Finesterre – Conto de Nélida Piñon

By | 28/12/2022

Abracei-o e disse, esta então é a Ilha prometida? Fez que sim com a cabeça. Há muito eu devia-lhe a visita, cruzar o mar, aproximar-me dos relevos da Ilha, juntos haveríamos de comer do mesmo pão.

Tinha agora setenta anos, mas bem mais jovem havia-me tomado nos braços e arrastou-me até a pia batismal. Esperei que chegasse antes da minha morte, confessou. Tomei-lhe a mão, vamos passear. Sinto-me livre pela primeira vez em muitos anos. Ele aceitou que eu mergulhasse na nova terra através da sua sabedoria. Havia nele reservas de luz e ainda uma sombra que eu contornava para não esbarrar contra as árvores.

Em casa, me fez servir o café. Traguei como se fosse suor. Ele aprovou que eu esquecesse a amargura da grande cidade, os desfalecimentos da vida anterior. Se ficasse aqui ao menos dois dias, eu lavaria sua alma. Agradeci, mas meus compromissos eram de cruzar novamente o mar, deixar a Ilha, evitá-la quem sabe no futuro.

Os amigos apareceram. Pepe, Juan, Antonio, quem mais? Faltam muitos ainda? Muitos, disse-me, todos na Ilha são amigos, e aos inimigos engulo como a sopa acalentada com o sopro das minhas gengivas de velho. Ri com o seu ímpeto pelo combate, por ainda precisar viver. Aprenderei com o senhor a resistir aos vendavais e às pestes. Sorriu com o elogio que lhe soou póstumo. Quando você era pequena, intuí que me daria trabalho. E isto porque desejava acompanhar seu destino onde quer que você fosse. É deste modo que eu amo.

Pedi ao padrinho que me explicasse a mim mesma, eu queria provar-me como se fosse um vinho rascante. Sim, você crescia frondosa, e não me levava o nome. Mas, em todas as solenidades estive perto. Acompanhei-te na primeira comunhão, nas formaturas, nas vigílias, te imaginei na penumbra fazendo-se mulher. Não tive filhos, talvez te nomeasse filha para privar com um sentimento que só intuí através de você. Você foi o segundo amor que tive, o primeiro destinei à minha mulher, que também amas, olha-nos ela agora à distância, ingênua e criança. Parece que não envelheceu. Sou quem lhe preserva a juventude. Ama-me sem saber que rejuvenesce graças ao meu empenho. Sou quem lhe oferece a custódia da juventude. E você, como se fará jovem um dia, se não estarei vivo para salvar-te?

Olhei-o firme, fique tranqüilo, padrinho, hei de salvar-me à custa dos próprios escombros. Por isso vim à Ilha, recolher força e origem, terei então vida por tempo ilimitado. Abraçou-me outra vez. Te introduzi à natureza desta terra, à comida dos ancestrais, mesmo aos mariscos te introduzi, e a que mais devo levar-te para que abandones a Ilha pródiga e cheia de fontes? Verá que me faço forte entre a gente do meu povo, e com a memória dessas pedras, desses arbustos. Vamos agora almoçar, ele comandou.

Primeiro, os siris alerta, patas movediças que me ameaçavam levar às costas vermelhas, ao Finisterre. Resisti a que eles me expulsassem da sala só porque haviam habitado primeiro as pedras amarradas à Ilha. Por vingança, esmaguei-lhes as patas, suguei seus tentáculos. No entanto, eram miúdos e inofensivos. A dor maior seria alimentar-me dos centolhos, eles, sim, gigantes dos mares de Sinbad, povoando a costa espanhola para alertar o espírito de Ignacio, obscurantista e mago. Ocupavam os centolhos o centro da mesa, cedi- lhes meu lugar e, ao mais robusto da espécie, disse, querendo te convido a bailar a valsa dos quinze anos.

