O amigo puxa uma cadeira, senta-se a seu lado. Conversa vai, conversa vem, e o outro diz, acendendo um cigarro:
– Conheci ontem teu futuro genro.
Eurilo estava em pé, junto ao armário de aço, vendo umas pastas. Vira-se, num espanto imenso: “Meu futuro quê?” O amigo repete:
– Teu futuro genro. O namorado da tua filha. A menor. Atônito, Eurilo fecha a gaveta. Aproxima-se; começa:
– Eu não estou entendendo. Namorado de minha filha? Da caçula? Mas não pode ser! É impossível! Nenhuma das minhas filhas tem namorado e, muito menos, a menor! — e insistia: — Deve haver algum engano!
O outro teimou:
– Mas eu falei com o rapaz, ora, bolas? Falei também com a mãe do rapaz! É batata!
Eurilo ri, amargo:
– Já vi tudo! É o tal negócio: o pai é o último a saber. Mas não há de ser nada e Deus é grande.
A fera
Na rua, era cordial com todo mundo, cordial talvez demais. Uma vez, no ônibus, foi até interessante. Desfeiteado pelo trocador, não teve uma reação. Meteu-se num canto, lívido, enquanto o trocador esbravejava. Pois bem. Afável e, até, pusilânime, com os outros, era uma fera em casa. Viúvo há 16 anos, tinha cinco filhas, às quais dispensava um tratamento bárbaro. As meninas andavam, em casa, na ponta dos pés, no pânico desse pai terrível. O hábito da obediência, da sujeição, as petrificava. Eurilo ia do berro, do grito, ao castigo corporal. Das cinco, apenas a caçula, Terezinha, de 16 anos, permitia-se, às escondidas, umas certas audácias. Por exemplo: na ausência do velho Eurilo, ia ao cinema, com as coleguinhas; ou, então, flertava com rapazes da vizinhança, na porta do edifício onde moravam. As outras, não. Submetiam-se às ordens paternas com uma docilidade total; e o respeitavam, mesmo na ausência. Dr. Eurilo já avisara:
– Eu rebento a primeira que namorar! Estão avisadas!
Rebelde
De noite, ele entra em casa, fora de si. Tranca-se com a mais velha, no gabinete. Pergunta: “É verdade que Terezinha está namorando?” A filha crispa-se diante dele: “Não sei, não sei.” O pai a segura pelos dois braços: “Responde. Sim ou não?” Como a pequena vacilasse ainda, dr. Eurilo arranca o cinto. Então, a infeliz cai de joelhos, soluçando:
– É verdade, sim! Está namorando! Com a voz estrangulada, o velho diz:
– Eu sabia! Tinha certeza!
E quando a filha, no seu terror, passa por ele, de cabeça baixa, o velho dá-lhe uma lambada com o cinto. Só no gabinete, deixa-se cair, na cadeira, exausto da própria cólera. Fecha os olhos e pensa: “Todas iguais! Todas a mesma coisa!” Cinco minutos depois, ele aparece na porta e chama a caçula, a Terezinha. Das cinco irmãs, quatro eram pobres e desbotadas figuras femininas, sem graça, sem viço, tristíssimas solteironas. Só a menor tinha encantos reais. Jeitosa de corpo e de rosto, uns olhos de sonho, lábios finos e meigos, chamava a atenção de todo o mundo. O pai vira-se para ela e, sóbrio, contido, pergunta:
– Tens um namorado, não tens?
– Eu?
O velho continua:
– Eu sei que tens. Pois bem. Manda o rapaz, amanhã, aqui falar comigo. E faz o seguinte: convida-o para jantar. Quero conhecer o meu futuro genro.
O jantar
O rapaz chamava-se Armando. No dia seguinte, aparecia na casa da pequena, com certo pânico. Dr. Eurilo, que chegara mais cedo, recebeu-o com relativa cordialidade. Primeiro, houve o triste, o fúnebre, o silencioso jantar. Servido o café, dr. Eurilo ergueu-se. Apoia as duas mãos na mesa e se dirige ao visitante:
– Suas intenções são boas? Você quer mesmo casar-se com a minha filha, aqui presente, Terezinha?
O rapaz pigarreia:
– Perfeitamente. Dr. Eurilo levanta a voz:
– Bem. Se o caso é assim, você precisa conhecer certas particularidades da família de sua namorada. Em primeiro lugar: minha filha lhe disse, com certeza, que a mãe morrera de parto, não disse?
Assentiu:
– Disse.
O velho dá um murro na mesa, simultâneo com o berro: “Mentira!” Passa a mão no colarinho, abre o nó da gravata, como se lhe faltasse ar. Prossegue arquejante:
– A morte de minha esposa, foi uma lenda que eu criei para as minhas filhas. Até hoje, até este momento, elas não conhecem a verdade que eu vou revelar agora. Minha mulher, vinte dias depois de dar à luz a Terezinha, fugiu com outro. Compreendeu? Ouviu bem? Fugiu!…
– Compreendi.
Tem um riso soluçante:
– Interessa-lhe a filha de uma cínica? Interessa-lhe a filha de uma desalmada que destruiu dois lares? Interessa-lhe? Responda! E saiba do seguinte: de todas as minhas filhas, a que se parece mais com minha mulher, o retrato de minha mulher, é justamente Terezinha!
Armando, lívido, com o lábio inferior tremendo, tem medo dessa violência. Dr. Eurilo projeta-se da cabeceira; faz a volta da mesa. Apavorado, Armando levanta-se. Estão, face a face, o velho possesso e o adolescente acovardado, dr. Eurilo agarra-o pelos dois braços e o sacode:
– Queres ser traído? Traído como eu fui, queres? Fala! Queres?
O rapaz tem um esgar de choro: “Não!” Dr. Eurilo arrasta-o. Abre a porta e aponta:
– Some! Some!
A tragédia
Volta para o interior do apartamento com a respiração funda, e a boca marcada por um rítus hediondo. Contempla os rostos espantados das filhas. Então, a menor, a caçula, destaca-se do grupo atônito. Aproxima-se do pai. Diante dele, soluça:
– Eu me mato, pai, eu me mato!
Ele recua, numa espécie de deslumbramento: “Tu te matas? Terias coragem de te matar?” Começa a rir em crescendo. Súbito, corta a gargalhada. Cambaleando, vai escancarar a janela, que se abre para o abismo. Recomeça, então, a rir:
– Por sorte, moramos num 12o andar. Tão simples, tão fácil atirar-se daqui.
Simplicíssimo. Queres, ou não queres? Vem, vem!
Ele próprio sobe no parapeito, enquanto as filhas acompanham todos os seus movimentos com deslumbramento. Em pé diante do abismo, instiga a filha; grita: “E se morreres, não trairás nunca! Não trairás como tua mãe! Anda!”
A caçula aproxima-se da janela, como magnetizada. As irmãs permanecem distantes, unidas e solidárias, num grupo de terror. De repente, há um grito na noite, mas um grito de homem e não de mulher, um tremendo uivo masculino. Ele perdera o equilíbrio, caíra lá de cima, de um mortal 12º andar. Todos pensaram num suicídio ou, quando muito, num acidente. Mas veio a polícia, a Rádio Patrulha.
Então, sem uma lágrima, o rosto impassível e inescrutável como uma máscara, a caçula do morto apresenta-se:
– Não foi suicídio, não foi acidente. Eu empurrei meu pai, eu!…