O cafajeste e o transcendente – Crônica de Paulo Mendes Campos

O diálogo perene entre o classicismo e o romantismo é substituído na vida literária atual do Brasil pelo desprezo que se votam o cafajeste e o transcendente. Na futura história literária de nossa época, naturalmente, será esquecida a grita que ambos levantam, que foi sempre a história um reduzir de gritos e vaidades à sua expressão mais simples. Por enquanto, porém, o que predomina em nosso terreno literário, a abafar as vozes discretas, é o zumbir dos cafajestes contra o murmurinho dos transcendentes.

Por cafajestismo, entendemos a organização de literatos e subliteratos, que não tendo embora estatuto ou profissão de fé, constitui uma sociedade de letras, com seus cacoetes, seus princípios, seus axiomas. Não disciplinados embora, a polícia que exercem na literatura é perfeitamente discernível.

O que singulariza o cafajeste (como também o transcendente) é a incapacidade para a síntese. A sua própria tese é evidente por si mesma a antítese alheia é uma estupidez não se preocupando o cafajeste com o esforço mental capaz de obter uma noção verdadeira ou sensata entre dois elementos antagônicos. Exemplos: o cafajeste é ateu e desairosos são os crentes aos olhos dele. O cafajeste gosta de música popular e é pedantismo na sua opinião apreciar Beethoven ou qualquer outro clássico.

O cafajeste é contra a cultura, não de maneira direta, mas através de uma atividade oblíqua contra tudo que represente erudição, sutileza e profundidade. Para ele, não há nada mais ridículo do que o sr. Otto Maria Carpeaux, ninguém mais desprezível do que o sr. Otavio de Faria nenhuma preocupação mais vergonhosa do que a de eternidade. Na literatura estrangeira, o cafajeste jejua de tudo que não lhe fere a maneira de ser e pensar. Não se arrisca a destruir a obra de um Proust ou de um Rilke, e até mesmo costuma respeitar à distância nomes como estes dois. Entretanto, põem um fervor exagerado na admiração por um Zola ou um Rabelais, não sob todos os aspectos, mas no que estes escritores representam o cafajestismo internacional.

Não se confunde o cafajestismo com a subliteratura. Trata-se, pelo contrário, de um comportamento bem definido perante a existência, quase uma filosofia. O cafajeste não é o escritor de mau gosto. Absolutamente. O cafajestismo tem dado alguns escritores de raça dos melhores que temos. São os corifeus do cafajestismo, indivíduos cujo talento vivifica o bando de mediocridades que constitui o grosso do movimento.

O corifeu do cafajestismo é sempre um tipo curioso, em geral um machão, na acepção literária da palavra. Ama as coisas ásperas, sem sutilezas, taxa desdenhosamente de feminilidade todo pensamento que intente elevar-se uns palmos além do solo. O corifeu é de corpo e alma pela literatura regionalista, em que se sinta o famoso cheiro de terra, em que se conte o sofrimento do nosso homem em que os personagens andem com a boca a transbordar de nomes feios. Em matéria de estilo, são pela linguagem fluente, em que se empreguem as palavras do povo, as expressões pitorescas da gente simples. Em razão disto, devemos ao cafajestismo dois movimentos literários de real valor: a preocupação pela nossa terra e pela nossa linguagem, coisas das mais importantes a serem utilizadas na literatura sem preconceitos, que não seja cafajeste nem transcendental. No mais, a atuação do cafajestismo trabalha no empobrecimento da nossa vida intelectual. Fazem guarda nos portões da vida literária dificultando que a nossa cultura possa alcançar o equilíbrio verdadeiro entre o nacionalismo e o universal.

Não vamos nos deter por mais tempo no exemplar oposto, no transcendente. O transcendentalismo é a antitoxina do cafajestismo, é a vida e a literatura colocadas em termos exotéricos, é o desdém pela existência quotidiana, é a valorização arbitrária e frenética do mistério do obscuro. Tem igualmente o transcendentalismo os seus expoentes, os seus corifeus. E não são menos errados do que os primeiros.

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