Aos 54 anos quase foi. Andou morre, não morre. Acabou superando a crise e saindo da câmara de oxigênio. Mas, já com o sentimento de morte próxima, chamou a esposa e a filha única. Começou, patético:
– Sou um homem liquidado!
A mulher fez o que lhe competia, protestou:
– Mas que bobagem! Liquidado por quê? Ora veja!
Por sua vez a filha muito bonitinha, nos seus 19 anos, bateu na madeira: “O senhor é muito cismado, papai!” Ele teimou:
– Sei o que digo. Estou mais pra lá, que pra cá. Qualquer dia desses, estouro.
Queria ser duro, mas tinha os olhos marejados. Pigarreou, clareando a voz e disse:
– Mas, antes de morrer, eu queria duas coisas: primeiro ver a minha filha casada. Segundo: conhecer o meu neto.
A filha que, chorosa, acabara de se assoar no lencinho, acudiu: “Mas evidente, papai! O senhor vai assistir meu casamento, sim. Nem se discute. E também há de batizar meu filho, se Deus quiser!”
Do lado, a mãe corroborou:
– Lógico!
O problema
Há cerca de um ano que, com conhecimento e aprovação dos pais, Jurema namorava Clementino. Era um amor tranquilo, sem arrebatamentos, mas estável. Já podiam estar noivos. Mas como Clementino ganhasse pouco e um e outro tivessem um temperamento acomodado iam protelando. A própria Jurema explicava para as coleguinhas: “Está tão bom assim!” Uma de suas amigas, escandalizada com tamanha paciência, exclamou:
– Já vi tudo.
– Viu o quê?
A outra, incisiva, baixando a voz, concluiu:
– Você é fria!
E passou. Com a doença do pai, que teve um infarto, houve uma mudança de situação. Jurema era sentimental e, além disso, uma filha boníssima. Fez seus cálculos: “Papai pode mesmo morrer e…” Daí a vinte minutos, com a assistência e estímulo de sua mãe, batia o telefone para Clementino: “Vem mais cedo, hoje, meu filho. Grandes novidades.” De noite, o rapaz comparecia e trancaram-se os três para discutir a antecipação do casamento. Clementino, que era bancário e metódico, assustou-se: “Mas não ganho o suficiente!” Ao que as duas mulheres replicaram:
– Paciência! Temos que dar um jeito! Ninguém morre de fome no Brasil!
E Jurema, sobretudo, exaltada, teimava: “Quero dar essa satisfação ao meu pai.
Faço questão!”
O namorado, tonto, coçava a cabeça: “É o diabo! O diabo!” Mais do que o casamento, aterrava-o a exigência de um filho. Resistia! “Está tudo tão caro! Uma chupeta que, antigamente, custava dez tostões, hoje custa um dinheirão!” Não houve, porém, argumento que as dissuasisse. Veio da sogra a palavra final:
– Vocês moram com a gente. Onde comem dois, comem quatro! Na saída, Jurema o levou até o portão. Contrariamente aos seus hábitos, parecia animadíssima:
– Meu bem, se Deus quiser, papai há de conhecer o netinho. Vai ser tão bom!
O casamento
Clementino não teve outro remédio senão concordar. Mas, no dia seguinte, bem cedinho, antes de ir para o emprego, acordou um amigo que, por sinal, era quartanista de medicina. O outro, rijamente sacudido, esbravejou: “Não chateia!” Acabou sentando-se na cama. Clementino estava ali, para propor a seguinte questão:
– O sujeito que tem uma doença, assim, assim, pode ter filhos? Foi rotundo:
– Nunca mais!
E Clementino, insistente:
– Mas isso é batata ou palpite?
– Ora, não amola! Batata, sua besta!
Mas, como o Genival era apenas um quartanista de medicina, o rapaz ainda consultou dois ou três médicos de verdade. Houve uma compacta unanimidade: a pessoa que tivesse a doença mencionada estava incapaz, definitivamente incapaz, para a paternidade. Como um dos médicos consultados, conhecesse Jurema, Clementino pediu: “Moita, hein? Com o tempo, Jurema saberá. Já, não. Já, não convém.” Durante dois meses, não se fez outra coisa senão trabalhar nos preparativos do casamento. Mas aconteceu uma coisa profundamente desagradável para o noivo: só se falava no netinho. Cuidava-se da criança remota, hipotética, como se ela estivesse para nascer. As comadres opinavam sobre nome, sexo e tudo o mais. Uma tia, entendida, afirmava: “Jurema tem umas medidas ótimas!” E a pequena, inclinando-se sobre as mães presentes, indagava: “A dor é como dizem, é?” Do velho, então, nem se fala. Depois do acidente cardíaco, chorava com qualquer coisinha. Era preciso que a mulher ou a filha o controlassem: “Não se emocione! Cuidado!” Clementino ouvia um, ouvia outro e insinuava:
– Esse negócio de filho é meio complicado. Às vezes, custa. Às vezes, não vem
de cara.
Choviam protestos:
— Vem, sim! Vem até sem querer! Como não?