O animal escancarou a boca, eu ignorava se tinha sexo, se me queria devorar, ou se bastava que eu lhe enfiasse o dedo pelas entranhas, para banhar-me de suas vísceras e de suas correntes marítimas. Onde se localizaria õ coral desta criatura de patas terrestre, logo o coral, a parte menos intransigente do seu corpo e a mais saborosa? Padrinho, busque o coral para mim, é terno, vermelho, ligeiramente amargo, e se não me cuido ele me devora, mas quero comê-lo com a boca aflita, hesitante, orgulhosa.

Com o garfo, ele mergulhou diversas vezes nas entranhas do crustáceo, e trouxe-me como um caçador de esponjas o coral ambicionado. Mastiguei a delicada porção de olhos fechados, fazendo amor com um coral nascido de recantos primevos, de uma carapaça mais antiga e sólida que a minha pele. Padrinho, com que direito exalto a tua terra, envelheço comendo os teus animais maliciosos, que têm espírito de ilha, sem serem ingleses, colonialistas educados.

O padrinho premiou-me com mexilhões, que, estúpidos e ambiciosos, deixam-se prender às plataformas imitando terra. Depois, as amêijoas, as vieiras, sim, elas próprias arrastando o denodo das peregrinações jacobinas. Até onde iremos com tantas referências culturais, padrinho. Para mim, a vieira é ainda a concha peregrina de Santiago. Os peregrinos as mergulhavam nas águas boas e nas águas más, ao longo do trajeto, a vida dependia delas, queriam evitar os poços e os riachos envenenados. Ou mesmo as questões de fé.

Ele pressentiu que o vinho e os animais da casa me perturbavam. Contrário a ele, que jamais perderia as próprias raízes quando eu tomasse o barco de regresso. Cabia-lhe, pois, cuidar que eu levasse de volta ao Brasil os mesmos olhos com que chegara. Sem perder a nacionalidade, este cravo espetado no coração. Padrinho, sou uma brasileira aflita com as trilhas do mundo. Assim, até um centolho ameaça o meu futuro, força-me à vigília, ensina-me a honra e a incerteza ao mesmo tempo.

Trouxe o cozido banhado de luar e gordura. Aquele porco precisamente havia sido educado distante dos detritos marítimos, capazes todos de deformarem a melhor carne que um animal da terra teria a oferecer-nos. Mas, para que também usufruísse da Ilha, permitiram ao porco absorver o cheiro do mar, a maresia não lhe estragava a carne. Durante a semana, alimentava-se de milho, mas aos sábados e domingos o regalavam com castanhas e batatas. Prove desta maravilha, afilhada, até Deus perdoa este pecado de orgulho.

Com os olhos cerrados mastiguei a carne, garanti-lhe a sobrevivência na memória. Pelo resto da vida hei de cantar esta carne, padrinho. Ele apreciou que também eu tivesse recebido a educação que identificava os sumarentos detalhes cultivados por eles, a vida não podia ser frugal, seca, sem ilusões. A vida, afilhada, deve permitir excessos. Beijei-lhe a mão, levada pela emoção e peio vinho tinto que borrava a taça de porcelana. Meus lábios emitiam sons com dificuldade e, apesar da civilização gallega, eu lutava pela fala.

O repasto estendeu-se por duas horas. O padrinho exibia os tesouros que eu tomava nos braços. Dirigia-me a eles conhecendo-lhes origem, paladar, razão de ser. Afinal, saíra do ventre montanhês daquela raça, eu os havia deixado levada por correntes marítimas, assim poderia regressar a ela sempre que quisesse, especialmente porque os ibéricos navegavam assaltados pela emoção. E havia ainda a morrinha, que não é o cheiro deformado da carne, mas a deformação da saudade — consentindo que eu a tomasse no peito, a espargir-me com seu espírito de aventura.

Salve a terra, padrinho. A que terra queres homenagear, afilhada? A terra do mundo, a terra em que pisamos todos ao mesmo tempo. A terra em que se voa através dos sonhos, como nos ensinaram os celtas, estes desgraçados irlandeses, a que nos filiamos. Só que não quero, como os druidas, matar, apesar da minha paixão pelas árvores, as pedras, a noite que nos perde. Ele sorriu, depois do conhaque, vou te levar pelos caminhos da Ilha.

