O adolescente que assassinou a namorada – Gilberto Freyre

By | 19/04/2023

Foi no princípio do século. Um adolescente assassinou a namorada ao pé da escada de velho sobrado de São José. Dizem que a menina caiu morta cheia de sangue, nos primeiros degraus. Agarrou-se ao corrimão, chamando pela mãe e pedindo água.

O sobrado continua o mesmo. A escada também. E toda noite range como deve ter rangido na noite do crime. Pelo menos é o que asseguram bons e honestos moradores da rua.

Não é de estranhar que moradores de uma rua de São José acreditem ser assombração um ranger de escada burguesa. Mais de uma casa da região tem ganho fama de assombrada por causa de algum ranger misterioso: de escada, de punho de rede, de cadeira de balanço.

Na casa-grande de velho engenho do sul de Pernambuco é tradição que range, no silêncio das meias-noites, antiga cadeira de balanço em que se balançava certa iaiá ninando o filho. Em casa-grande de engenho também antigo das Alagoas, na sala em que aconteceu há quase um século um crime terrível, contou-me uma vez o general Pedro Aurélio de Góis Monteiro que é tradição ranger misteriosamente, no silêncio da noite, o punho da rede. Mais de uma vez pessoas calmas, e de modo algum arrebatadas ou crédulas, têm se levantado para verificar quem está se balançando na rede. Não encontram ninguém: nem mesmo rede. O ranger de punho de uma rede que não mais existe continua um mistério.

Mistério continua também o ranger da escada do sobrado da velha rua de São José onde o adolescente assassinou a namorada menina. Meninota. Menina- moça.

“Que barulho é esse na escada?” — perguntam às vezes do alto do sobrado tranqüilos burgueses a fazerem de M. Jourdain, isto é, a fazerem poesia sem o saberem. Ninguém responde. O ranger da escada continua a recordar o crime do adolescente como se fosse motivo da poesia célebre: a de Carlos Drummond de Andrade.

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