É urgente, Zé. Ao menos para mim, herói de um episódio anônimo, autor de um hino cantado em agonia e silêncio. Logo que abri a porta, o homem me pegou pelo braço. Não adianta fugir, ele disse. E seu gesto não foi de ladrão, de quem vai contra a lei. Parecia certo dos próprios atos, não se importando que os vizinhos o surpreendessem. Tinha olhar de vidro e o seu nariz, como o meu, era ligeiramente adunco. Não lhe vi sinal particular na cara. Ah, Zé, como a alma é uma gruta sem luz.
Segui-o esbarrando contras as paredes, o sangue me havia deixado ainda que eu o reclamasse de volta. Passamos pelo porteiro entretido com a empregada do apartamento 203. Um cabra safado e inútil. O sol arrastara o bairro para a praia, não via almas na rua. Dentro do carro, frente ao prédio, três rostos anônimos me aguardavam, meus algozes, meus companheiros de vida. Um crioulo, um mulato e um branco, a etnia carioca. Quem sabe jogamos futebol juntos, no passado choramos com o gol que justamente dera vitória ao Flamengo. Não levaram em conta a minha cara amedrontada, fui jogado no banco traseiro com desprezo. Para quem mata é sempre cômodo designar os covardes. Agiam, porém, com discrição, de modo a que eu voltasse para casa livre das suspeitas dos vizinhos. Ninguém também me reclamaria o corpo.
Eu tinha certeza de que tomariam o Rebouças. Na Barão de Mesquita, o meu coração era um paralelepípedo. Cruzamos apressados o pátio, vencíamos corredores e mares. Havia na sala unicamente três cadeiras, um de nós ficaria de pé. Nenhum sinal de arma à vista, a mesa nua, as paredes descarnadas. Ou eu é que terei desejado os instrumentos que levam o corpo ao fino desespero, sonhado com a guerra, desenvolvido instintos assassinos?
O medo grudado na pele ia-me asfixiando, os poros logo entupiam-se de ânsia e vontade de vomitar. Havia, porém, na consciência uma brecha através da qual eu implorava aos intestinos, ao ventre, à alma, que não me humilhassem uma vez mais. A memória revivia a tortura, a dor florescente, a cabeça estilhaçada em mil estrelas, a calça borrada de merda, a urina solta pelas coxas até alcançar a unha do pé. A desesperança de saber que a dignidade dependia de um corpo miserável a serviço da força alheia. Você, Zé, é rijo como um cabo de metal, não pode compreender os desmandos de um homem, aceitar os desconcertos da terra. Mas, a verdade é que sou um covarde, nasci com medo e morrerei sob a intensidade deste astro. Falta-me valentia de puxar o gatilho contra a minha cara, ou a do inimigo. Quem me fere mais que os meus desígnios? O medo dorme no meu travesseiro, trato de domesticá-lo, torná-lo amigo. Sei que você me afaga a cabeça, quer encaminhar-me ao heroísmo. Sinto muito, Zé, mas não sou herói. Nunca mais serei. Não sei mais como encontrar o antigo fogo cego que me iluminava no corredor sem fim.
A sorte me regalou uma cadeira. E o bafo quente dos inimigos, que vinha em ondas. Às vezes, se aproximavam, logo bem distanciados, para eu medir a fragilidade do destino. O branco especialmente devotava-se aos círculos, designara-me o eixo em torno do qual girariam. Evidentemente odiava-me, mas certa elegância no corpo não o deixava matar-me. Acima do gozo pela minha morte, havia seu outro prazer secreto. A reverberação do meu rosto cm chamas impedia detalhado exame das suas feições contraídas. Foi dizendo, é rápido, mas pode demorar, se não colabora. Estaria eu ainda em meu país, e incitava-me a traí-lo, ou era um estrangeiro que contrariava frontalmente os interesses de uma pátria humana?
Não sei de nada. Tudo que sabia confessei há nove anos atrás.
Não precisa nos recordar. Sabemos de tudo. Foram exatamente nove anos, três meses e onze dias. Em março, já poderá festejar o décimo aniversário.
Magro e desenvolvido, os anos haviam-lhe ensinado a interrogar um homem sem ceder às súplicas de um olhar. Da minha cadeira, via-lhe os avanços e recuos, e não pretendia exacerbar- lhe as funções.
Onde está Antônio?
Todos sabíamos que Antônio estava morto. Quem sabe ele próprio o teria assassinado, fora o último de um longo cortejo de torturadores. E por isso capaz de descrever em detalhes o corpo de Antônio em chagas, rasgado por alicates, cortado pelas lâminas e pela raiva, expulsando o sangue em golfadas, o olhar empedrado que até o final evitou a palavra que, condenando os vivos, melhor teria esclarecido os últimos instantes de um homem.
Ou será que se referiam a um outro Antônio, o das Mortes, o do Gláuber? Recuei sem ter para onde fugir. Sem tempo para análises.
Mas que Antônio? — e temi hostilizá-los com a pergunta.
Você sabe de que Antônio falamos. Para voccs só existe um Antônio. Nenhum outro existe no mundo.
Metiam o estilete no meu peito. Dispensavam os recursos fartos e cheios de sangue. Confiavam na agonia que diariamente me assaltava, na minha consciência imolada pelo medo e o remorso. São uns filhos da puta, Zé. E não só porque me podem ferir, humilhar meus órgãos, expô-los ao opróbrio da dor e da covardia. Pior que o corpo aviltado, é não me deixarem esquecer que lhes dei as palavras que arrastaram Antônio ao cativeiro. Embora não tivesse sido o único a traí-lo, forneci os detalhes que justamente ao descrever seus hábitos, a cara forte, sua agilidade em escalar telhados, o ar de felino, seus esconderijos, compuseram a narrativa que de tão perfeita exigia a presença de Antônio para dar- lhe vida. Não podia ele privar-se de uma história que se fazia à sua revelia. A morte dependia do seu consentimento para tornar- se real.
