Juiz de Paz – Crônica de Carlos Drummond de Andrade

O juiz de paz chegou cedo ao cartório. Era dia de muito casamento — o santo da folhinha ajudava. Aquele cartório! Feio, desarrumado como todos os cartórios. E por que se casam tantas pessoas no Brasil? Por que estão fazendo sempre a mesma besteira? Não aprendem?

O oficial-maior apareceu vinte minutos depois, para desagrado do juiz de paz. Quando o magistrado chega — mesmo sendo juiz de paz, a majestade é uma só — o cartório deve estar preparado como um templo, os acólitos em seus lugares. Mas o oficial-maior é mulher, e mulher não tem jeito não.

– Quantos, hoje?

– Dezessete.

Barbaridade. Trinta e quatro noivos, suas famílias e testemunhas espremendo-se na salinha e nos corredores, fazendo barulho de motor. O juiz de paz não pensou na renda, pensou na amolação.

– Silêncio!

A energia da voz e da campainha fez estremecer os nubentes. Moças nervosas ficaram com medo — de quê? É tudo tão inseguro hoje em dia, nunca se sabe se haverá mesmo casamento ou se, à última hora…

Chamado o primeiro par, rapaz e moça aproximam-se um tanto estúpidos, como acontece nessas ocasiões, e sentam-se. O oficial-maior anota nomes e endereços das testemunhas. O juiz manda que todos se levantem e é obedecido, menos pelo oficial-maior.

– A senhora não vai se levantar?

– Não.

– Como juiz, ordeno ao sr. oficial-maior que se levante e proceda à leitura do termo.

– Vou ler sentada.

– Não ouviu minha ordem?

– Não recebo ordens do senhor.

– De quem recebe, então?

– Do doutor corregedor da justiça.

– Pois então não há casamento.

Os noivos entreolham-se, estupefatos. A noiva, lacrimejante:

– Não faz assim com a gente, seu juiz!

– Sinto muito, mas todos os casamentos estão suspensos.

Um rumor de onda batendo na praia acolhe a declaração. O oficial-maior continua sentado(a). Interessados apelam.

– Por que a senhora não se levanta? Que que custa!

– Já fiquei sentada muitas vezes, hoje é que ele implicou. Não pode fazer isso.

– Não impliquei nada. É da lei.

– Implicou. Vive implicando comigo. Sou uma pobre moça solteira, mas não admito ser humilhada.

O corregedor, procurado pelo telefone, não foi encontrado. O juiz de direito da vara de família atendeu depois de muito número discado, e respondeu que só resolvia consulta por escrito.

O juiz de paz estava sem cabeça para redigir. O oficial-maior, passado o instante de bravura, chorava baixinho. Três partidos se haviam formado. Não se humilha uma mulher. A um juiz não se desacata. Ela devia ceder. Ele é que devia. Que é que a gente tem com isso?

– Se quiser, eu mesma redijo para o senhor.

Era o oficial-maior, oferecendo colaboração ao juiz de paz.

Ele pensou que fosse ironia, mas o tom era sincero. Começaram a elaborar a consulta. Ela achava as palavras por ele. E foi escrevendo por conta própria: a serventuária rebelde tinha vinte anos de serviço, estava cansada, reumática. Enquanto podia levantar-se, não deixou de fazê-lo. Agora, era um sacrifício. Ele olhava-a escrever e tinha uma ruga na testa.

– Pode parar. Não vou fazer consulta nenhuma. Ela encarou-o.

– Reconheço que tenho andado nervoso, essa dor de cabeça constante. Vou ao médico. Tenho sido um juiz de paz ranheta. Me perdoe. Também essa vida que eu levo, tão sozinho…

O oficial-maior retirou o papel da máquina. Os dois voltaram a seus postos, e os noivos foram chegando e casando. Só um havia desistido — Deus sabe por quê. Durante o quinto casamento, o oficial-maior fez menção de levantar-se, como quem diz: agora, chega; mas o juiz, com um gesto, aconselhou-lhe ficar como estava. Três meses depois, o juiz de paz estava casado com o oficial-maior.

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