Não me esquecerei nunca do negro velho que noite de São João andava em fogo: atravessava de pés nus e a passo quase de procissão, de tão vagaroso, a fogueira do santo onde depois se assavam milhos e batatas-doces, para regalo dos meninos e da própria gente grande. Chamava-se Manuel: Manuel de quê, já não me lembro bem, mas creio que de Sousa. Vi-o eu mesmo, com olhos assombrados de menino, pisar em brasas de fogueira, ainda vermelhas de vivas. Em tições flamejantes cuja quentura chegava até nossos rostos de meninos e grandes, todos espantados do heroísmo do negro velho. Ele apenas gritava: “Viva o senhor são João!” E nós dizíamos: “Viva!” Era o rito.
Isto há uns bons cinqüenta e tantos anos na casa do meu tio Tomás de Carvalho. Aí, como em quase toda casa do Recife daquele tempo, noite de São João se acendia fogueira no quintal. Era para o diabo não dançar diante da casa, explicavam aos meninos as pessoas antigas. E a fogueira era o centro das comemorações do santo. Já disse que nela se assavam milhos e batatas-doces. Nos tições os meninos acendiam fogos chineses e outros fogos de brinquedos: rodinhas, pistolas brancas de três a dez tiros, foguetes de sete cores diferentes, craveiros, jasmins. E a noite toda o ar se enchia de estouros de buscapés e do brilho de limalhas; e não apenas das cintilações inocentes das estrelinhas que os pequenos de cinco anos soltavam junto com “traques-de-velha”.
O que nem toda casa do Recife daquele tempo tinha era um preto velho que andasse em fogo como o preto velho, empregado antigo do meu tio e padrinho Tomás. Um preto velho comum, que nos dias comuns não fazia senão rachar lenha para a cozinha, preparar o banho do doutor (que só ele, ao que parece, sabia temperar), ir à venda comprar vinagre, querosene, cominho e outros artigos suburbanos, que os principais — vinhos, azeite, presunto, passa, biscoito — vinham de armazém de luxo do centro da cidade. E tio Tomás morava no ponto de parada do Arraial.
Pois esse negro velho comum, sem pretensões a mágico, sem artes de babalorixá, sem sequer a graça de contador de histórias de Trancoso, noite de São João tornava-se um herói: andava em fogo sem se queimar. Deixava de ser um ser prosaicamente natural para tornar-se quase uma assombração.
Anos depois vim a ler em livros e revistas eruditas referências a esse fenômeno psíquico: o dos raros, raríssimos, indivíduos que andam em fogo sem se queimarem. Tomei conhecimento das façanhas de Kuda Bux que assombraram Londres, onde os pés do extraordinário homem foram cuidadosamente examinados por médicos e físicos antes e depois de terem pisado em fogo. E já se tinha visto na Inglaterra certo mr. Home, não andar em fogo, mas pegar em brasas com as mãos nuas, exclamando: “Is not God good? Are not his laws wonderful?”
O negro velho Manuel dizia apenas “Viva o senhor são João!” Mas pisava em fogo no Recife, dos princípios do século XX, do mesmo modo que Kuda Bux, anos depois, pisaria em brasa, em Londres, fazendo sensação na Europa inteira. Merece Manuel ser recordado aqui já que o seu caso não figura em nenhuma revista erudita da Europa.
Saliente-se que isso de andar em fogo parece orientalismo comunicado ao Brasil pelo português ou pelo africano. Sabe-se que há cerimônias no sul da Índia, no Japão, em Taiti, noutras terras, em que pessoas extraordinárias andam em fogo sem se queimarem. Tylor, no seu clássico Primitive culture, refere-se ao assunto, de que também se ocupa Percival Lowel em Occult Japan.
O que nos faz pensar em assunto já ferido em página anterior: o de que o sobrenatural parece ter também sua ecologia. Suas zonas de especialização de fenômenos de acordo com a natureza. Se é certo, como pretende um especialista em assuntos psíquicos, Carrington, no seu The psychic world, que dos fenômenos psíquicos vários são substancialmente os mesmos no mundo inteiro, outros são peculiares a certas áreas de onde se têm comunicado a áreas de clima, ambiente ou cultura semelhante. Gerald Arundel, também especialista não sei se diga na matéria, depois de estudar manifestações psíquicas na América tropical, chegou à conclusão de que há fenômenos psíquicos peculiares aos trópicos e outros aos climas frios.
É fácil de explicar porque no Recife não se encontram casos nem de adivinhos-d’água — isto é, de indivíduos que dizem por meios sobrenaturais onde se deve cavar o solo para encontrar-se água — nem de provocadores, pelos mesmos meios, de chuvas. Águas e chuvas não faltam à capital de Pernambuco. Tais fenômenos talvez ocorram com freqüência no Ceará.
Sinto não ter nunca conversado com o preto Manuel sobre seu assombroso poder de pisar em fogo noite de São João. Era eu então muito pequeno e o preto, caladão e até casmurro. A verdade, porém, é que vi, assombrado, não uma, mas várias vezes, o negro velho pisar em fogo como se seus pés fossem os de um fantasma e não os de um homem igual aos outros.