Foi tão pouco, não é? Tão pouco, que me ficou como herança um pesadelo que disfarço diariamente. Não quero admitir que Antônio é um tormento mastigado a cada garfada, o excesso de sal de todo repasto. Não vivo sem a sua sombra, você e eu sabemos. Ele trepa junto comigo. Vive graças ao meu empenho, divido Luíza com ele.
Inclinei a cabeça, para que não me vissem a vergonha e o ódio. Ao mesmo tempo, o gesto assegurava-lhes que estando eu de acordo por que continuar com a farsa. Eu era o que eles me designassem. Eu era as palavras arrancadas à força, era a covardia que eles souberam despertar em mim, e antes me fora desconhecida. E era ainda a vida que eu descobrira preciosa entre os suplícios infligidos. Não parecia exatamente uma herança que eu pudesse explorar em meu favor. Quis gritar, não basta me possuírem, me escravizarem com grilhões invisíveis, querem ainda que cu lhes lamba os colhões desumanos?
Vamos, fale logo. Onde está o Antônio?
Não desistiam. Tinham mãos nervosas, cheias de recursos, e de que se orgulhavam. E nelas não se viam manchas de sangue, ou calos, por espremerem as juntas dos inimigos. Parecidas com as minhas mãos, com as do meu pai, as da família a quem se entrega o sono desprevenido. E, no entanto, elas enterraram Antônio perto do rio, segundo se dizia, para a enchente levá-lo entre os escombros dos barrancos. Assim, nenhum amigo confortou Antônio com prantos e flores. Ou acariciou o que havia sobrado do seu corpo. Embora não pudessem os algozes impedir que os proclamas de sua morte em meio à prolongada tortura corressem o país. Eles defenderam-se, como nós bem o sabemos, acusando-o de desertor, de haver trocado os ideais revolucionários por Paris, seu novo lar.
Não tenho visto Antônio — disse-lhes de repente, querendo minha vida de volta. O prazer de pisar de novo as ruas. Ainda que sob a constante ameaça de perder rosto, identidade, país. Há muito me haviam sonegado a língua, a terra, o patrimônio comum, e eu resvalava na lama, que era o meu travesseiro. Um pária que não contava com a herança do pai. Não me podiam cobrar o que já não lhes havia cedido. Pertencia-lhes como um amante, embora sofresse o exílio da carne.
O sorriso do homem aprovava o rumo da minha servidão. Não o tem procurado, viram-se em algum bar? Onde podemos encontrá-lo no Rio, ou em São Paulo?
Não sei de Antônio. Sempre desapareceu sem avisar. E o jeito dele. Quando volta é como se nada tivesse acontecido.
E não tem notícias suas o mulato tomou da palavra, assumia o esplendor daquela hora.
Cercado pelas chamas dos olhos inimigos, aspirava a respiração dos três homens que me haviam atraído até ali somente para eu provar de novo o gosto seco do medo, a rigidez da violência. Onde estivesse na terra, arrastaria comigo os seus emblemas. Ah, sim, me lembro agora, vi-o uma vez à saída de uma sessão do Cinema I. Havia gente demais, gritei seu nome, ele falava com entusiasmo, tinha amigos perto, infelizmente não me ouviu. Na Prado Júnior, quando o procurei, já havia desaparecido. Isto foi no ano passado, acho que em dezembro, fazia muito calor.
E ele, mudou muito?
Não. Um pouco mais gordo. E agora está de bigode.
As perguntas e respostas iam compondo um novo Antônio nascido da aspereza dos nossos dedos mergulhados na argila. Quanto mais falávamos, depressa Antônio recuperava diante de nós o ardor familiar a eles e a mim. Com o nosso empenho conquistáramos o direito de ressuscitá-lo. Nós o tínhamos tão próximo que praticamente o acusávamos de haver-nos abandonado sem cuidar da nossa aflição, levado apenas pelo prazer de inquietar amigos e carrascos. Ou simplesmente pela arrogância de alimentar uma legenda heróica.
O suor da minha camisa não mitigava a sede. Ainda que eu pedisse, não me deixariam beber de um líquido envenenado pelo temor e o delírio verbal. O jogo custava-me vida e honra, mas era o preço a pagar-se para ganhá-las de volta. Acaso pensavam que me podiam arrancar a vida porque me faltaria a coragem de usar uma vez mais as palavras que me matando por dentro abriam-me a porta para esta mesma vida?
Eu sei que a palavra é a vida. Mas, o que dizer dela quando se distancia do arrebato popular e perde função? Eu sei que a vida prova- se com a palavra, mas quando nos é ela extraída à força e ainda assim a vida nos fica, não é a vida o único tesouro com que se recomeça a viver? É o que venho fazendo, Zé, diariamente averiguo o nível de água dessa minha existência. Um reservatório em que combato visando a outra margem, da qual logo me expulsam ao estender o braço querendo repouso. Um dia, me vingarei. E não será vingança jamais esquecer meus algozes, ser a memória viva daqueles instantes, do que em mim sobrou retalhado e sem altivez? Seus rostos colados ao meu refletem-se no espelho quando faço a barba. Algumas vezes a mão treme, sonho em mutilar no meu rosto aquelas caras pacientes e frias.
Antônio encontrava-se naquela sala. Vivo, ardente, combatendo o mundo em tudo igual ao que havia deixado antes de partir. Não sei se o crucificávamos, ou ele a nós torturava. E quando afinal parecia fumar entre nós, constrangido ao lado de quem o traíra, o homem branco disse, exigiremos você outras vezes. Antônio é um terrorista, um assassino de mulheres e crianças. Devemos encaminhá-lo à Justiça.
