No Recife velho, como noutras cidades antigas do Brasil, Santo Antônio, São Pedro e principalmente São João eram festas que rivalizavam com os são-joões de engenho. A mesma animação. Muito bolo. Muita canjica. Muita dança. Muito samba. Grandes fogueiras armadas no meio das próprias ruas — e não apenas nos quintais ou nos pátios das casas, para o Diabo não vir dançar à meia- noite diante delas. Verdadeiras batalhas entre rapazes de ruas diferentes: batalhas de busca-pés, limalhas, foguetes, em que mais de um rapaz ficou cego ou perdeu a mão: ou morreu gritando de dor, horrivelmente queimado.
O culto do fogo até o sacrifício de olhos, de mãos, de pessoas inteiras. O culto do fogo fazendo negros velhos atravessarem com os pés nus fogueiras acesas, gritando “Viva o senhor são João”, sem se queimarem: preservados do fogo pela fé no santo como o negro velho Manuel de Sousa, criado do meu tio Tomás de Carvalho, que em pequeno vi com os meus próprios olhos pisar em fogo sem se queimar. Atravessar fogueiras sem se tostar. Simplesmente gritando “Viva o senhor são João!”
Mas também foi São João entre os recifenses antigos festa meio pagã de culto da água. Foram célebres no Recife, como noutras cidades do Brasil antigo, os banhos de São João: “reminiscência simbólica do batismo de Jesus pelo precursor”, diz um doutor no assunto a propósito da cantiga popular:
Na noite de São João
Hei de banhar-me no açude Nessa noite é benta a água Para tudo tem virtude
Cantiga entoada pelos que iam se banhar ou se lavar na noite do santo. Banho às vezes só simbólico: simples romaria às águas do rio junto às quais cantavam moças e rapazes, enfeitados com capelinhas de melão:
Capelinha de melão É de são João
Depois de lavados, corpo e alma, cantavam os devotos mais ortodoxos do santo do carneirinho — os que, na verdade, tinham mergulhado nas águas purificadoras:
Ó meu são João Eu já me lavei
As minhas mazelas No rio deixei
Muitos eram os recifenses que deixavam as mazelas nas águas do Capibaribe: principalmente no Poço da Panela. Outros nas águas do Beberibe. Alguns simplesmente em águas de açudes, das levadas e dos riachos. Até nas águas do riacho da Prata. O célebre riacho da Prata onde é tradição que foi sepultada no século XVII a opulenta prata de Branca Dias, judia rica, perseguida pela Santa Inquisição.
Mas no Brasil antigo as águas dos rios, dos riachos, dos açudes não se tornavam, noite de São João, apenas purificadoras. Também reveladoras do futuro das pessoas que se debruçassem sobre elas. No Recife velho, o Capibaribe, o Beberibe, os riachos tiveram essa função mágica para muito recifense que, noite de São João, à meia-noite, quisesse saber o futuro. O que visse ou deixasse de ver nas águas era o futuro. A crença principal era a de que a pessoa que, noite de São João, à meia-noite, não conseguisse ver na água a própria imagem ou cabeça, podia estar certa da morte próxima. Não brincava outro São João.
Dizem que em Apipucos uma moça cuja maior vontade era casar — casar com um homem muito rico ou simplesmente casar, pois numa época em que as sinhazinhas casavam aos 13, 14 anos, ela já estava passando dos vinte, solteirona — saiu de casa com a mucama, noite de São João para “tirar a sorte” de ver ou não ver, menos a própria imagem, que a de noivo ou futuro marido, nas primeiras águas que encontrasse. As primeiras águas que encontrou foram as do riacho da Prata. Decidiu debruçar-se sobre elas. Disse à mucama que esperasse: “espera um pouco, Luzia”. Pois segundo o rito, só desacompanhada ou sozinha a pessoa podia tirar a sorte. O mesmo que acontece com botija de dinheiro enterrado: só desacompanhada a pessoa a quem foi revelado misticamente o esconderijo pode desenterrar o tesouro.
Chegou-se a iaiá bem para perto do riacho. Afoiteza da moça, pois essas águas há muito tempo tinham fama de mal-assombradas. Eram as águas — repita-se para benefício do leitor estranho ao Recife — que guardavam a prata escondida pela judia rica no tempo da Inquisição. As águas onde havia quem jurasse aparecer o fantasma de Branca Dias, “botando sentido na prata”. Pelo menos era o que supunha a gente simples do lugar.
Debruçou-se a moça sobre as águas do riacho. Parece que não viu imagem nenhuma — nem de noivo nem a própria — porque debruçou-se mais, inquietando com isso a fiel mucama. E ia a mucama gritar “Iaiá, não se debruce mais!” quando primeiro que ela gritou a moça: “Me acuda, Luzia! Me acuda que ela quer me levar!” “Ela” era com certeza a judia rica.
Correu a mucama mas já sinhazinha tinha desaparecido nas águas do riacho da Prata. E para a mucama não havia dúvida: o fantasma de Branca Dias levara a outra branca para o fundo das águas. Para o meio das pratas finas sepultadas no fundo do riacho. Ainda hoje há quem às vezes veja, noite de lua, duas moças nuas no meio das águas da Prata. Dizem que uma é Branca Dias e, a outra, a sinhazinha que se sumiu no riacho noite de São João.
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