O decote – Conto de Nelson Rodrigues

Era uma mãe enérgica, viril, à antiga. Diabética, asmática, com sessenta anos nas costas, apanhou um táxi na Tijuca, e deu o endereço do filho, em Copacabana. Chegou de surpresa. A nora, que não gostava da sogra perspicaz e autoritária, torceu o nariz. Já o filho, que a respeitava acima de tudo e de todos, precipitou-se, de braços abertos, trêmulo de comoção:

– Oh, que milagre!

Deu-lhe o braço. Há dois anos, com efeito, que d. Margarida não entrava naquela casa. Indispôs-se com a nora, cuja beleza a irritava, e cortou o mal pela raiz: “Não ponho mais os pés aqui, nunca mais.” Clara deu graças a Deus. Aquela sogra, sem papas na língua, a exasperava. E Aderbal, que era um bom filho e melhor marido, limitou-se a uma exclamação vaga e pusilânime: “Mulher é um caso sério!” Foi só. Eis que dois anos depois, abandonando sua rancorosa intransigência, d. Margarida punha os pés naquela casa. Foi um duplo sacrifício, físico e moral, que ela se impôs, heroicamente. Trancou-se com o filho, no gabinete. Perguntou:

– Sabe por que eu vim aqui? E ele impressionado:

– Por quê?

D. Margarida respirou fundo:

– Vim lhe perguntar o seguinte: você é cego ou perdeu a vergonha?

Não esperava por esse ataque frontal. Ergueu-se, desconcertado: “Mas como?” Apesar dos seus achaques, que faziam de cada movimento uma dor, d. Margarida pôs-se de pé também. Prosseguiu, implacável:

– Sua mulher anda fazendo os piores papéis. Ou você ignora? — e, já, com os olhos turvos, uma vontade doida de chorar, interpelava-o: — Você é ou não é homem?

Foi sóbrio:

– Sou pai.

O pai

Há 15 anos atrás, os dois se casaram, no civil e religioso, e, como todo o mundo, numa paixão recíproca e tremenda. A lua de mel durou o quê? Uns 15, 16 dias. Mas no 17o dia, encontrou-se Aderbal com uns amigos e, no bar, tomando uísque, ele disse, por outras palavras, o seguinte: “O homem é polígamo por natureza. Uma mulher só não basta!” Quando chegou em casa, tarde, semibêbado, Clara o interpelou: “Que papelão, sim senhor!” Ele podia ter posto panos quentes, mas o álcool o enfurecia. Respondeu mal; e ela, numa desilusão ingênua e patética, o acusava: “Imagine! Fazer isso em plena lua de mel!” A réplica foi grosseira:

– Que lua de mel? A nossa já acabou!

Durante três dias e três noites, Clara não fez outra coisa senão chorar. Argumentava: “Se ele fizesse isso mais tarde, vá lá. Mas agora…” A verdade é que jamais foi a mesma. Um mês depois, acusava os primeiros sintomas de gravidez, que o exame médico confirmou. E, então, aconteceu o seguinte: enquanto ela, no seu ressentimento, esfriava, Aderbal se prostrava a seus pés em adoração. Sentimental da cabeça aos pés, não podia ver uma senhora grávida que não se condoesse, que não tivesse uma vontade absurda de protegê-la. Lírico e literário, costumava dizer: “A mulher grávida merece tudo!” No caso de Clara, ainda mais, porque era o seu amor. No fim do período, nasceu uma menina. E foi até interessante: enquanto Clara gemia nos trabalhos de parto, Aderbal, no corredor, experimentava a maior dor de dente de sua vida. Mas ao nascer a criança, a nevralgia desapareceu, como por milagre. E, desde o primeiro momento, ele foi, na vida, acima de tudo, o pai. Esquecia-se da mulher ou negligenciava seus deveres de esposo. Mas, jamais, em momento algum, deixou de adorar a pequena Mirna. Incidia em todas as inevitáveis infantilidades de pai. Perguntava: “Não é a minha cara?” Os parentes, os amigos, comentavam:

– Aderbal está bobo com a filha!

A esposa

Quando Mirna fez oito anos, ele recebeu uma carta anônima em termos jocosos: “Abre o olho, rapaz!” Pela primeira vez, caiu em si. Começou a observar a mulher. Mãe displicente, vivia em tudo que era festa, exibindo seus vestidos, seus decotes, seus belos ombros nus. Um dia, chamou a mulher: “Você precisa selecionar mais suas amizades…” Clara, limando as unhas, respondeu: “Vê se não dá palpite, sim? Sou dona do meu nariz!” Desconcertado, quis insistir. E ela, porém, gritou: “Você nunca me ligou! Nunca me deu a menor pelota!” Aderbal teve que dar a mão à palmatória!

– Bem. Eu não me meto mais. Mas quero lhe dizer uma coisa: nunca se esqueça de que você tem de prestar contas à sua filha.

Foi malcriada:

– Ora, não amola!

