Noiva da morte – Conto de Nelson Rodrigues

Era o único varão numa família de mulheres. E, desde garoto, ouvia dizer:

– Alipinho não casa! Nós não deixamos Alipinho casar…

O Alipinho era ele. Cresceu num ambiente de absoluta predominância feminina, cercado de mulheres por todos os lados. Foi tiranizado, ferozmente, pela mãe, irmãs, tias e primas. Quase não saía de casa, quase não ia à rua. A parentela vivia no terror de outros meninos; fazia advertências: “Você não brinca com aquele menino, não. Ele diz nome feio, meu filho.” E o Alipinho, desde os quatro anos, sabia que dizer palavrão é pecado, que “Papai do Céu não gosta”. De vez em quando, o pai, vendo o garoto estiolar-se entre saias, explodia:

– Ora, bolas! Vocês estão pensando o quê? O Alipinho é homem! — E enchia a boca, com a palavra: — Homem!

Mas as mulheres, inclusive a mãe, se atiravam em pânico, numa pavorosa histeria coletiva. Agarravam-se ao menino, absorviam o menino: a mãe, em crise, frenética, berrava: “O filho é meu!” E atirava à cara do marido o grande argumento:

– Fui eu quem teve as dores! Eu!…

O marido, mascando o charuto apagado, sentia-se impotente diante dessa conspiração feminina. Saía, furioso, batendo com as portas e uivando: “Vão pro diabo que as carregue!” Na ausência dele, rosnava-se, pelos cantos: “Homem mau!”

A flor

Enfim, o pai de Alipinho caiu de cama. E o engraçado é que, desde o primeiro momento, não teve dúvidas. Convocou a mulher, as filhas, o próprio Alipinho, e disse, sem dramaticidade, com ar apenas informativo: “Pessoal, eu vou morrer.” Houve protestos e choradeira, mas ele insistiu, sóbrio e digno: “Estou liquidado.” E, de fato, o médico mandou fazer vários exames e constatou-se apenas isto: “Câncer.” Aventurou-se, a medo, com pudor, a pergunta: “Quantos meses de vida?” Resposta: “Três.” Houve a dor necessária e compreensível. E mais do que isso: o espanto, o medo. Realmente, a morte datada impressiona e assusta muito mais. Havia, também, de uma maneira inconfessada, um sentimento de alívio. Com a morte do pai, que a ciência prometia, a educação de Alipinho deixava de ser um problema agudo e desesperador. O pai exigia, para o filho, uma educação de homem; dizia mesmo: “Quero que meu filho beba, fume, diga palavrões!” Já a mãe, com o apoio compacto das filhas, sonhava com um Alipinho doce, respeitador, doméstico. Anunciava, francamente: “Se meu filho chegasse tarde em casa, eu morria do coração!”

O pai morreu no fim dos três meses. Antes, porém, acusou a mulher: “Você é uma criminosa. Você está transformando meu filho num maricas. Escreve o que eu vou dizer: meu filho vai ser um degenerado.” Ela ouviu tudo isso, sem protesto, por se tratar de um moribundo; mas trançou os dedos, em figa. Quando voltou do cemitério, não pôde evitar um suspiro de alívio. Ia poder, enfim, educar o filho à sua maneira. Alipinho estava, na época, com 13 anos e era, realmente, uma flor.

Último desejo

Mas o que ninguém sabia era de uma conversa que, antes de morrer, o pai de Alipinho tivera com o dr. Assunção, médico da família. Já com o pé na sepultura, o moribundo dispensou-se de quaisquer cerimônias ou hipocrisias: disse o diabo. Começou assim:

– Doutor, vou lhe fazer um último pedido.

– Pois não.

O outro, no seu fôlego curto, ofegava: “É o seguinte: o senhor sabe que a cretina da minha mulher…”

Ao ouvir a expressão “cretina”, o médico pigarreou; mas o doente prosseguiu: “… a cretina da minha mulher o respeita muito, ouve muito o que o senhor diz.” O médico admitiu: “Mais ou menos.” Continuou o doente: “Pois bem. Quando chegar a época, eu queria que o senhor usasse a sua influência e fizesse meu filho casar.” O moribundo encarou o médico: “É meu último desejo, doutor. Eu lhe peço por tudo…” E numa derradeira irritação terrena, o infeliz ainda chamou o filho de “essa besta” e a mulher de “débil mental”. Dr. Assunção balbuciou:

– Pois não. Prometo.

– Jura?

– Juro. Farei o que estiver ao alcance. Pode ficar descansado.

No fundo o médico gostou de ser o depositário de um “último desejo”. Lera, não sei onde, que “a um morto não se recusa nada”. Em casa, com a mulher, dr. Assunção contou o caso e, dissimulando a vaidade, suspirou:

– Um abacaxi tremendo!

O abacaxi

Dr. Assunção julgava-se muito hábil e, piscando o olho, soprou para a esposa: “Neste caso, tenho que ser maquiavélico…” Sintoma do seu maquiavelismo foram os meios insidiosos que adotou para realizar seus desígnios. Ia à casa do Alipinho com mais frequência e opinava sobre tudo, inclusive sobre o preço do feijão. Queria ter uma participação cada vez maior na vida da família, familiarizar-se com os assuntos da casa. Um belo dia, começou de maneira indireta: “O casamento é uma necessidade social e natural.” A própria frase o encantou pela sonoridade. Virou-se para a mãe do Alipinho e fez a interpelação cordial: “A senhora não acha?” Esperou a concordância, mas a outra contra-atacou: “Ah, não. Eu não acho.” O médico espantou-se: “Como?”

