Flor de laranjeira – Conto de Nelson Rodrigues

By | 23/07/2021

Baixou a voz:

— Sabe qual é o golpe?

— Qual?

E ele, com a boca encostada no seu ouvido:

— Você mata o serviço hoje e vamos ao cinema. Topas?

Hesitou, numa tentação deliciosa. Antes de capitular, porém, bateu na mesma tecla:

— Então jura que não és casado, jura.

Recuou, quase ofendido: “Mas você duvida? Não te jurei umas quinhentas vezes?

Não te dei minha palavra? Parece até que você não tem confiança em mim!”. Era um namoro recentíssimo, de três ou quatro dias. Educada no santo e necessário horror ao homem casado, Carmelita duvidava ainda, duvidava sempre. Acabou admitindo o cinema, com uma última condição:

— E você promete que, lá, fica quietinho, promete?

Enfiou as duas mãos nos bolsos:

— Prometo, prometo. E vamos chispar que está em cima da hora!

Mas quando chegaram no Metro a Carmelita viu que era filme nacional; refugou:

“Não gosto de cinema brasileiro. Não tolero!”. Cabeleira perdeu a paciência. Na porta do Metro, foi cínico, foi brutal:

— Tu pensas que eu vim ao cinema contigo para ver fitas? Tem dó. Vamos entrar, anda. Olha que eu me zango contigo!

O BEIJO

Lá dentro, ele atrás da pequena, soprou: “Vamos para cima”. Argumentou: “É mais discreto”. Nova resistência: “Não vou. Pra cima, não vou”. Então, Cabeleira resolveu ser enérgico. Segurou a pequena pelo braço, arrastou-a: “Que bobagem! Vamos!”. Sentaram-se no canto mais discreto e vasto do cinema. Uns cem segundos depois, no apogeu do suplemento nacional, resolve desfechar seu primeiro beijo. Agiu de maneira decisiva e fulminante, esmagando qualquer resistência. Teve, então, a surpresa. Beijada, Carmelita punha-se a respirar alto, forte, como se faltasse ar, numa dispnéia tremenda. Ao mesmo tempo, ele sentia que as mãos da pequena gelavam. Olhou para os lados, assustadíssimo, já prevendo que o vaga-lume aparecesse ali e fizesse incidir sobre eles a lanterninha acusadora. Chamava, em voz baixa: “Fulana!

Fulana!”. E pedia:

— Não faz escândalo! Não faz escândalo!

Cinco minutos depois, percebendo que Carmelita estava mais ou menos recuperada, teve a iniciativa de propor: “Vamos embora, vamos?”. Saíram. E, na rua, impressionado, perguntou:

— Mas que foi que houve contigo?

Ainda arrepiada, admitiu, doce e triste:

— Gostei demais!

DRAMA

Procurou disfarçar o mais possível. Mas já era outro homem e seu interesse sofrera uma queda vertical. Quando se despediram, ela apertou na sua a mão do rapaz:

— Vou te dizer uma coisa.

— Diz.

Baixou os olhos:

— Eu nunca tinha sido beijada. Quero ver minha mãe morta se estou mentindo.

Você foi o primeiro homem a me beijar. — Pausa e completou: — E eu espero que
seja o último.

Deu a face para que ele a beijasse e balbuciou o pedido: “Telefone, sim?”. Saiu dali desesperado. E, mais tarde, com um amigo, contou o episódio: “Beijei uma pequena, um beijo sem maiores pretensões, e ela só faltou subir pelas paredes”. O outro, de lábio trêmulo, confessou:

— Essa é das minhas. Gosto de mulher assim.

Cabeleira suspirou:

— Nem oito, nem oitenta. Tomei um tal enjôo, que já não acho mais a mínima graça na fulana. Vou chutá-la.

O CHUTE

No dia seguinte, ela o esperava no seu melhor vestidinho, gordinha e linda.

Recebeu-o com um ar de humildade, de adoração e anunciou: “Sabe que eu tive um sonho contigo? Mas não posso contar, porque…”.

— Porque o quê?

Desviou a vista:

— Porque é impróprio para menores.

Foi essa ternura que o decidiu. Pigarreou e disse:

— Preciso te contar um negócio muito sério.

E ela:

— Fala.

Sem uma palavra, ele enfiou a mão no bolso, apanhou uma aliança, que colocou no dedo adequado. Atônita, Carmelita parecia não entender. Mas era óbvio: Cabeleira pousava agora a mão esquerda em cima da mesa, com a aliança evidente, inequívoca, insofismável. Durante alguns momentos, olharam-se em silêncio. Com uma doçura inimaginável, ela perguntou:

— Casado? Você é casado?