Repousamos meia hora. Ele me prometera a eternidade se saísse viva da Ilha. Hás de dominar a arma que enfiem em teu corpo. Comprometi-me com ele que sobreviver era a mais longa aprendizagem. Andando pela Ilha, a brisa das rias gallegas me sufocava. Devia respirar com naturalidade para apossar-me do próprio corpo, que me parecia novo agora. A quem mais preciso conhecer para conhecer a todos? O padrinho riu, sei da tua inquietação, mas respeite minha capacidade de surpreender-te. Pedi-lhe desculpas em nome de uma voracidade que estava em todas as partes. Acaso aprenderia a viver em paz com ela?

Tomou minha mão, não te quero apaziguada, ainda que cu já tenha morrido. Você é a minha última certeza. E se sobreviver a mim, terei prolongado minha vida na terra. Saberia ele realmente da minha vida, se lhe escondi sempre as sombras retocadas com uma breve luz? Mas, ofertando-me a terra, ele simplesmente identificava minha vocação para a vida. Disse-lhe, sou o céu e o inferno entrelaçados. Pareceu não se importar. Veja aquela roca, indicou- me a única parte alta da Ilha, uma vegetação carbonizada.

Não é verdade que quis ser pássaro na infância, e sonhou desprender-se dali? Concordou e acelerou em seguida os passos. Tinha hábito de correr, apesar da idade. Atravessei o Atlântico, as terras castelhanas, as rias, e o que mais vencerei para ouvir-te, padrinho? Visitemos agora os que se aprontam para morrer. Através da piteira expulsava nervoso a fumaça do cigarro. Não tragava nenhuma espécie de vida por muito tempo.

Detivemo-nos diante do sobrado de pedras de dois andares, pertencente a um ramo materno. Ali, o padrinho aprofundaria o orgulho que sentia por mim. Eu era parte da América onde ele desbravara certos sonhos, dobrara-os entre as camisas, as calças, os paletós, e objetos domésticos, até trazê-los de volta. O meu rosto, embora exaustivamente descrito por ele, haveria de constituir-se de verdade à medida que me expunha à curiosidade pública.

Abriu o portão, chegou a hora, confessou. Segui-o pelas escadas, do lado de fora da casa. Do segundo andar, via-se o mar cercando a Ilha em círculos. Uma Ilha ocupada, pensei, entretida com pêssegos, peixes, pescadores, redes, quem sabe arpões. Sejam bem- vindos, dizia Maruxa esmagando-me com afagos. O corpo pronto ressentindo- se com os sucessivos atos de apertar as mãos, beijar rostos, recuperar gestos que os ancestrais instauraram entre nós na esperança de que os copiássemos.

Sentada à mesa com farta fruteira no centro, de tal modo iludi- me com o amor que em vez de frutas pensei ver mariscos manietados com barbantes. Eu mastigava homens, mulheres, crianças, para não esquecê-los. Viera da América com visível sinal de antropofagia. Havia chegado o momento da América recolher de volta os tesouros, arrastá-los até as naus prontas para o embarque. Em todos os portos, eu dispunha de barcos.

Agradeci o café com gestos galantes, que eles entenderiam. São raros, aliás, os que compreendem os sintomas da galanteria. Alguns chegam a pensar que é expressão de um sistema decadente, outros a tomam como disfarce de verdade que não ousa vir à tona. Quando ser galante é agradecer a fruta trazida na bandeja e que talvez te incomode no futuro, mas de que não se pode privar se realmente almeja-se a vida, a coragem de privar com os costumes humanos. E ser galante, padrinho, não é evitar a morte alheia por motivos fúteis?

Tinha o padrinho posição firme a respeito. Galanteria para ele era a prova da estima universal. Através dela concede-se ao próximo a honra de viver com dignidade, em troca da mesma honra que acabou ele de nos assegurar. Exatamente, essas teriam sido minhas palavras se eu já dispusesse de uma linguagem. Logo eu que viera à Ilha em busca da minha futura expressão. E se cedo não admitisse a Ilha e o seu fundo de mar atapetado de náufragos e iodo, não mereceria a linguagem que começava a organizar-se em mim como uma longa civilização cujo rosto se temeu sempre desvendar. Vim para saber, padrinho. Não, você veio para reconhecer-se. E repartiu entre os presentes a broa fresca, prove deste pão amassado com amor.