Deu-nos as costas e saiu. Logo me encaminharam à cela vazia, ninguém disse uma palavra. O meu destino não tinha pouso na terra. Se desta vez não me supliciaram, pela manhã se devotariam às práticas em que eram mestres. E se não lhes bastasse o dia seguinte, me reteriam por uma semana, um mês, e a vida se escoaria delicada sem que a reclamassem, ou a defendessem. Até você pensaria que enfarado finalmente eu trocara o Rio por Paris. A minha prisão não desperta suspeitas. Não é verdade que também vocês há muito me condenaram?
Eu mal via os objetos em torno. Estendi-me na cama com medo de repousar sobre um morto. Quantos mortos e feridos não me precederam ali. O mau cheiro vinha dos corredores, das frestas. Perseguiria os cães vadios da madrugada. Do lado de fora dos prédios. De repente, eles apareceram. Talvez no meio da noite.
Pareciam não me haver abandonado. Em desesperada busca de Antônio. Precisavam dele como eu ali estava a vender uma vida acanhada e medrosa. Mas, contrário ao que pensava eu logo vi o céu aberto. De novo cruzamos o pátio e, no carro, o mesmo silêncio. Eu não podia confiar neles. Talvez a decisão fosse matar- me no matagal, o corpo encontrado em decomposição. Crime banal, seguramente o otário levando dinheiro na carteira havia reagido. Então percebi que tomavam o caminho da casa. A vida se recupera numa esquina conhecida. Despediram-se sem uma palavra e, jogado perto de casa, provavam conhecer os meus hábitos, os bares a que ia, os meus passos. Acalentavam o sangue e o suor de um país com o torniquete da naturalidade e da supremacia.
Será que o coração de Antônio sabe perdoar, esforça-se em compreender os que claudicam? Sem dúvida, sou o seu avesso. Aquela contrafação de carne que a piedade humana obriga a arrastar com dificuldade. Sem Antônio perceber, no entanto, que apesar dos estragos em mim realizados sou ainda uma das suas histórias. Asseguro-lhe nome e rosto com a versão que dele faço constantemente. Tornei-me o rastro dos seus feitos, a maculada, poeira do seu calvário.
Advirto-o assim, Zé, que temos Antônio de volta. A padecer entre nós da mesma pulsação rítmica que a vida expele. E só porque não se conforma com o miserável cotidiano brasileiro, decidiu deixar-nos. A vida o ocupa de tal modo que lhe falta tempo agora de visitar amigos, chorar em seus ombros, repartir o pão das palavras com os que foram privados da esperança. E por que nos viria ver? Especialmente a mim, a quem despreza, eu que, ungido pelo medo e a ameaça, descrevi-o a ponto de facilitar-lhe a captura. Eles que me puderam matar e não o quiseram. Devo-lhes tanto o que sou que, juntos, reconstituímos Antônio, fizemos a vida pulsar de novo no centro do seu coração amado. Terá sido desonroso reviver Antônio? O poder não fragiliza apenas a quem domina. O poder educa para que não esqueçamos as suas lições. Mas, como será quando a lição passar a ser aplicada por nós, povo pálido e submisso?
Amanheci com dor de cabeça. Talvez pelo maldito camarão do jantar de ontem. Luíza não quis hoje receber-me. Insisti, é urgente. Claro que não lhe falei das indisposições físicas, da periódica agonia do medo, do episódio recente. Diante dela sou belo, pungente e mentiroso. Desculpou-se delicada, precisava ficar só. Simulei compreender o seu estado, outra vez a prisão da cortesia. Ou a prisão do amor que me regala com o esquecimento, a única masmorra a indicar o caminho do futuro.
Não me custa agora enfraquecer a voz, recolher-me a casa aos primeiros sinais da derrota, da admoestação e da censura. A submissão é uma virtude social sem a qual, ao menor conflito, enfiaríamos a faca no coração desprevenido do vizinho. Aprendo depressa a acomodar- me entre os tijolos da vida, estas quatro paredes sinistras. A assimilar atos de obediência que, uniformizados, e em seqüência, não chegam a doer. Também não ardem. E isto desde o gesto mecânico de escovar os dentes ao despertar. Não fosse assim, quem aceitaria o travo e a amargura da minha boca insone, a quem haveria de beijar?
Sozinho em casa, elimino os gestos brutos, apronto-me para as visitas que não virão, esmero-me para o carcereiro habilitado a visitar-me sempre que a minha ausência lhe doa. O relógio e o tempo coincidem numa quarta-feira. O que se pode esperar de uma criatura fiel ao Estado a cobrar-lhe obediência como meio de assegurar à coletividade uma existência feliz? E que expulsa do seu corpo social todo e qualquer organismo infectado de pus, palavra e ação rebeldes.
Moderado e elegante, besunto-me de essências. O que sei do < meu rosto, me é suficiente. Bastam-me as pequenas atenções do cotidiano. Não se aconselha a amar a própria perplexidade. Mas acomodar-se ávida possível e transcrita na Bíblia. Serei um acomodado? E quem não é. Dizer bom-dia não é então sancionar a existência do inimigo, e acomodar-se à sua estratégia? Ah, Zé, quantos capítulos são diariamente redigidos numa infindável série de resig- nações. Até mesmo quando gritamos puta, merda, caralho, estamos a consagrar a linguagem coerciva da escatologia oficial. Estas exclamações do arcabouço lingüístico dos ingênuos que se satisfazem com falsetes que o meio social sabiamente absorve e atenua.