— Sou. Casado no civil e no religioso. Pai de filhos e outros bichos. Moro com minha mulher, gosto dela, não me separo nem a bacamarte.

Quando Carmelita começou a chorar, ele, tomado de uma pena súbita, apanhoulhe a mão: “Mas que é isso? Ora essa!”. De repente, começou a falar de si mesmo: “Fiz um papel contigo indecentérrimo. Sabes que a teu lado eu me sinto um canalha?”. A pequena assoou-se no lencinho. Apanhou a bolsa, ergueu-se:

— De hoje em diante, nunca mais fala comigo.

PERSEGUIÇÃO

Em casa, Cabeleira custou a dormir: “Que sujeira abominável!”. Só conseguiu anestesiar a consciência quando chegou, de boa-fé, à seguinte conclusão: “Foi melhor assim. Foi mais negócio, inclusive pra pequena”. Mas, no dia seguinte, a própria Carmelita, em carne e osso, comparecia ao seu escritório. Conversaram no corredor. E a menina, com uma dignidade muito doce, deu o dito por não dito. Esteve realmente lancinante ao concluir: “Gosto de ti assim mesmo, de qualquer maneira, casado ou solteiro, com filhos ou sem filhos”. Durante umas quarenta e oito horas, Cabeleira viveu dominado pela maior e mais dolorosa perplexidade. Não sabia o que pensar, o que fazer. Andou saindo com a menina e insistia: “Pensaste bem?”. Respondia, com uma coragem alarmante: “Contigo vou ao fim do mundo!”. Foram ao cinema e, na saída, Carmelita tem um lamento:

— Você não me beijou. Você não me deu nem um beijinho.

O AMIGO

Coincidiu que, por essa época, Cabeleira encontrou-se na rua com o Carvalhinho. Este se arremessou de braços abertos, numa efusão de arrepiar. Dois anos atrás, ele arranjara um convite do High-Life para o Carvalhinho. Este se tomara de uma gratidão agressiva e selvagem. Desde então, queria, a todo o transe, manifestar o seu reconhecimento. E não lhe ocorrera uma fórmula mais eficaz do que oferecer o seu apartamento. Sempre que encontrava o Cabeleira, oferecia, lembrava: “Quando tiveres uma pequena, já sabes: o apartamento está às ordens”. Celebrava as vantagens do local: “Discretíssimo. Água fria e quente, vista para o mar”. Até aquela data, o Cabeleira não tivera oportunidade de recorrer à gentileza do Carvalhinho. Ao vê-lo agora, porém, bateu na testa: “Tenho uma pequena, assim assim…”. O outro o interrompeu, aos berros:

— Pois então? Leva pro apartamento. Não dorme no ponto. Mulher não se enjeita.

A CHAVE

Era óbvio que a gratidão do Carvalhinho estava mais acesa do que nunca. Não havia hipótese de esquecer o convite. Quando o amigo se despediu, deixou a chave do fabuloso apartamento. Criou-se, para Cabeleira, o dilema. Quando viu a pequena fez o convite; mas insistiu: “Olha que eu sou casado e não posso me casar”. E ela:

— Não faz mal. Vou assim mesmo.

O PECADO

Segundo a combinação feita, ela devia estar lá às quatro horas da tarde. Muito antes, já o Cabeleira entrava no tão falado apartamento do Carvalhinho. E justiça se lhe faça: esse apartamento, decorado não sei por quem à maneira árabe, abismou o Cabeleira. Esteve no banheiro, experimentando a água fria e quente; afundou nas poltronas, que eram realmente espetaculares. Torturado de escrúpulos pensava: “Não tenho direito de fazer isso. Vou desgraçar essa pequena”. Na hora certa, com uma pontualidade patética, chegava Carmelita. Vinha tão segura de si, com tão firme e desesperada determinação de pecar, que o rapaz se crispou: “E não tens medo?”.

Encarou-o, serena:

— Por que e de quê? Não há mulher mais feliz do que eu.

Então, Cabeleira, que era sentimental como o diabo, segurou a pequena pelos dois braços: “Sua boba, eu não sou casado, nunca fui casado. Essa aliança é de araque!”.

Pausa e, já com vontade de chorar, disse o resto:

— Tu vais sair daqui agorinha mesmo, já. Nem te beijo. Faço questão de me casar contigo, de véu, grinalda e outros bichos!

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