Enquanto cu esforçava-me em homenagear aquela casa, o padrinho começou a fotografar-me. Fixava com avidez inesperada instantes dos quais eu viria envergonhar-me. Vergonha de não ter sentido forte, de não ter avaliado a intensidade daquele domingo numa ilha gallega.  Eu não queria que ele me regalasse um dia com a visão de um passado sem alma. De que serve o futuro povoado de retratos amarelos?

Em torno da mesa, discutiam-se os rumos da Ilha. Do barco a vela haviam passado à lancha a vapor sem se terem dado conta, conciliados com os novos tempos. Ponderei-lhes que avanços muitas vezes dificultavam o julgamento do que éramos enquanto vivíamos. Quer você dizer que abdicamos de nossas identidades? interrompeu-me Maruxa. Ao contrário, ninguém havia perdido um retrato que não chegou a existir. O que em seu lugar existiu, sim, foi um pobre desenho de linhas frágeis e apagadas com o qual mal nos identificávamos. Quem sabe em futuro próximo teremos mãos exigentes e firmes com que desenhar os contornos reais de nossas faces interiores. Maruxa pediu, fique alguns dias na Ilha. Me cederiam o quarto com balcão florido, diante do mar, para eu meditar intensamente. Há de sentir-se inspirada, insinuava-me a criação.

Infelizmente, partiria naquela noite. A Ilha era um perigo que devia evitar. Especialmente aquela com regaço de calor, peixe, memória. Olhei o padrinho e transferi-lhe a narrativa. Que nos contasse a história de González. Perdido de amor na adolescência, empenhou a palavra de regalar à Ilha bens que correspondessem às suas fantasias e à sua paixão. Levou precisamente quarenta anos para cumprir a promessa. Mas, quando desembarcou no cais, largou sua preciosa carga ali mesmo, e seguiu para a taberna. Quanto mais bebia do vinho negro mais fugia da casa da amada, agora velha cuidando da horta. Ali ficou para sempre repetindo, se mergulho na casa do nascimento, ou na casa da paixão, terei destruído meu difícil sonho. Em verdade, eu nunca voltei à Ilha.

O padrinho orgulhava-se de uma Ilha que concebera excêntricos. Somos todos assim, afilhada. E pediu-me, com clemência, jamais abdique da sua altivez. Maruxa disse: vamos para o quarto, a avó nos espera. Ela tinha completado noventa anos na semana passada, com a família toda em torno sem saber se lhe celebravam a festa, ou devotavam-se aos seus funerais. A avó podia morrer a qualquer instante, c sua morte não os desesperava. A avó era como a árvore do quintal. Quando enterrassem seus galhos secos, suas folhas fenecidas, o que havia enfim sobrado dela, as raízes da mulher ficariam cm cima da terra, entre eles. Tudo continuaria a crescer após aquela morte.

Pedi com o olhar socorro ao padrinho. Por que visitar uma mulher querendo morrer no momento exato cm que lhe invadíssemos o quarto, em protesto contra a minha presença, ou para deixar-me como amável lembrança a cena da sua morte. O padrinho apressou-me, devíamos todos participar das despedidas. Obedeci sem lhe confessar o quanto temia seguir naquela hora o destino da velha. Em cada homem que morria eu presenciava a minha morte.

Haviam-me descrito a avó como uma velha graúda, de vigor camponês, no seu tempo de ouro. Igualmente capaz de estripar animais, mexer-lhes as vísceras, e preparar-se jubilosa para as festas de agosto. Mas, não me iludisse agora com seu estado, a vida atual desmentia o que havia sido. Logo acostumei-me à luz pálida do quarto. A avó no leito vestia- se com uma camisola branca rendada, um traje de noiva reluzente, e mal percebia-se a respiração saída do seu corpo calcinado.

