O justo – Conto de Nelson Rodrigues

By | 24/05/2022

Tinha, na ocasião, 15 anos. E era uma moreninha e tanto, linda de rosto, jeitosíssima de corpo. Mais bonita que as filhas do patrão, merecia as mesmas regalias. O dono da casa, que era solene até para beber água, costumava dizer soturnamente:

– É como se fosse da família. Tal e qual.

Uma tarde, Isaurinha parou no meio da escada. Teve uma espécie de vertigem e quase, quase, rola lá de cima. Duma impressionante palidez, molhada em suor, foi carregada. Pouco depois, estava lá o médico da família, velhinho, bom e inoperante. Tomou pressão; espiou a garganta; auscultou em cima de uma toalha fina. Depois do que, fez uma pausa; teve um muxoxo: “Caso sério!” Em seguida, pediu aos presentes que se retirassem e fechou a porta à chave. Passou, lá dentro, contados a relógio, uns 45 minutos patéticos. Do lado de fora, no corredor, a família aguardava em pânico, já pensando em câncer, tuberculose, o diabo. Por fim, o velhinho apareceu e convocou a dona da casa, d. Dinorá. Limpando as lentes dos óculos com o lenço, começou com a pergunta:

– Essa pequena tem namorado?

– Não, por quê?

Primeiro, colocou os óculos, depois, deu a notícia:

– Sem a menor sombra de dúvida, Isaurinha está nesse estado, assim, assim.

Vai ter neném.

Quase d. Dinorá cai para trás, dura.

Calamidade

A velha que não dava um pio sem prévia consulta ao marido, atracou-se, soluçando, ao telefone. Dizia: “Venha! Já! Correndo!” E ele veio, de táxi, num tempo recorde. Era a grande ou, por outra, a única autoridade naquela casa. Mandava e desmandava na mulher, nas filhas solteiras e casadas, nos filhos homens, nos genros. Sua palavra era a lei inapelável e definitiva. Entre parênteses, observe-se que esta autoridade se exercia na base de uma virtude inumana. Seu Clementino, com efeito, não bebia, não fumava, não jogava; era sóbrio e contido até nos prazeres da mesa. Comia pouco, comia apenas para não morrer de fome. No dia de suas bodas de prata, surpreendeu os convidados, ao dizer, com sua voz densa:

– Só conheço uma mulher: a minha! E nunca a traí!

Veio seu Clementino para casa. Ciente da catástrofe, promoveu uma mesa- redonda de filhas, filhos, noras e genros. Só não compareceu Isaurinha. No quarto, ao lado de um balde, sofria as ânsias de um enjoo inenarrável, típico do estado. E na sala, o velho iracundo, abria a reunião com um murro na mesa:

– Esse negócio põe, sob suspeição, todos os homens da casa! Absolutamente todos!

E especificou, com o lábio trêmulo:

– Portanto, quero explicações de cada genro e de cada filho!

Os suspeitos

Ninguém disse nada. E os suspeitos eram muitos. Moravam ali, naquela casa imensa, três genros e três filhos, com as respectivas mulheres. Havia, ainda, um filho homem e solteiro, o Juca, então com 18 anos. Era o caçula e, como tal, tratado na palma da mão por todo mundo e, até, com relativa benignidade, pelo pai. Andando de um lado para outro, na sala imensa, seu Clementino tinha, no lábio, a espuma de justa cólera. E, súbito, estaca e abre os braços para o céu. Encheu a sala com sua voz de barítono:

– Deus me perdoe! Mas eu tive e tenho na vida uma vaidade: de ser justo! — Pausa, encara com os genros e filhos atônitos e completa: — E hei de ser justo contra meus filhos, contra meus genros e, até, contra minha mãe. Se Deus quiser!

Passeando os olhos pelos suspeitos, lança a interpelação indiscriminada: “Quero saber qual foi o cachorro que fez isso! Quero saber qual foi o canalha que abusou de uma menina que devia ser sagrada. Quem foi? Quem?” Nenhuma resposta. Pálidos e acovardados os homens, as mulheres começaram a chorar. D. Dinorá aventurou a hipótese desesperada:

– Quem sabe se não foi algum de fora? O velho deu um salto imenso:

– De fora como? Não, senhora! Em absoluto! Nunca! — e foi lógico, apesar da exaltação. — Essas coisas exigem tempo, convivência, confiança e liberdade. lsaurinha nunca saiu sozinha, sempre com vocês. Não! O canalha está aqui! É um de vocês! É um genro ou um filho! Mas seja quem for, pagará por isso. Falem!

Ninguém abria a boca, embora seu Clementino os instigasse, indiscriminadamente: “Covardes! Palhações!” Por fim, arquejante, anunciou: “Já que vocês não confessam, já que vocês não têm coragem de confessar, vou usar um meio infalível!” Num riso terrível, anunciou:

– A própria vítima de um de vocês vai apontar o culpado!

Isaurinha

Abandonou a sala. Ninguém se mexeu. Enquanto o velho não reaparecia, houve cochichos entre maridos e mulheres. Estas perguntavam, em lágrimas: “Foi você? Jura!” Os pobres-diabos juravam: “Palavra de honra.” O velho demorou, com a filha adotiva, trancado, uma meia hora. Apareceu, bufando, com Isaurinha pelo braço. Sacudiu-a:

– Fala, anda! Quem foi? Diz!

