O Monstro de Rodas – Conto de Alcântara Machado

O Nino apareceu na porta. Teve um arrepio. Levantou a gola do paletó.

– Ei, Pepino! Escuta só o frio!

Na sala discutiam agora a hora do enterro. A Aída acha- va que de tarde ficava melhor. Era mais bonito. Com o filho dormindo no colo dona Mariângela achava também. A fumaça do cachimbo do marido ia dançar bem em cima do caixão.

– Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora!

Dona Nunzia descabelada enfiava o lenço na boca.

– Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora!

Sentada no chão a mulata oferecia o copo de água de flor de laranja.

– Leva ela pra dentro!

– Não! Eu não quero! Eu… não… quero!…

Mas o marido e o irmão a arrancaram da cadeira e ela foi gritando para o quarto. Enxugaram-se lágrimas de dó.

– Coitada da dona Nunzia!

A negra de sandália sem meia principiou a segunda volta ao terço.

– Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor…

Carrocinhas de padeiro derrapavam nos paralelepípe- dos da Rua Sousa Lima. Passavam cestas para a feira do Largo do Arouche.

Garoava na madrugada roxa.

–… da nossa morte. Amém. Padre-Nosso que estais no Céu…

O soldado espiou da porta. Seu Chiarini começou a roncar muito forte. Um bocejo. Dois bocejos. Três. Quatro.

–… de todo o mal. Amém.

A Aída levantou-se e foi espantar as moscas do rosto do anjinho.

Cinco. Seis.

O violão e a flauta recolhendo de farra emudeceram respeitosamente na calçada.

Na sala de jantar Pepino bebia em companhia do Amé- rico Zamponi (SALÃO PALESTRA ITÁLIA – Engraxa-se na perfeição a 200 réis) e o Tibúrcio (– O Tibúrcio… – O mulato? – Quem mais há de ser?).

– Quero só ver daqui a pouco a notícia do Fanfulla.

Deve cascar o almofadinha.

– Xi, Pepino! Você é ainda muito criança. Tu é ingênuo, rapaz. Não conhece a podridão da nossa imprensa. Que o quê, meu nego. Filho de rico manda nesta terra que nem a Light. Pode matar sem medo. É ou não é, seu Zamponi? Seu Américo Zamponi soltou um palavrão, cuspiu, soltou outro palavrão, bebeu, soltou mais outro palavrão, cuspiu.

– É isso mesmo, seu Zamponi, é isso mesmo!

O caixãozinho cor-de-rosa com listas prateadas (dona Nunzia gritava) surgiu diante dos olhos assanhados da vizinhança reunida na calçada (a molecada pulava) nas mãos da Aída, da Josefina, da Margarida e da Linda.

– Não precisa ir depressa para as moças não ficarem escangalhadas.

A Josefina na mão livre sustentava um ramo de flores. Do outro lado a Linda tinha a sombrinha verde, aberta. Vestidos engomados, armados, um branco, um amarelo, um creme, um azul. O enterro seguiu.

O pessoal feminino da reserva carregava dálias e palmas-de-são-josé. E na calçada os homens caminha- vam descobertos.

O Nino quis fechar com o Pepino uma aposta de quinhentão.

– A gente vai contando os trouxas que tiram o cha- péu até a gente chegar no Araçá. Mais de cinquenta você ganha. Menos, eu.

Mas o Pepino não quis. E pegaram uma discussão sobre qual dos dois era o melhor: Friedenreich ou Feitiço.

– Deixa eu carregar agora, Josefina?

– Puxa, que fiteira! Só porque a gente está chegando na Avenida Angélica. Que mania de se mostrar, que você tem!

O grilo fez continência. Automóveis disparavam para o corso24 com mulheres de pernas cruzadas mostrando tudo. Chapéus cumprimentavam dos ônibus, dos bondes. Sinais da santa cruz. Gente parada.

Na Praça Buenos Aires, Tibúrcio já havia arranjado três votos para as próximas eleições municipais.

– Mamãe, mamãe! Venha ver um enterro, mamãe!

Aída voltou com a chave do caixão presa num lacinho de fita. Encontrou dona Nunzia sentada na beira da cama olhando o retrato que a Gazeta publicara. Sozinha. Chorando.

– Que linda que era ela!

– Não vale a pena pensar mais nisso, dona Nunzia… O pai tinha ido conversar com o advogado.

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