Apesar de tudo, trago comigo algumas perguntas. Nem todas palavras sufoquei. Bóiam elas no meu bolso, junto ao travesseiro. Dificultam o meu sono. Sei bem que todo gesto meu é passível de pena, e que nem com o conhecimento da lei conduzir-me-ei de modo a vencer os alcances desta mesma lei. Para cada ato meu em surdina há uma lei à escuta. Quem sabe não estará o vizinho a esta hora a delatar-me junto às autoridades sanitárias e repressivas. Justamente o vizinho que honra a vida reproduzindo no seu quarto a espécie humana. Não estou isento de culpa quando me atribuem uma culpa. Me podem nomear culpado a cada instante, e de que servirá a proclamação de uma inocência em que eu mesmo não creio?
E com que direito protesto, se fortaleci quem tinha a arma na mão, dei-lhe a munição que escasseava. Mas, não quero padecer acima de minhas forças. Afinal, Adão e Eva resistiram menos que eu e tinham só a Deus que enfrentar. A história designou-os vítimas de um arbítrio por parte de quem havia ousado criar a terra. Diga-me, tem força quem gera força, ou força tem quem sabe administrar uma força que lhe foi emprestada?
Somos tão frágeis, Zé. Basta que me cortem o pulso para sangrar até a morte. Será por isto que cobramos do outro um despotismo que ao mesmo tempo que nos governa também esconde a nossa fraqueza? Queremos o arbítrio, a prepotência, o poder, e nos omitimos quando eles se revelam. Desde que um bando de desesperados construiu a primeira nau, e com a qual venceriam o oceano, exigiu- se que um punho de ferro a capitaneasse, marcasse o rosto popular com largas cicatrizes como prova de autoridade. Assim, até a aventura e o sonho nasceram comprometidos. O que a princípio parecia grandeza visou o palco para louvar e divulgar os próprios feitos. A generosidade sempre se manifestou de acordo com as leis, e nunca as transgrediu. Não há bondade neste hemisfério sem referendum oficial.
Sob que manto, Zé, esconde-se o poder, em que regaço? Estará entre os que acode depressa aos mais altos postos, os que morrem gratos com a morte, os que sorriem apesar do olhar acuado e a vida em postas de sangue? Ou entre os que apunhalam e gritam e uniformizam e tiranizam e não cumprem? A terra é áspera com os rios em fúria, a lavoura malograda, os animais febris. Uma natureza que ruge para assim indicarmos aqueles que, em nossa defesa, superam a tormenta e logo enamoram-se de seus encargos. Como se o poder e a natureza em aliança esculpissem no homem rígidas regras de bem viver.
No rádio, um chorinho brasileiro. Estou só, como já lhe disse, e Luíza não virá. O sanduíche é frio, sua alma gordurosa. Desfaço-me dele e das palavras em mim ordenadas por quem pensou na minha frente. O que fazer quando até mesmo as palavras originam-se de um material envelhecido, que se confunde com a morte. Não há vida real no planeta. Tanto melhor, livro-me assim da insensatez e da desordem. Se sou herdeiro de uma cultura voltada à renúncia, por que não abdicar da rebeldia e do inconformismo. E com os dentes rijos abocanhar os pedaços de vida que arrastam o peixe do prazer em sua rede.
Nada mais quero que amar aquela mulher. Abdicar da perspectiva coletiva e concentrar-se no universo pessoal é a essência da felicidade. O mundo passa a ser você. Ela e eu, ainda que Luíza me vire o rosto e a arrogância a enalteça. É tão harmônica que seus desejos cumprem-se em horário determinado. Ela tornou-se um dos pilares do poder, especialmente as suas coxas. E sendo seu amor mais frágil que o meu, banca ela faustamente o jogo humano. Tudo faço para cravar-me entre as suas vértebras como uma lança. Juntos assim costuraremos as rendas e os afagos que formam um lar. E, sob tal abrigo, os carrascos irão encontrar-me. Cheio de correntes, doçuras, orçamentos, projeções futuras. A quem arranharei com as unhas aparadas?
Aspiro com Luíza a limpidez e a vida cristalina. Um coração transparente e as paredes da casa de vidro. Quem olhe dentro verá o repertório de que me componho, sem o socorro de fichas e cadastros. O Estado é a eterna visita em minha casa, mesmo quando dela se ausenta. E, sendo ele assim meu amigo, a vida torna-se compatível sob seus cuidados.
Lembra-se daquelas folhinhas povoadas de santos e provérbios moralizantes que as farmácias distribuíam? Ungidas todas pelo suor popular? Eram elas sábias, não excluíam as agruras do cotidiano, as receitas de bolo e os modestos atos humanos. Previam a poupança e, claro está, o receituário farmacológico. Humanas, jamais antagonizaram o ano que decorria, assim como o terço nas mãos dos que choravam. A tranqüilidade destes calendários é que busco, como se recuasse no tempo. Jamais empunharei de novo uma espada mesmo quando o seu uso obedeça à urgência de vingar um povo ultrajado. Não tenho inimigos, ou melhor, eles não têm nomes e rostos. Solidarizo-me com a miséria nas telas do Cinema I. Passarei pela fome brasileira com o orgulho ferido, mas sob a tutela do meu automóvel de prata/t) próximo comove- me sem dúvida, mas meu destino não se comprometerá em sua defesa. Despojado da fraternidade, instigam-me a aplaudir as famílias poderosas, que se expandem segundo o número de suas fábricas e o volume dos créditos fornecidos pelo Banco do Brasil. Não quero descendência, mas um esperma seco e apático. A memória dos ancestrais não me diz respeito. Os retratos amarelos falam-me sim de mortos, logo os queimarei. O mesmo faço com as cartas, a memória, com o meu rosto pálido. Só vale a história forjada, só tem valor o homem de palha.