Caiu de joelhos, aos pés do seu Clementino. Cobrindo o rosto com as duas mãos, soluçava. E só dizia:

– Não posso! Não posso!…

Levantou a menina. Com a sua voz potente, exigiu: “Conta! Ou te arrebento, agora mesmo!” D. Dinorá quis intervir, mas o marido a repeliu: “Vá pro diabo que te carregue!” A santa senhora arriou, de novo, na cadeira, com palpitações, faltas de ar. Esvaindo em suor, seu Clementino perguntava: “Solteiro? Casado? Fala!” Soluçou:

– Solteiro.

O velho arregalou os olhos. “Ah, solteiro, é?” Largou a menina. E veio, com um meio-riso cruel, fazendo toda a volta da mesa. Parou diante do filho Juca, o caçula. Baixou a voz: “És o único solteiro, o único!” E, súbito, com um uivo triunfal agarrou o filho, pela gola, com as duas mãos, suspendeu-o: “Foste tu, hein? Canalha!” O caçula pôs-se a chorar:

– Não fui eu! Juro! Não fui eu!…

Uma bofetada o derrubou. Durante vinte minutos, meia hora, o atormentou com insultos e pescoções, numa obstinação tremenda: “Confessa! Confessa!” Todos, ali, fascinados pela cena, não intervinham. Quase à meia-noite, fora de si, os lábios sangrando, o rapaz explodiu:

– Fui eu, sim! Fui eu! — e repetia, histericamente: — Eu! Eu!…

O velho largou o filho menor. Cansado e triunfante, veio de novo ocupar a cabeceira. Ofegava:

– Felizmente esse cachorro é solteiro. Pode reparar o mal casando-se.

Desgraçado!…

O justo

A partir do dia seguinte, o próprio seu Clementino incumbiu-se das providências matrimoniais. Andava com o filho de cima para baixo. Interrogado se seria casamento de véu e grinalda, esbravejou:

– Claríssimo! De véu e grinalda, sim! Ou estão pensando que casamento é algum mafuá? Aperta-se, amarra-se e ninguém nota!…

Perante a família, era óbvio que ele conseguira seu êxito máximo. Sentindo-se alvo da admiração, do medo e do respeito unânimes, assumia, em casa, no ônibus, no escritório, um ar de estátua no próprio monumento. Quanto ao Juca, estava num desses desmoronamentos integrais, de meter dó. Não abria a boca num silêncio obtuso e selvagem. Todas as noites, o pai, severo, impunha que ele e Isaurinha “noivassem” na sala de visitas, lado a lado. Havia, porém, entre os dois, um mutismo apavorante. Nada existia de comum entre eles, nenhuma frase, nenhuma palavra, sorriso ou olhar. E, assim, graças às providências urgentes, os papéis ficaram prontos, num tempo inédito. Na véspera do casamento, cruzam o noivo e a noiva, acidentalmente, no corredor. Isaurinha barra a passagem de Juca e lança o apelo: “Perdoa! Perdoa!” Ele não fez um gesto, nem disse nada. Passou adiante, trancando os lábios.

As bodas

Casaram-se. Quase à meia-noite, despedia-se o último convidado. Recolheu-se a família, e os noivos entraram no quarto dos fundos, que lhes fora destinado. Juca torceu a chave, enquanto Isaurinha, ainda de noiva, tirava a grinalda, diante do espelho. E, então, o rapaz aproximou-se, perguntava: “Quem foi? Quem foi?”

Virou-se, assombrada. Ele continuou: “Cínica! Cínica!” A pequena estava agora de pé. Juca, rápido, a segurou pelos dois braços, com inesperada violência: “Se tu não me disseres, eu te mato!” Disse, repetiu a pior das palavras, com envenenada euforia. Torturou-a toda a noite; ela resistia, soluçando: “Não posso dizer! Não posso dizer!” E ele, atirando, a seus pés, todas as hipóteses.

– Que cunhado foi ou que irmão? Fala! Quando já desaparecia do céu a última estrela, ela, com o pobre vestido de noiva roto, amassado e sujo, gritou: “Foi ele!” Não entendeu: “Quem? Ele quem?” Isaurinha caiu aos seus pés, abraçou-se às suas pernas:

– Teu pai! Foi teu pai!…

Balbuciou, fora de si: “Meu pai? Meu pai fez isso? Mas não é possível. Meu pai?” E, súbito, pôs-se a rir, numa dessas gargalhadas que o fez torcer-se, dobrar, perder a respiração.

Castigo

De manhã, ele esperou que o pai saísse do quarto em direção ao banheiro: “Quero falar contigo, já! Vamos!” Encerraram-se no gabinete. O pai, subitamente envelhecido, esperava. E o filho: “Sei de tudo. E vou contar, tudo, a tua mulher, a teus filhos, a teus genros e a teus vizinhos.” Agarrou-se ao filho, suplicou ignobilmente: “A um morto se perdoa! A um morto se perdoa!”

A princípio, o filho não compreendeu ou só compreendeu quando a arma apareceu na mão do velho. Seu Clementino encostou o cano na fronte e apertou o gatilho. Foi um estampido tremendo que assombrou a casa, a vizinhança, a rua inteira. Morreu, antes que chegasse a Assistência. Muito mais tarde, no velório, o filho Juca chorava mais forte que os outros e mais que a própria viúva. Mas na hora em que o enterro saiu, ele, da janela, berrava:

– Vai canalha! Vai!…

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