Do ônibus a caminho do palácio de Cnossos, em Creta, avistava-se a placa nos antigos limites de Heraklion. Ela dizia “alguma coisa Nikos Kazantzakis”. Depois de três semanas na Grécia, a gente consegue ler o alfabeto local, ainda que quase sempre sem saber o que as letras informam. De “Nikos Kazantzakis”, porém, eu tinha certeza.
Também sabia que, por ter sido excomungado pela Igreja Ortodoxa Grega, contrariada pelo livro “A última tentação de Cristo”, Kazantzakis havia sido sepultado isoladamente, sobre um bastião nas muralhas de Heraklion, em 1957. Havia a chance, portanto, de “alguma coisa” significar “túmulo de”. Saltamos ali na volta de Cnossos.
Em meio a uma pracinha árida, lá estava o túmulo de Kazantzakis: uma pedra escura, uma lápide branca, uma cruz singela, formada por galhos secos. A solidão era indizível, embora um jovem casal namorasse num dos banquinhos próximos. Na lápide, o mais belo epitáfio que conheço: “Eu nada espero. Eu nada temo. Eu sou livre.”
Nove anos antes, cobrindo o Festival de Veneza para o “Jornal do Brasil”, eu ficara impressionado com a profunda religiosidade do filme que Martin Scorsese — um ex-seminarista — fizera baseado em “A última tentação de Cristo”. Enquanto isso, a sala de projeção era protegida de fundamentalistas cristãos por um cinturão de carabinieri.
Na viagem de volta, eu comprara a edição americana do livro e reforçara a desconfiança sobre o que de fato incomodava as igrejas (a Católica também o colocara no índex). Não, não era o envolvimento de Cristo com mulheres (a tentação do título, superada) e sim o papel de Judas, que o trai para que se cumpra a Palavra (uma seita herética da Idade Média chegava quase a considerá-lo o verdadeiro Messias).
Na orelha da recém-lançada edição da Grua para o romance “O capitão Mihális”, passado durante uma rebelião de Creta contra o Império Otomano, em 1889, o poeta Alexei Bueno enaltece a força e a coerência do conjunto da obra de Kazantzakis e o define: “Intrinsecamente um místico, mas assombrado pela solidão trágica do homem, sua visão do mundo se aproxima do que poderíamos chamar de niilismo heroico”.
A Grécia, aqui e agora, é uma escala em mais um dos meus retornos ao Japão. O próprio Bueno me deu outra dica kazantzakiana, semanas atrás: o escritor viajara ao país e à China, registrando a sua experiência em livro. Na verdade, ele viajara duas vezes. A primeira em 1935 e a outra no ano de sua morte, aos 74 anos, por leucemia. Sua segunda mulher, Eleni, o acompanhou na despedida do Oriente e da vida, recolheu trechinhos do diário do marido e os comentou, num longo adendo ao livro original.
Consegui uma edição americana usada, “Japan China — A journal of two voyages to the Far East”. Admito que não foi sem temor que comecei a leitura: apesar de o militarismo nipônico já estar em marcha ao menos desde a invasão da Manchúria, em 1931, Kazantzakis conhecera o orgulhoso Japão antes da Segunda Guerra Mundial; seria eu capaz de reconhecê-lo de minhas viagens? O temor era tolo, claro. Uma das coisas que caracteriza o país é justamente a coexistência entre passado e presente.
Kazantzakis descreveu, por exemplo, uma cena numa ponte de Osaka. Dois ciclistas colidiram e caíram no chão. Ele parou e aguardou a briga. Os dois japoneses se levantaram, sacudiram a poeira das roupas, tiraram seus chapéus, se cumprimentaram em silêncio e seguiram suas vidas. “O Japão transborda de pessoas”, escreveu o grego. “A existência em comum seria intolerável se lhes faltasse polidez.” Eu vi os avisos nas estações de trem, pedindo para que não se deixe malas atrapalharem o trânsito alheio.
Sendo grego, Kazantzakis estava particularmente atento ao sentimento trágico no dia a dia da outra nação, também acossada por vulcões, terremotos, maremotos. Ainda no navio, ele notou como os japoneses riam o tempo todo. “A tragédia não teria nascido (…) se a comédia não tivesse nascido no mesmo momento”, refletiu. “Elas são irmãs gêmeas. Só quem sente a tragédia da vida pode sentir o poder redentor do riso.”
Sendo místico, Kazantzakis também se interessava pela relação que aquela gente estoica tinha com o transcendente. Ficou impressionado com o modo como os japoneses adaptaram o budismo, importado da Índia via China, ao xintoísmo nativo, fundado no culto aos ancestrais. “Por que um homem deveria temer a morte se acredita que após morrer ele se funde com toda a sua raça e se torna imortal?”, pensou.
Sendo um esteta, Kazantzakis via uma similaridade principal entre o Japão e o seu próprio país, ao menos o seu país na Antiguidade. “Mesmo a menor das coisas a surgir das mãos do homem para ser usada na vida cotidiana é uma obra de arte, feita com amor e graça”, escreveu na despedida de 1935. Enfim, o grego viu o que qualquer um que visite o Japão no século XXI ainda vê: um povo ocupado em embelezar a vida e dignificar a morte. Só que a sua admiração se expressou numa prosa superior.