Ela esclareceu:

– Eu acho o seguinte: a mulher deve casar… O homem, não.

– Ora veja!

Ela teimou dardejando um olhar para o Alipinho: “Só a mulher precisa casar.” Um pouco desconcertado, o dr. Assunção resolveu ser hábil: protelou o assunto. Em casa, com a mulher, numa autossatisfação profunda, admitiu:

– Eu sou maquiavélico! Eu sou maquiavélico!

Mas o fato é que se apaixonara pela missão que, inicialmente, ele próprio achara um “abacaxi temendo”. Interessara a mulher na causa; e ela o estimulava: “Olha, Fulano, tu não podes fracassar.” Ele dava garantias:

– Deixa por minha conta.

Alipinho

Enquanto isso, o Alipinho ia crescendo, cada vez mais agarrado às saias da mãe e das irmãs. Evitava companhias masculinas e, a rigor, seu círculo de relações era estritamente feminino. Sentia-se bem lidando com moças e senhoras, merecia delas um tratamento de igual para igual. E ninguém mais fino, mais educado, mais doce. Dizia-se, a seu respeito: “É uma dama!” Quando, certa vez, o dr. Assunção sugeriu que um rapaz “deve ter modos de homem”, houve um alarido de mulheres. Frenética, a mãe do Alipinho saltou:

– Não, senhor! Absolutamente! O homem não precisa ser cafajeste! Pois eu estou muito satisfeita com os modos do meu filho!…

O Alipinho tinha, então, 18 anos de idade. Depois de alguns dias de confabulação com a mulher, o dr. Assunção achou que era o momento de agir de maneira mais efetiva. Chamou o Alipinho ao consultório e os dois tiveram uma interminável conversa. O médico quis saber se ele tinha tido alguma namorada. Não. Então, o doutor, impressionado, resolveu ser mais objetivo e contundente. Olhou para os lados, baixou a voz e soprou a confidência heroica:

– Pois, eu, na tua idade, não me escapava nem rato. Dava em cima de tudo quanto era empregada!

Alipinho voltou para casa atônito. A verdade é que as confidências pessoais do médico lhe haviam embrulhado o estômago. Mas dr. Assunção não perdeu mais tempo. Debatia o assunto matrimonial com a maior veemência. Alegava, polêmico: “É uma lei da natureza!” Ao que replicava a mãe do rapaz:

– Eu quero que a natureza vá lamber sabão! Ele recorria ao “crescei e multiplicai-vos”. Finalmente, a família capitulou pelo cansaço físico. Chorando, a mãe chamou o Alipinho: “Tu vais casar, meu filho.” Suspirou o rapaz numa docilidade de cortar o coração: “A senhora é quem sabe.”

A pequena

Começou, então, a procura frenética da namorada. Procura daqui, dali, acabaram descobrindo uma tal Marta, da idade do rapaz. Era namoradeira que Deus te livre, mas dizia-se, com otimismo: “Muda com o casamento.” Quem nadava em ouro e mel era o dr. Assunção. Via, no caso, uma vitória pessoal; invocava o testemunho da esposa: “Viste a minha habilidade?” Ela pasmava de tamanho maquiavelismo. E continuavam os preparativos do casamento. Alipinho olhava, com uma espécie de terror, a noiva, cheia de elã, de apetite vital. Entre os dois, ela era quem tinha a voracidade dos beijos. Ele, emagrecia e, de vez em quando, precisava tomar coramina, por causa das palpitações. Só deu opinião uma vez: na escolha do vestido da noiva. Exigiu um modelo de Rainha, de Princesa, de Fada, algo de inimaginável e inesquecível. Três dias antes do casamento, o vestido ficou pronto. Então, sem dizer nada a ninguém, Alipinho foi buscá-lo.

Carregou o embrulho como uma preciosidade. Saltou do táxi, entrou em casa pelos fundos, sem que ninguém o percebesse. Aliás toda a família, nesse dia, fora para a casa da noiva.

As núpcias

Sozinho, em casa, Alipinho não precisou ter pressa. Tomou um banho, com sabonete espumoso. Depois, perfumou-se com água-de-colônia, diante do espelho. Da água-de-colônia passou ao pó de arroz, ao ruge, ao batom. E, finalmente, pôs o vestido de noiva, inclusive a grinalda, o véu. Apanhou um disco da marcha nupcial, que comprara na véspera, e o colocou na vitrola. Ao mesmo tempo, acionou o dispositivo que faria repetir o disco, indefinidamente. Feito isto, deu todo o volume. Horas depois, chega a família. Já a vizinhança estava alucinada com o disco da marcha nupcial. Desligam a vitrola. Uma das irmãs vai ao banheiro e lá vê aquele vulto branco suspenso. Grita, rola em ataque. Todos correm, num atropelo. Inclusive os vizinhos invadem a casa. Vestido de noiva, com véu e grinalda, enforcara-se Alipinho.

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