O padrinho falou-lhe, perto do ornado, como vai, dona Amparo, bonita como sempre? Tais palavras feriam-me o coração, eu não compreendia uma retórica que corrompera os séculos e destinara escravos para as minas africanas. Era um absurdo pretender trazê-la à vida. Com que direito o padrinho desafiava a natureza humana a merecer a última homenagem. Acaso não via que Amparo havia morrido, eu chegara tarde para salvá-la. Ou será que as ervas da América também faziam parte do sonho daquele povo?

O padrinho insistia, não quer conhecer minha afilhada, dona Amparo? Olhe que ela atravessou o Atlântico especialmente para trazer-lhe o abraço de um país novo. Veja a senhora, um país que se intitula novo, pode ser tão novo assim? Sem dúvida, ele me provo- cava. E se era eu herdeira daquele homem, precisava enfrentá-lo do mesmo modo como ele disputava com a vida o direito de reformá-la. Bem perto da velha, medi-lhe a respiração. E ela vivia. Só não sabia se eu lhe dera a vida, ou ela sim que me estimulava a viver ao seu lado. Os gestos do padrinho, porem, me superavam. Tanto podia ele desembainhar a espada, como simplesmente acariciar a testa de Amparo. Em nenhum momento demonstrou sofrer com a presença de uma velha morrendo a sua frente.

Inquieta, pensei, acaso me quer aplaudindo o espetáculo de uma cultura a que não posso pertencer, c isto porque vim de muito longe? Ele prosseguia no combate, queria a velha de volta à terra. Dizia seu nome e aguardava que ela obedecesse. Finalmente, ela abriu os olhos, sorriu e disse, para eu jamais esquecer, ah, meu amigo, esta é a afilhada que veio daquela América que tragou nossos homens!

O retorno à vida por parte da velha obrigou a família a festejar em torno da cama. Haviam vencido um dia, razão pela qual transferiam a cerimônia fúnebre para a manhã seguinte. Hoje não tinham por que preocupar-se. A velha acabara dc triunfar sobre a morte. E eu testemunhara o momento histórico de uma luta iniciada noventa anos atrás e cujo desfecho previa-se para segunda-feira. O padrinho alegrava-se, vejam, minha afilhada trouxe sorte, isto prova que ela originou-se deste povo. Observem as feições do seu rosto que preservei com a minha máquina fotográfica!

Constrangia-me que me ameaçasse de perto. Como parte dos festejos, ofereceram copos de xerez. Todos os brindes eram para a velha que recusara a morte em um dia de sol. Apreciei a doce intensidade do vinho. E exaltei com o olhar os escombros da velha cujo corpo encolhido parecia o de uma criança, suspeitei que haviam- lhe extirpado alguns ossos. A morte é sua melhor amiga, pensei, imaginando o sopro invisível e dizimador como o último reparo na forma humana. Já sonhava em afastar-me daquela casa, quando o padrinho tomou da máquina, agora que nos reunimos todos, quero fotografá-los cm torno de dona Amparo.

Logo reservaram-me o lugar mais próximo à velha, cabendo-me pois tomar-lhe a mão semidesfalecida, e enxugar-lhe as rugas com a minha vitalidade e sorrir. Olhei o padrinho severa, para ele ao menos entender o quanto me ultrajava. Mas ele ocupava-se com a distância, o foco de luz, com o futuro. Maruxa apressava-se em pentear a velha, combatia os fios rebeldes, que lhe vieram diretamente da juventude. Por sua vez, dona Amparo esforçava-se em abrir os olhos, não queria morrer enquanto a fotografassem. Sem saber o que fazer, curvei-me para alcançar-lhe a mão, e estreitando-a entre meus dedos temi que a vida escapasse pelas suas unhas. Rápido, tampei-as com o meu calor, empenhada em que a vida lhe voltasse pelos mesmos canais que a queriam desfalcar de esperança e sangue.

Ela melhorou com meu ato de heroísmo. O padrinho continuava a exigir sorrisos. Eu não sabia se lhe mostrava dentes rijos que arrancaram outrora a carne com ímpeto do seu vôo faminto. Ou exibia-lhe os lábios cerrados, um grave muro de silêncio. Devia porém esforçar-me, ser natural como os que bebem o sumo das laranjas, tangerinas, bergamotas. Combater toda aflição com a certeza da vida no bolso.