Sou um animal que ao lado das derrotas contabiliza o medo. Quem me educou foi este país onde vivo, amo, sou o que me permitem ser. Nada peço além da minha extraordinária felicidade. Em seu nome, abdico da consciência social. Feita de levedo e farinha rala. Estou livre, Zé. Livre como um polvo embaralhado nas próprias pernas. Livre como um cordeiro sacrificado e o pão ázimo perseguido. Renunciei ao destino do homem pelas moedas de bem- aventurança que hoje arrasto e bem atadas aos pés.
Nasci pelas mãos de minha mãe, mas morrerei sem o socorro da sua vagina. Tenho a vida determinada por um começo e o fim. E, embora sujeito e objeto da história, este começo conheceu data, ano, local, horas precisas. A carteira de identidade facilita, aliás, meu trânsito pela terra.
O meu fim será canalha. Sujeita-me a critérios e circunstâncias que não elegi e de que não posso escapar. Logo confirmado este final, a consciência será automaticamente expulsa de mim para mergulhar na merda. Unicamente a história, testemunha do lado de fora do corpo, registrará a cena da qual sou protagonista e que porá término à minha biografia. Então se sucederão o vazio e o esquecimento, eventualmente as especulações históricas.
A nossa morte, Zé, pertence a quem a assiste e aos que a descrevem. Não somos a nossa morte. Mas uma prolongada agonia a que faltam palavras com que explicá-la perante nós mesmos. E este fim é o medo, o fim justifica a dignidade precária. E as palavras que definem este estado me são emprestadas por uma coletividade igualmente acuada. Razão pela qual tenho o direito de subscritar qualquer documento que estejas agora escrevendo. Do mesmo modo que todo texto de minha lavra pertence ao vizinho que também escreve em meu nome a história da minha miséria. Mas que maldita aliança é esta que mistura os nossos sangues e forma um só destino? E que me obriga a acompanhar o desterro de um homem próximo a en- frentar o pelotão de fuzilamento, ainda que não cuide da sua sorte. E sentir-me a futura vítima quando acorrentem quem ousou transgredir e protestar. Saiba, pois, que a minha covardia pertence-lhe enquanto não tiver a coragem de proteger-me, de expulsá-la da minha vida para sempre.
Uma vez que não posso arbitrar sobre a minha vida, pois encontro-me sob a tutela da violência e do absolutismo, passo a vivê-la pela metade. Assim, quem sabe do meu destino não sou eu. É o outro. Quem me assalta na esquina é dono da minha vida. Me faz suicidar-me. Me faz desaparecer, apaga a minha memória, escasseia os dados que me registram. O outro é o que sou enquanto sou o que ele destrói em mim sem me consultar. E seguramente me perdoarei, quando me queiras salvar. Minha salvação restringe-se a prazos curtos. A morte me convoca segundo arbítrio próprio. Sou uma zona sobre a qual o poder e a guerra se exercitam. Quem quiser mata-me sem perguntas, ou desculpas. Nascemos iguais, mas cada máscara humana tem um desígnio cruel. A morte e o medo e o dinheiro e o poder desigualam o mundo. O homem não é a própria sombra, mas a sombra que o deixam projetar.
Saberias descrever o rosto do carrasco que seqüestrou dor, prerrogativas, e inundou a vida com preço sem valia e serventia? Ou antecipar a palidez do teu corpo na agônica ascensão para a morte? Não devia escrever-lhe, Zé, mas há muito o medo me libera para estas tristes incursões. E embora não me iluda a falsa abundância do amor, entrego-me a este estranho arrebato que ergue a vida e o pau ao mesmo tempo enquanto apago os dias na brasa do cigarro. Nas mãos deste teu amigo sobram o esplendor do prato e a suculência da cama. Bem diferente do velho que mora no apartamento ao lado. Sitiado pela própria velhice, raramente deixa a casa. A luz do sol debilita a sua pigmentação já estragada. Algumas vezes escuto-o esbarrando contra as paredes, seguramente buscando sôfrego os objetos que lhe escapam quanto mais se cansa.
Encontrei-o hoje a abrir a porta. Não distinguia a fechadura da maçaneta, talvez os olhos remelentos. Ajudei-o a encontrar o caminho da casa, seu túmulo, os embrulhos deixei na cozinha. Mal respirava, os olhos apagados, agradeceu com breve aceno. No sofá, esqueceu-se de mim, ocupado com a vida modesta, com as horas que lhe sobram, as rugas envenenando o seu rosto. Seguramente, ele ainda está lá, do outro lado da minha parede. Crucificado com os pregos de cada dia. O porteiro talvez me anuncie amanhã a sua morte. Mas, não chorarei por ele, que diferença faz que viva. Há muito que vimos fugindo de suas carnes fenecidas, há muito que o matamos. E não é verdade? Alguma vez o aquecemos no regaço humano, algum de nós enfeitou lhe a vida para que eventualmente sorrisse?
Talvez o seu coração seja rijo e amoroso e sonha com beijos e murmura palavras ardentes com cor de cobre. E seu olhar disperso é a grave acusação que pousa em nós com o peso de uma pena manchada de sangue. Percebe o quanto o desdenhamos, que não lhe catamos os dentes imolados pela cárie dos anos, e que seu corpo, incapaz de controlar o suor, o esfíncter, a urina, jamais mereceu nossa defesa.
Ah, Zé, a velhice me intimida, esta esponja de triste sabedoria que bebe vinagre, solidão e desespero num só trago. Também eu um dia soçobrarei na mesma espécie de torpor. Não me restando como defesa senão as moedas amealhadas que substituam a perda da luxúria, as moedas que justamente protegem a vida quando lhe decretam o banimento. Bendito ouro que outorga ao homem a última piedade e impede que o enterrem vivo só porque lhe apodreceram as juntas. Zé, como será quando o olhar jovem não mais pouse em nós. Quem me vai pentear os cabelos?
