O Brinco de Pérola – Conto de Rubem Fonseca

Nunca quis receber adiantamento, isso que no métier literário se chama advance. Mas recebi para escrever um conto.

Escrever é uma coisa simples e fácil, é usar sinais (letras, palavras etc.) para exprimir uma ideia, um conhecimento, uma informação, uma opinião, um plano.

Mas neste momento, e já há algum tempo, não tenho nenhuma ideia para escrever algo fictício. E já gastei o adiantamento. Mulheres, ah, as mulheres. Não foi com putas que eu gastei o dinheiro (era uma boa bolada), eu não gosto de puta, nunca fui para a cama com uma puta. Gastei o dinheiro com uma mulher séria. Mas estou chegando à conclusão de que foder puta fica mais barato do que foder mulher séria. E que diabo é mulher séria? Sou mesmo um escritor de merda, nem sei definir os personagens, reais ou fictícios, dos meus textos. Mulher séria é a mulher que não vai para a cama com estranhos. Definição apenas razoável, mas não vou perder tempo com preocupações dicionaristas, tenho que escrever uma peça de ficção. E na verdade ando meio confuso, às vezes não sei se estou numa quarta ou numa quinta-feira.

Eu podia escrever qualquer porcaria, por exemplo, a história de um homem casado que se apaixona por uma mulher casada. O problema é que sou um escritor com certo prestígio, não posso decepcionar os meus leitores. Nem quero decepcionar o meu editor, e por editor me refiro à pessoa que faz a edição, uma mulher muito competente; quanto ao dono da editora, eu quero que ele se foda.

Já fumei um charuto, tomei dois uísques puros e bati com a cabeça na parede. Quando fico nervoso eu bato com a cabeça na parede. Minha mãe disse que eu comecei a fazer isso quando tinha 12 anos. É bom, me faz bem. Eu ponho uma toalha na parede e bato com a cabeça na toalha.

Quando bati com a cabeça na parede pensei: por que não escrever a história de um homem casado apaixonado por uma mulher casada? Puta merda, estou ficando maluco? Esta é a MINHA história. Eu sou casado, e a mulher por quem estou apaixonado também é casada. Sim, foi com ela que eu gastei o advance. Comprei uma joia, mulheres adoram joias, uns brincos de diamantes. E os maridos não sabem quais joias as mulheres têm. Brincos? Nós nem olhamos os brincos que elas estão usando.

Então entrou na minha cabeça uma dúvida perturbadora. Eu olho os brincos que a minha mulher está usando? Será que a minha mulher tem um amante?

Bati com a cabeça na parede. Mas não adiantou muito.

Mulheres e homens casados terem amantes é muito comum hoje em dia. Antigamente quem tinha amantes era o homem, a mulher ficava tomando conta da casa e fazendo tricô. Mas hoje a coisa está dividida.

Eu tenho uma unha do pé encravada. Minha podóloga, que fala sem parar, igual aos barbeiros, uma coisa insuportável, disse que unha encravada pode resultar de inúmeros fatores, mas sapatos inadequados e unhas não cortadas corretamente são as causas mais comuns. E que esse é o meu caso, eu uso sapatos impróprios para os meus pés.

Mas a parte importante e demorada da sua conversa não foi sobre unha encravada. “O senhor é casado?”

“Não, sou solteiro.”

“Aqui vêm muitas mulheres casadas fazer as unhas, além de podóloga eu sou manicure, e elas, essas clientes, ficam falando no celular segurando o aparelho com a mão que não está sendo manicurada, e eu ouço as fofocas que fazem com as amigas. Ignoram a minha presença, isso é muito comum entre as grã-finas ricas: empregadas e outros seres inferiores são invisíveis para elas. Mas elas só falam dos namorados. É assim que elas chamam os amantes. Eu estou namorando o Gabriel, fulana está namorado sicrano etc. Ainda bem que o senhor não é casado, se fosse sua mulher estaria namorado um sujeito e você não saberia de nada. É o meu caso, prefiro não casar a ser corneada.”

Minha podóloga é gorda, feia e tem um buço que ela remove com cera quente, mas fica sempre um resquício, um leve fragmento. Deve ser difícil para ela arranjar um namorado.

Saí da podóloga com a pulga atrás da orelha.

Pulga atrás da orelha: eu jamais usaria essa expressão idiota para falar de uma suspeição sem fundamento, uma conjectura paranoica. Não sei por que veio à minha mente a linda pintura de Vermeer, Moça com brinco de pérola, que tive o prazer de contemplar encantado quando estive em Haia. A minha mulher tinha um brinco de pérola, mas me disse que a pérola era falsa.

Quando fiquei sozinho em casa fui ver as joias nas gavetas da Miriam — esse é o nome da minha mulher — e fiquei bobo com a quantidade de adornos que encontrei. Caixas e mais caixas com brincos, colares, pulseiras, anéis, nem sei os nomes de todas aquelas coisas. O brinco de pérola estava numa caixa preta, que eu coloquei no bolso, e saí rapidamente.

Fui ao joalheiro.

Esse brinco é de pérola verdadeira?

Ele colocou uma espécie de monóculo duplo no olho. Depois de examinar a pérola disse:

“Não é uma pérola, é um enfeite fingindo ser pérola.”

Perguntei se devia alguma coisa pela consulta, eu estava tão feliz que pagaria o que ele quisesse. Ele disse que não. Agradeci apertando a mão dele com força.

Chegando em casa guardei a caixa na gaveta da Miriam.

Ela demorou a chegar. Era comum Miriam passar as tardes inteiras fora de casa, visitando lojas. Eu já estava acostumado com isso.

Quando Miriam entrou em casa eu notei que ela estava com um brinco de pérola. “Você tem dois brincos de pérola?”

“Um só. Puro enfeite”, disse ela.

A orelha de Miriam parecia a da garota de Vermeer.

Fui na gaveta do quarto da Miriam e peguei a caixa com o brinco falso. “E esse aqui?”

Miriam empalideceu.

“Não sei o que é isso…”, balbuciou.

Agarrei Miriam pelas orelhas e arranquei os brincos. Aquelas pérolas eram legítimas, qualquer pessoa perceberia.

As orelhas de Miriam sangravam. Coloquei as duas mãos em volta do seu pescoço e apertei.

“Você saía todas as tardes, ia encontrar seu amante…” Miriam caiu no chão. Vi pela sua cara que ela estava morta. Fiquei pensando como descreveria o que ocorrera.

Decidi bater com a cabeça na parede. Bati.

Miriam morrera por asfixia, um fenômeno causado pelo impedimento da passagem do ar pelas vias respiratórias, resultando em uma alteração bioquímica do sangue, inibindo a hematose — transformação do sangue venoso em sangue arterial —, o que pode levar o indivíduo à morte.

Esta frase está uma merda. Para que esses detalhes? Por que não dizer simplesmente: Miriam morrera estrangulada?

Bati novamente com a cabeça na parede.

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