Comecei a usufruir da velha como se tivesse ela vinte anos. De cabelos negros, ela apareceu-me ofertando um pente. Foi o pente das minhas núpcias, veja os fios que ainda enrolam-se em seus dentes de madrepérola. Também o pente e a tua futura morte devo le- var de volta à América? quis perguntar-lhe. E antes que me respondesse, o padrinho condenava-me a outros ângulos. Por favor, fiquem à vontade. Eu me entregava àquela orgia disposta a mudar a minha vida. Mas, que vida, afinal. A vida que herdei, a vida que fabriquei, a vida que me impuseram, a vida que não terei, ou a vida proibida, que não está na casca da pele, mas na pele íntima do sangue?

Ansioso cm fixar-nos para a eternidade, o padrinho impunha- me a memória e a crença do seu povo. Eu via-lhe o modo de conquistar o meu sangue e a minha emoção. Dentro das minhas mãos a velha revivia lentamente, tal o orgulho pelas suas últimas fotogra- fias. Mas só pude depositar a mão da velha sobre a colcha quando o padrinho cansou-se. Então, deixei o quarto sem olhar para trás, ou consultá-lo. Exigi que me salvasse, me levasse para longe. Distantes dali, quis ainda comover-me com a história da roca dos seus sonhos. Protestei firme, se não me inventa outras narrativas, porque só amo histórias inventadas, já que as nossas são tão pobres, passarei a recordar os banquetes da minha infância em tudo parecidos ao banquete desta tarde em sua casa.

Afinal, eu só voltaria à Ilha em alguns anos. E as cartas não trafegam com a mesma velocidade do nosso olhar naquele instante exultante. Abraçou-me e passou a falar dos celtas, dos ibéricos, dos visigodos, que se uniram de tal modo que seria hoje difícil isolá-los, pois um só rosto galleto muito tem de cada um, e eles próprios neste rosto jamais poderiam reconhecer-se ou indicar que parte dele originou-se da força dos seus sangues.

Em casa, repousamos. Sua irmã, que apesar da idade ainda cuidava da horta, garantiu-me, se fica alguns dias, dificilmente nos deixará. E isto porque a vida é lenda, e, como tal, nós a dispersamos. Já viu como os pescadores mais do que peixes pescam histó- rias com suas redes? Que esplêndida promessa. A espécie humana afugentando a pobreza. Sempre safras abundantes e palavras rebeldes. Hesitei por segundos. Mas, havia um continente que me aguardava, jamais o deixaria, nele incrustava-se a minha terra. O padri- nho compreenderia a minha fidelidade por aquele país do outro lado do Atlântico, especialmente ele que ali tivera a alma conspurcada pelo futuro.

Padrinho, quem de nós estará um dia vivo nos retratos que o senhor tirou? Tomou seu café devagar, vi-lhe lágrimas nos olhos. Soube então que a visita estava terminada. Ainda que novos amigos chegassem trazendo os esplêndidos frutos da Ilha.

Quando o sino da igreja repicou para a novena de maio, ele pegou um pacote, ali estava o meu presente. Expulsava-me da casa com a segurança de me saber agora rica. O barco deixaria logo a Ilha. Vieram todos ao cais para as despedidas, alguns em casa cui- dariam da ceia. O padrinho à frente abria o caminho para eu vencer os últimos obstáculos. Beijei-o algumas vezes, fui à testa. Naquela fronte eu surpreendera luz, o farol cercando as águas. Até breve, padrinho. Hoje, ou amanhã, sempre nos veremos, disse ele comovido.

Repassei na memória os anos de sua vida, para não esquecer. Somos de raça forte, não é, padrinho? Abraçamo-nos ainda, e logo o marinheiro me jogou dentro da lancha que se afastava depressa. Me pareceu ter visto o padrinho chorar, ele disfarçava abanando a mão com veemência. Adeus, gritei. Aquela Ilha era encantada, foi meu último pensamento depois que a distância nos separou para sempre.

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