O segredo do avô foi amealhar pão e dinheiro a fim de que o respeitassem. Até a morte mastigou com os próprios dentes, cuspiu ordens, devolveu afrontas, a ninguém pediu emprestado, ou contraiu dívidas e humilhações. Das suas mãos tombavam as moedas que seguiam diretamente para os pratos dos filhos. A comida vinha dele, assim como os sonhos. Havia comprado as ilusões dos netos com o suor.
Enfrentou o futuro com o dinheiro no bolso. E de tal modo o ouro c ele viveram lado a lado, que passaram a dividir a mesma respiração, a consumirem igual tempo de vida. Ele c o dinheiro morreram juntos, no mesmo sábado. No seu enterro, sofri mais por mim que por ele. O avô havia governado bem a vida, seu triunfo era o cortejo que o seguia. Eu me perguntava quem arrastaria a alça do meu caixão cumprindo um dever de afeto, assegurando-me uma dignidade que o dinheiro não tivesse previamente comprado.
Como confiar na sua amizade, Zé. Ou na generosidade da sua casa. Se lhe chego sujo, rasgado, fedendo, certamente me fecharás a porta. Os aparatos do seu cotidiano me honram enquanto as penugens das boas maneiras, do bem vestir e da linguagem me adornam. Seus amigos cobram a cada instante palavras perfumadas. Habituaram-se a dizer quem somos, até onde chegaremos, ao simples anúncio da primeira frase. Também meu destino se tece através desta tirânica linguagem que diariamente inventaria um legado cultural polido junto à prata inglesa. Entre nós,” não se perdoa a incompetência verbal.
Conheço a indulgência que fiscaliza o padrão lingüístico implantado entre nós como uma dentadura e determina os que ficam na sala e os que devem regressar à fábrica, ao trem da Central, à estrebaria, ao seio do povo em nome do qual se travam batalhas e redigem manifestos. Merda para as palavras sem sangue, merda para os que explicam a vida com polidez fria e correção gramatical. A tua sala é tão covarde quanto a minha alma, embora as tuas palavras licitem bravatas e idealismo. Como crer em ti se ainda estás vivo, Zé?
Sou um pastor com sobrevida comprada a queijo, ervas, leite roubados. E minha astúcia é parte da astúcia coletiva, acuada e defensiva. Assim, o que cm mim se manifesta reflete origens que não alcanço, mas que sempre foram arrastadas pela lama, a sangrarem. Nasci do medo tjue se devotava aos sacerdotes e aos temporais que apodreciam as colheitas. Como então ser digno se tenho as mãos contaminadas pela covardia popular e por uma história que não escrevemos e não nos deixaram viver? Unicamente o poder dispõe do heroísmo e da narrativa. No meu universo de lágrimas, sobra apegar-me às artimanhas que salvem a vida. Tenho a vida endividada antes mesmo do meu nascimento. Sei que minhas palavras te agastam, mas vêem do meu coração ingrato, amargo, amigo. E o que mais queres? Aplausos, triunfo, temor pelo teu olhar em chamas? | Até Luíza refere-se a você com desconfiança. Um homem que j domina a linguagem e não se comove. Embora eu lhe garanta o con-| trário, ela não acredita. Rejeita o brilho metálico deste olhar onde a consciência crítica instalou-se implacável. É uma muralha que Luíza não vence. Confessou- me, quem olha assim, ama assim tam-! bém? Quase lhe disse, e quem ama mole, levanta o pau? Eu a teria perdido com tais palavras. Diariamente lustra a existência com óleo santo. Na cama, porém, esvai-se em atos perigosos, as palavras sempre acorrentadas pelo pudor. Onde esteja, sua linguagem é impecável. Sua ordem mental alija a paixão. Não sei onde se abriga o coração daquela mulher.
Acusa-o igualmente de solitário c servo da paixão ideológica, enjaulado entre feras e idéias fixas. Luíza despreza os que proclamam a infelicidade, bafejada que foi pela sorte, a beleza e os perfumes raros. Procura convencer-me que você inveja a vida em geral e o nosso amor em particular. E que amor, digo-lhe em desespero de causa, para que se defina. Ela sorri, que amor senão o nosso.
Facilmente perde-se em suspeitas. Mas, envergonhada desta descrença pelo humano, o desconforto a assalta, mal sabe guardar as mãos belíssimas. Propus-lhe que jantássemos todos juntos na próxima semana. Luíza aceitou, mas não se iluda, jamais abdicarei da vida que defendo em troca das idéias do Zé. Assim, amigo, não faça exigências que Luíza não possa atender. Temo as pequenas farpas que tão naturalmente você deixa escapar, elas custam tanto a abandonar uma pele ferida. Não me chame de idiota, e nem quero a sua compreensão. Esvazio-me a cada noite bem vivida, estou vivo na desastrosa piedade do amor.
E o que há além desta exaltação? Do outro lado existem sombras, aqueles olhos sinistros que também sabem rir. Riram de mim, na minha presença. E me seguem por toda parte, ainda quando não os quero encarar. Não me deixam apagar o medo, que tenho enun- ciado na pele como amigo e irmão. Eu que não soube dosar as palavras. A confissão me chegou como um vômito.
