudo vai ser arrasado. A destruição já começou. De que adiantou os nossos antepassados conquistarem todo esse território se agora somos incapazes de preservá-lo?”

O suíço curvou-se sobre o seu prato de arroz com feijão, disfarçando um sorriso irônico. Eram histórias pitorescas para contar quando voltasse a São Paulo, onde trabalhava numa multinacional. E mais tarde na Suíça, ao mostrar os seus slides, falaria do delírio nacionalista de mestiços miseráveis de dentes cariados.

À noite não consegui dormir, pensando em Maria de Lurdes. À uma hora da manhã levantei-me e fui até ao camarote 25. Dentro havia uma luz acesa. Bati na porta.

Maria de Lurdes saiu do camarote. Estava cheia de colares em volta do pescoço, usava um vestido longo largo e um chapéu de palha na cabeça.

“Você aqui? Resolveu?”, disse ela. “Quer ver uma coisa?”

Maria de Lurdes escancarou a porta. Dentro do camarote havia dois beliches. Num deles estava Moacyr dormindo.

“Quinze dias de casada e já o odeio”, disse Maria de Lurdes.

Levei-a para o meu camarote. Tirei os colares dela, um a um, sentindo na minha boca o gosto antecipado da sua carne. Sob o vestido ela não tinha roupa alguma.

“Estava doida para botar uns chifres nele”, disse Maria de Lurdes. “Vamos mudar de assunto”, eu disse.

“Você quer falar de amor?” “É. Quero falar de amor.” Deitamos no beliche de baixo.

“Me enlouquece, me faz subir aos céus ao encontro de Jesus”, disse Maria de Lurdes. Seu corpo parecia ferver dentro da cabine quente e abafada.

De manhã ela disse que não queria ir tomar café na sala das refeições. “Pensando bem vou ficar aqui até o fim da viagem.”

Me vesti, peguei minha bolsa e saí.

Na hora do almoço voltei. Maria de Lurdes estava dormindo.

Acordei-a. “É melhor você se vestir. Daqui a pouco o seu marido acorda e vai notar a sua falta.”

“Ele que vá para o inferno.”

Maria de Lurdes abriu os braços e as pernas. “Vem”, ela disse.

Fui almoçar. Moacyr não apareceu no almoço. Evandro avisou que às quatorze horas chegaríamos a Óbidos.

Ele não havia descido em Óbidos.

O comandante me garantiu que todos os navios daquela linha paravam sempre nas mesmas cidades.

“Se o senhor quisesse, por exemplo, ir a Faro, ou Itacoatiara, tinha que pegar outro navio. Nós paramos sempre no mesmo porto. Daqui pra frente até chegar a Manaus pararemos apenas em Oriximiná e Parintins. Nosso percurso será de cerca de mil milhas marítimas, a milha marítima tem mil oitocentos e cinquenta e dois metros, ou seja, em quilômetros o percurso será de mil oitocentos e cinquenta e dois quilômetros, aproximadamente.”

Ele devia ter seguido para Manaus, se é que pegara mesmo o navio. Nesse caso Carlos Alberto já teria tomado conta dele, há vários dias. Se tivesse ido de avião podia ainda estar ou não em Manaus. Se estivesse nós o acharíamos.

Moacyr surgiu na cabine do comandante.

“Capitão, minha mulher sumiu”, disse Moacyr. “Talvez tenha se atirado dentro do rio.” Ele cheirava à bebida, mas sua voz era firme.

“É melhor o senhor procurar mais”, disse o comandante.

Corri para o meu camarote. Maria de Lurdes se recusou a sair. Era por isso que a gente não devia se meter com mulheres quando estava trabalhando.

Senti que o navio diminuía a marcha. Devia estar chegando a Oriximiná.

“Não quero mais saber de Moacyr. Vive bêbado. Além disso me enganou, não tem mais um tostão.”

O navio havia parado.

“Que diabo você carrega nessa bolsa que não larga nunca?” Deixei-a no camarote. Eu sabia que o navio deveria ficar no porto apenas vinte minutos, para desembarcar um passageiro.

Oriximiná era um pequeno vilarejo de poucos habitantes. Seu cais, como o de todas as outras povoações em que havíamos parado, à exceção de Santarém, consistia numa plataforma de madeira onde podiam atracar apenas pequenas embarcações. Sua posição permitia divisar, no horizonte largo, as fozes do Trombetas e do Nhamundá.

Desembarquei. Fiz a pergunta de rotina a um menino com um cesto de mamões.

O menino o havia visto. Sua resposta fez o meu coração bater apressado. “Vendo mamões e peixes para ele todos os dias. Mora numa casa lá em cima.

Hoje de manhã já levei um pirambucu para ele.”

Pedi ao menino que me mostrasse a casa. Eu sentia a boca seca e vontade de tossir.

Era uma casa pequena de alvenaria, que ficava no alto, com duas janelas pequenas pintadas de azul-ferrete. Era ali que ele havia se escondido do mundo, comendo frutas e peixes e sentindo a força da natureza.

O garoto voltou para o cais.

Ouvi os três apitos do navio. Lá se ia a mala com a minha roupa, mas não tinha importância. Eu não me apegava a coisa alguma. A bolsa eu não podia perder, pois carregava nela o meu instrumento de trabalho. Como poeira levada pelo vento os meus companheiros de viagem também foram varridos da minha mente pelos apitos do navio.

Esperei, sentado sob uma árvore ao lado de um cão vagabundo, que a cidade voltasse à sua tranquilidade, perturbada pela chegada do Pedro Teixeira.

Bati na porta e ele abriu.

Nos últimos meses eu pensara nele todos os dias e todas as noites.

Ele parecia ser ainda mais alto do que os dois metros e trinta que diziam ser a sua altura. E sua cabeça era ainda mais branca, seus cabelos resplandeciam na sombra.

Eu queria ouvir a sua voz.

“Bom dia”, eu disse, abrindo minha bolsa. “Bom dia”, respondeu.

Estendeu a mão, quando viu o revólver com silenciador apontado para ele, num gesto de paz.

“Não”, ele disse. Não tinha sotaque, nem medo. Era uma voz fria. Seus olhos muito azuis me deram uma rápida e dolorosa impressão de que ele era inocente. Atirei duas vezes. Caiu de costas no chão. Abri-lhe a camisa e toquei no seu corpo. Tinha a pele macia e mamilos rosados. O bico do mamilo esquerdo estava túrgido como se ele estivesse sentindo frio. Foi ali que encostei o cano do revólver e atirei outra vez.

Apanhei o livro e todos os seus papéis e saí, fechando a porta.

O cão levantou-se e veio para perto de mim. Eu tinha que achar um barco que me tirasse de Oriximiná.

Contemplei as águas azuis do Trombetas e do Nhamundá iluminadas pelo sol poente, encontrando-se, no meio da floresta imensa, com as águas douradas do Amazonas. O silêncio cobria a terra toda. De repente meu corpo se contraiu num espasmo violento e parei de respirar, sufocado no meio de todo aquele ar. Depois passei a tremer convulsivamente e a respirar uivando como um animal em agonia. O cão correu assustado. Mas logo os tremores cessaram e fui envolvido por um sentimento de paz e felicidade que parecia que ia durar para sempre.

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