Filomena Borges – Conto de Aluísio de Azevedo

By | 01/08/2021

I

Sabemos que é geral a ansiedade por descobrir o mistério em que se envolve a individualidade conhecida pelo nome que encima estas linhas.

De há alguns dias conhecíamos parte do romance – se romance podemos chamar a uma história tristemente verdadeira – de que é heroína, protagonista, vítima, e não sabemos que mais, aquela mulher que é hoje célebre por andar o seu nome por toda esta população, repetido de boca em boca.

E sabíamos da sua história, porque nô-la referira a pessoa que assina a carta que abaixo transcrevemos, e que, tendo dela ligeira notícia, dirigira-se pessoalmente a tomar informações, e voltara trazendo-as, e as mais preciosas.

Encetaremos, pois, brevemente, a história da vida de Filomena Borges, escrita pelo conhecido romancista Aluízio Azevedo.

Eis a carta que ele nos enviou:

“Sr. Redator da Gazeta de Notícias. – Não é uma questão de interesse próprio que me traz ao seu conceituado jornal. Também não venho tratar de política, nem de ciência nem de literatura. Não.

Meu fim único, dirigindo-me a V. S., é cumprir um dever de consciência, um dever de justiça.

Neste instante, Sr. Redator, acabo de chegar da casa de Filomena Borges, e é ainda dominado por uma impressão violenta que lhe escrevo estas linhas.

Nunca imaginei que o ódio, a intriga e a inveja conseguissem tanto! Nunca me persuadi de que o espírito do mal fosse tão longe!

Bem sei que Filomena não é um modelo de virtudes domésticas; bem sei que na febre de suas paixões mais de um futuro se tem estiolado; bem sei que muito coração ainda hoje sangra a ferida de seus ósculos vermelhos.

Mas será ela porventura a maior culpada de tudo isso, será ela a única responsável pelo mal que fez e pelas fortunas que destruiu?!

Não caberá alguma parte dessa culpa a nossa sociedade, aos nossos costumes, à nossa educação, e finalmente ao triste meio onde cresceu e palpitou essa desventurada e formosa criatura?!

As mulheres são fatalmente aquilo que os homens decretam que elas sejam.

Filomena Borges é um produto legítimo dos vícios e da covardia de seus pais.

Se não a educassem no falso luxo; se não lhe ensinassem todas as misérias de uma pobreza sem coragem e sem dignidade; se não a vendessem ao primeiro noivo rico e brutal que a desejou: Filomena Borges seria talvez neste instante o melhor modelo das mães de família.

Eu também a detestava; eu também a temia. Não foi sem escrúpulo que cheguei ao lado dela. Mas. depois que a encarei de perto; depois que lhe sondei todos os arrebatamentos da alma apaixonada; depois que a ouvi nesses momentos terríveis da desgraça em que se não pode fingir, ah! então compreendi que, melhor do que o desprezo, merecia a infeliz, compaixão e consolo.

Hoje ninguém ignora o que há a respeito dessa pobre criatura desamparada; todos sabem a perseguição de que ela é vítima, e toda a grande tempestade de cólera que lhe paira sobre a cabeça.

Formaram-se grupos, inventaram-se clubes para a perseguir. Homens poderosos e mulheres felizes pedem o seu quinhão de vingança, como esfomeados que exigem pão. Multiplicam-se as cartas, os artigos., os cartões postais, os ditos maldizentes, as pequenas conversas intrigantes; e, todavia, Filomena Borges, a temível, a medonha Filomena, chora e pede por amor de i)eus que não a condenem sem a ter ouvido.

Ainda ontem um cidadão, cujo nome abstenho-me por ora de citar, chegou a quebrar-lhe os vidros da janela, depois de me dirigir da rua os maiores insultos. Um capitão do exército jurou que lhe havia de meter uma bala no miolos, se ela não tratasse quanto antes de sair do Rio de Janeiro. A Sra. baronesa X… mãe de três rapazes, e em vésperas de ser avó, remeteu-lhe unia carta, que faria temer um oficial de artilharia.

E, no fim de contas, qual é o motivo de tanta guerra?! De que lado esta a razão?!

Isso só o público decidirá, depois de ler o apanhado de todos os fatos, o extrato de todos os documentos, que me foi permitido descobrir a respeito de Filomena Borges.

Não hei de inventar, nem esconder cousa alguma; a verdade aparecerá nua e limpa, ainda que tenha de arcar com o ressentimento de algumas pessoas.

Rio, 4 de outubro.
O Pais, outubro de 1883.

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