Nada lhes bastava. Quem oferecesse a perna, ficava a dever-lhes um olho. A vida mesmo que se desse não chegava. O que esses homens vorazes ainda reclamavam? A alma, o futuro, o eterno ranger das juntas? Como deuses, ambicionavam traçar o destino, ainda que aos gritos eu jurasse nada mais tenho a dizer. Esbofeteavam o meu rosto, a descarga elétrica vinha nos testículos, no círculo do ânus. Eu balançava, perdia os sentidos. Voltava à vida não querendo achegar-me a ela. O que tinha a vida a prometer-me para eu defendê-la com bravura? O chefe exercitava os dedos afiando a navalha contra o meu sexo. Vamos, trema que eu te capo. Eu tremia, babava, fechava os olhos, rezava. Como será o retrato de uma carne mutilada, saberiam fotografar a minha dor, a última vibração do nervo abatido? Os algozes me arrastavam como escravo, me amavam, tocavam no meu corpo, iam às minhas partes. Aos prantos, supliquei muitas vezes, não sei de nada, já lhes disse tudo. Como um porco, eu fornecia carne e alegria aos homens. Permitia que esculpissem em mim outra criatura, me parissem entre a placenta da suspeita e da covardia.
Ah, Zé, certas experiências varrem a vida para distâncias onde não se pode ir para reclamar, pedi-la de volta. Sinto cada ato traduzido em senhas que me chegam sussurradas, impossibilitando qualquer leitura. Não sei das minhas transformações. Nada sei da matéria viva que me alimenta. Terei realmente escolhido? Com que direito tomaram eles da minha indivisível vida e dela fizeram um cristal devassável e quebradiço. E se deram de presente o meu corpo, a minha honra, a minha dor, a minha lágrima?
Por favor, não espere muito de mim. Meu único compromisso é com este feixe de nervos que é a minha vida. Especialmente depois que eles grudaram o medo no meu peito, debaixo da minha camisa. E o medo vem à mesa comigo. É farto e fiel. Quem o desconhece não experimentou a vida pulsar entre as falanges. Ele é agora o único a registrar o tempo por mim. Envelheço aos seus cuidados. Assim, cabe-me cuidar de sua aparência, dou-lhe banho, ensaboo-o pelas manhãs.
Você fala-me com orgulho da posta viva de heroísmo que é Antônio, sempre presente na nossa cama. Assassinado para assumir o papel que seguramente faltava na história. Mas, eu não estava ao seu lado quando nos deixou. Ninguém ali esteve para dizer-nos se morreu calado, ou praguejou porque, simples mortal, a vida lhe fugia. Terá escolhido a morte com honra, ou a violência dos algozes decidiu por ele, roubando-lhe assim o direito de escolher legitimamente entre a vida e a morte. Nunca saberemos, Zé, sabemos sim que lhes devemos o herói trazido na bandeja para que assim tivéssemos um retrato na cabeceira e outro na memória. Lembra-se da gargalhada de Antônio? Antônio riu na cara deles, ou suplicou que o levassem de volta à cela escura, ao lençol fedendo a urina, onde ouviria a própria respiração, o coração a latejar no peito, que é a mais intensa volúpia sentida pela carne? Terá Antônio morrido unicamente para ocupar nossos sonhos? Mas, de que servem sonhos que se transferem para os netos sem jamais se cumprirem?
Para você, apalpar a desgraça do povo, ou dela falar à distância, fortalece a consciência. Deste modo, vigia temeroso a própria luxúria, não se permite o festim individualista, que tem os sentidos como modelo. O seu código alveja ao mesmo tempo inimigos e acomodados. Você odeia o morno, quer a justiça. Mas saberá mesmo escolher os inimigos, serão realmente culpados os que morram sob os seus cuidados?
A consciência que prega o sangue assusta-me tanto quanto as mãos dos carrascos exalando a carne humana. Assim, a política da sua vida é esquecer a própria vida para reivindicá-la melhor e soberana. Enquanto a minha é celebrar a vida de modo a não esquecê-la. Por isso, sou covarde enquanto o mundo te celebra. Ampara-me o corpo de uma mulher, contrário à sua solidão alimentada por um bairro comovido com semelhante disciplina ideológica.
Mas, sou- lhe grato pela paciência com que me escuta. Algumas vezes corrigindo os movimentos pendulares que me levam a vôos rasteiros e sem perspectiva. Seguramente porque empinamos juntos a mesma pipa. Meu Deus, onde estou que o peito me cresce e o destino da terra afasta-se de mim, deixa-me sempre mais só.
Tenho Luíza nos braços. Uma mulher em luta contra os sentimentos. Não se educou para a paixão. Condena a vida intramuros, sem delicadas celebrações. Junto a ela aplico-me aos tijolos do poder e à exaltação da carne. Você nada sabe deste estado ígneo. Ou estarei sendo injusto? Acaso freqüentou o território da paixão que expulsa o lar e a ideologia ao mesmo tempo? Ah, Zé, nada perdura além dos sentidos. Não se pensa na redenção da pátria, da miséria, do partido, quando se naufraga na água tépida, doce, macia da boceta amada. Não avalizo o sentimento humano que não emerja dos signos poderosos da carne.
Zé, ela tem hábitos de princesa, e o mundo excede à sua sensibilidade. Tanto refinamento leva-me às lágrimas. E quem não se enterneceria com o trajeto da perfeição, os gestos todos harmoniosamente comandados, a displicência com que abandona a comida no prato, sabedora que outros alimentos se sucederão sem que’ o seu coração deva inquietar-se com a fome.