Foi esta a última vez. Nunca mais discutiram. Aderbal passou a ser apenas uma testemunha silenciosa e voluntariamente cega da vida frívola da mulher. Tinha uma ideia fixa, que era a filha. Uma vez na vida, outra na morte, dizia à esposa: “Nunca se esqueça que você é mãe.” E era só. Agora que Mirna completara 15 anos, d. Margarida invadia-lhe a casa. Discutiram os dois. A velha partia do seguinte princípio: Clara era infiel e, portanto, o casal devia separar-se e, depois, desquitar- se. Desesperado, Aderbal teve uma espécie de uivo: “E minha filha?” D. Margarida explodiu: “Ora, pílulas!” Ele foi categórico:

– Olhe, minha mãe, eu não existo. Compreendeu? Quem existe é a minha filha.

Não darei esse desgosto à minha filha, nunca!

A velha usou todos os seus argumentos, mas em vão. Aderbal dava uma resposta única e obtusa: “Pode ter amante, pode ter o diabo, mas é mãe de minha filha. E se minha filha gosta dessa mulher, ela é sagrada para mim, pronto, acabou-se!” Por fim, já sem paciência, d. Margarida saiu, apoiada na sua bengala de doente. E, da porta, gritou:

– Você precisa ter mais vergonha nessa cara!

Pecadora

Uns quarenta minutos depois, Aderbal foi falar com Mirna: “Vem cá, minha filha, você gosta muito de sua mãezinha?” Ela pareceu maravilhada com a pergunta: “Você duvida, papai?” Pigarreou, disfarçando: “Brincadeira minha.” Sentada no colo paterno, a pequena, que era parecida com Clara, suspirou: “Gosto muito de mamãe e gosto muito de você.” Atormentado, ele deixou passar uns dois dias. No terceiro dia, discutiu com a mulher. E definiu a situação:

– Eu sei que você não gosta de mim. Mas respeite, ao menos, sua filha. A discussão podia ter tido um tom digno. Mas, Clara estava tão saturada daquele homem, que não resistiu. A voz do marido, o gesto, a roupa, as mãos, a pele — tudo a desgostava. Com 16 anos de casada, percebia que num casal, pior do que o ódio, é a falta de amor. Perdeu a cabeça, disse o que devia e o que não devia. Aderbal quis conservar a serenidade: “Minha filha não pode saber de nada.” Então, Clara teve um acinte desnecessário, uma crueldade inútil; interpelava-o: “Você fala de sua filha. E você? Afinal, o marido é você!” Muito pálido, Aderbal emudeceu. Ela continuou, agravando a humilhação do marido: “Ou você vai dizer que não sabe?” Na sua cólera, contida, quis sair do quarto. Mas, já Clara se colocou na sua frente, resoluta, barrando-lhe o caminho. Voltara, há pouco, de uma festa. Estava de vestido de baile, num decote muito ousado, os ombros morenos e nus, perfumadíssima. E, então, com as duas mãos nos quadris, fez a desfeita:

– Não vá saindo, não — e perguntava: — Você não me provocou? Agora, aguente!

E ele, em voz baixa:

– Fale baixo. Sua filha pode ouvir!

Sem querer, Clara obedeceu. Falou baixo, mas, pela primeira vez, disse tudo. Assombrado, diante dessa maldade que rompia, sem pretexto, gratuita e terrível, ele se limitava: “Por que você diz isso? Por quê? Queria interrompê-la: “Cale-se! Cale-se! Eu não lhe perguntei nada! Eu não quero saber!” Mas a própria Clara não se continha mais:

– Você conhece Fulano? Seu amigo, deve favores a você, o diabo. Pois ele foi o primeiro!

– Fulano? Mentira!… E ela:

– Quero que Deus me cegue, se minto! Sabe quem foi o segundo? Cicrano!

Queres outro? Beltrano. Ao todo, 17! Compreendeu? Dezessete!

Então desfigurado, ele disse:

– Só não te mato, agora mesmo, porque minha filha gosta de ti! Disse isso e saiu do quarto.

A filha

Dez minutos depois, de bruços no divã, ele chorava, no seu ódio impotente. E, súbito, sente que uma mão pousa na sua cabeça. Vira-se, rápido. Era a filha que, nas chinelinhas de arminho, no quimono rosa e bordado, descera, de mansinho. Ajoelhou-se, a seu lado. Desconcertado, passou as costas das mãos, limpando as lágrimas. Então, meiga como nunca, solidária como nunca, Mirna disse: “Eu ouvi tudo. Sei de tudo.” Lenta e grave, continuou:

– Eu não gosto de minha mãe. Deixei de gostar de minha mãe.

Ele pareceu meditar, como se procurasse o sentido misterioso dessas palavras. Levantou-se, então. Foi a um móvel e apanhou o revólver na gaveta. Subiu, sem pressa. Diante do espelho, Clara espremia espinhas. Ao ver o marido, pôs-se a rir. Boa, normal, afável com os demais, só era cruel com aquele homem que deixara de amar. Seu riso, esganiçado e terrível foi outra maldade desnecessária. Então, Aderbal aproximou-se. Atirou duas vezes no meio do decote.

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