Sou grato à Luíza. Através dela descobri que o amor é um lodaçal onde se afundam a ética, a generosidade, o livre-arbítrio. E que é da sua batalha, e da sua fome, dizimar famílias, devastar a terraj arrecadar tesouros, a pretexto de enriquecer o ser amado, assegurar-lhe a felicidade. Sempre a serviço de si mesmo, e daqueles a quem’ quer bem, o egoísmo do amor é perverso e ilimitado, e não conhece castigo, e nem críticas sociais. Em seu nome, ao contrário, tudo é justificado. Tem desculpas nobres, inventa princípios que a sociedade consagra constantemente numa roda-viva, sangrenta e preda-[ tória. Para alimentar meu filho, estimulam- me a matar o do vizinho. E para que o amor me sorria e devolva eu ao mundo um sorriso,’ devoto-me às pilhagens e aos espólios. Os meus interesses concentram-se no objeto amado. Nas moedas que necessito arrastar para a alcova. Amar, pois, é o desastre da coletividade. Mas a coletividade’ sem o amor é a fria superfície sobre a qual a tirania estabelece para sempre os seus domínios. E, então, Zé?
O amor por Luíza não me aprimora. Dispersa-me até, torna-me ainda mais insensível e medroso. Não me arrisco a perder o que arrecadei nestes nove anos. Ela é a única a conhecer o limite máximo da sensibilidade da minha pele, o grau de temperatura em fogo do meu corpo, a gentileza que não deixo deslizar por debaixo da porta para o mundo conhecer os seus atributos. O que somos no quarto trancado a chaves só a nós beneficia, expulsa a humanidade. Saindo dali, visto a armadura diariamente trocada e sou grosseiro. Praguejo em vez de solidarizar-me com o outro, de abandonar os bens terrestres, esquecer os ressentimentos, perdoar.
O amor não me ensina a transferir o excesso do seu arrebato para a casa do vizinho. Não me ajuda a dar rosto a uma humanidade hoje abstrata para mim. Assim, esta abstração do humano e o meu amor somados indicam-me a desesperada solidão do ato de amar. Indicam-me que grudado à cama, agarrado ao corpo do próximo, nada mais faço que amá-lo para poder amar a mim mesmo, amá-lo para ser menos só, para assim alcançar-me e ao mesmo tempo ofe- recer ao outro a falsa ilusão de que contamos com a nossa mútua companhia, com o nosso recíproco arrebato. Amar é um ato solitário e sem repercussão ideológica.
Mas, náufrago que sou, resta-me ofertar à Luíza o meu coração. Dar-lhe o meu futuro, e que o salgue a seu gosto. Ela ri, acusa- me de ser uma máscara sem passado. Ou um passado com invenções, uma biografia a que se acrescentam dados móveis e falsos. Asseguro-lhe, então, que na terra já não tenho espaço. Não sei onde me localizo. O giro do planeta projeta-me a uma extremidade sempre em rotação. Pergunto e respondo, e ignoro quando a resposta não passa da armadilha da pergunta. Onde estão Cristo e Marx? Dentro de uma empanada de carne exalando a pimentão. Dispersos e contumazes, querendo vítimas. Meus inimigos sempre que hostilizo seus interesses. Vejo-os marchando em triunfo através dos estilhaços humanos. Eu sou um estilhaço, Zé. Estou proibido de pensar, o que penso é inconsistente. Não sou livre para decidir. Luíza projeta o meu retrato. A cada dia pareço-me mais a ela, com suas evasivas de jóias, de maquilagem, sempre poderosamente bela. Tenho desejo de lamber o riesling frio nos seus seios quentes. E qual será a vontade real desta mulher?
Ah, irmão, o que seria de mim sem o teu sorriso discreto. Pronto a arrancar do meu rosto a máscara de covarde e delator. Sou um réu confesso que após ter negligenciado a vida não se protege se não através de omissões diárias. E será covarde quem se submete à tortura, ao poderoso, às sólidas garras do inimigo? O que vocês queriam, que continuasse a dar-lhes o rabo para irem eles dentro e escavacarem? Urrei de dor, vergonha, pavor. A carne sofrida irradia estímulo a quem a tatua com fogo. Por isso não esmoreciam jamais. Borrei as pernas, a alma, tenho o fedor como indelével marca sacerdotal. Quis gritar, seus putos, mas o limiar da dor me assaltava. Eu não quero mais o orgulho de volta ao preço da minha vida.
Não voltarei a pagar o que não leve para casa em forma de prazer, de utilidade. De tudo agora exijo um valor concreto e úmido, que eu encoste na pele e sinta e não duvide. Quero o pão na minha boca, não no meu sonho. Às vezes, você quer me esbofetear, como se sua ação corretiva se equivalesse a do carrasco movido pelas promessas do fanatismo. Unicamente controla-se porque de um humanista aguarda-se a defesa do humanismo. O estranho adestramento de analisar e classificar os sentimentos e os direitos humanos à sombra.
Eu, porém, vivo ao sabor da certeza de que a minha vida será cobrada a qualquer instante, segundo os interesses do Estado. Mas, você também é parte da mentira e da hipocrisia que constroem e vendem um código cego em que a dor e o medo não entram, a vida do homem e seus escassos recursos não contam, apenas se contabiliza a sublime loucura que leva ao martírio e à morte. Com que direito pedem vocês a minha morte, que eu não volte a olhar o sol, nunca mais sorva a cerveja gelada e a noite insone?
Talvez o cheque de um sonho que você nunca teve coragem de viver até o fim esteja no meu bolso, na minha consciência dolorida. Estou a gastá-lo em seu lugar. Queimo-me para que você durma tranqüilo, a tecer planos que a semana seguinte desfará. Não serei acaso a soma do teu fracasso, dos nossos companheiros, dos que se foram, e dos que ainda vivem? Cada moeda que consumo mal respirando é o preço da sua ilusão. É a vida de um homem como eu que se escorrega entre os seus dedos e você não salva.
Não quero mais feri-lo, Zé. Trago o punhal de volta para a minha cintura. De que me serve passar-lhe a dor que precisa ser minha. Em troca, fico com a vida. Ainda que uma vida medrosa e acuada. Não sei se aceitas o meu abraço.