Casaram-se no civil e no religioso. Às 11 e meia da noite, depois que saiu o último convidado, recolheram-se, também, os noivos. E, então, depois de um beijo, não tão intenso como o momento comportava, Clementino suspirou: “Meu anjo, tenho uma má notícia.” Mais tarde, ele se arrependeria da revelação inoportuna. Naquele instante, porém, deixou-se levar por um arroubo de sinceridade. Concluiu, lento e grave:
– Não posso ter filhos. O médico avisou que não terei filhos, nunca.
Compreendeu? Nunca…
Jurema, atônita, perguntou: “Não pode como? E meu pai? Com que cara vou aparecer diante do meu pai e dos outros?” Andando de um lado para outro, desorientado, o pobre-diabo, repetia: “Espeto! Espeto!” Súbito, ela se enfurece. Segura-o: “E por que você diz isso agora? Por que não disse antes, hein?” O rapaz quis segurá-la e tentou um beijo. Ela, porém, mais rápida, se desprendeu, irredutível:
– Não me toque!
O netinho
Ela passou a noite nupcial em claro. De manhã, atormentada pela vigília, desabafou: “Se eu pudesse não sairia nunca do meu quarto!” E, então, dia após dia, os dois passaram a viver num inferno. Os pais não falavam noutra coisa, senão nesse netinho ultrarremoto. O velho fazia os cálculos: “Daqui a um mês, Jurema já pode ir ao médico…” A mulher, porém, objetava: “Um mês é pouco. Não dá pra ver.” Com 15 dias, o pobre cardíaco já olhava para a filha, com um olhar mais atento e crítico, como se pudesse notar alguma transformação física. Aos trinta dias, Jurema, desesperada, foi ao médico. Na volta, o pai, trêmulo, perguntou: “Como é?” Pôs a bolsa em cima da mesa; sentou-se, com os olhos marejados:
– Nada.
O pai teve uma decepção pueril e medonha: “Ora essa!” De noite, houve uma cena entre Jurema e o marido. Ele procurava não perder o equilíbrio: “O negócio é o seguinte: temos que tapear teu pai. Não interessa dizer a verdade.” Então, fora de si, Jurema agarrou-se a uma esperança última e frenética: “E quem sabe se os médicos não estão enganados? Quem sabe?” Clementino, aterrado, admitiu: “Talvez…” A verdade é que Jurema, no seu desvario, fazia toda sorte de promessas. Punha-se de joelhos e, na presença do marido, erguia as mãos para o céu, soluçando:
– Quero um filho! Quero filho! Oh, meu Deus!…Quem sabe se é questão de posição? E se eu puser o travesseiro por baixo de mim?…
O avô
E, assim, se passaram dois meses, três, quatro. Todo o mês, uma desilusão. Jurema, num desabafo inevitável e necessário, contara tudo ao médico. Ele, já idoso e bom, prestara-se a enganar a família; era vago: “Às vezes, demora.”
Quanto ao avô desiludido, vivia numa irritação tremenda; por vezes, desabafava: “Casamento sem filhos é uma imoralidade.” Outras vezes, interpelava o genro; fazia blagues amargas: “Como é, rapaz. Que é que há contigo? Esse filho vem ou não vem?” Ou, então, sombrio, virava-se para a filha:
– Parece incrível que minha filha me negue esse favor!
Transcorreram mais três meses. No aniversário de Jurema, na presença dos convidados, o pai levantou a questão: “Afinal, de quem é a culpa? De minha filha ou do meu genro?” Foi um constrangimento geral. E, então, a mãe da pequena, que sabia de tudo, foi categórica:
– A culpa só pode ser do marido. Porque, na minha família, as mulheres são batatas. Uma tia minha teve 15 filhos.
O pai
Clementino emagrecera, andava numa tristeza de impressionar. E, além disso, fora visto, na rua, gesticulando e falando sozinho. Uma noite, chegou em casa e encontrou a mulher chorando, de bruços, na cama. Tomou-se de amor, de pena, de tudo. E teve um repente que a sobressaltou, ao anunciar: “Você há de ter esse filho, de qualquer maneira!” Deu, então, para aparecer em casa com um amigo, rapaz forte, bonito, duma grande vitalidade. Chamava-se Richard e tornou-se amicíssimo da família. Os pais de Jurema viviam gemendo: “Isso é que é homem!” Muitas vezes, os três saíam juntos, para passeios, piqueniques, excursões à Barra da Tijuca. Certa vez, chegando de um passeio, Clementino faz um comentário vago para a mulher: “Richard é discretíssimo. De toda a confiança.” Três meses depois, ela vai ao médico e volta alucinada: “Estou! Estou!” Foi uma alegria em casa. Os vizinhos compareceram, em massa, para dar os parabéns. De noite, chegou o marido. Sorria, com esforço e, para justificar a própria melancolia, alegou uma gripe.
Mais tarde, no quarto, trancados, houve uma cena atrás entre marido e mulher.
Como ela começasse a chorar, ele a apertou de encontro ao peito: “Você não teve culpa de nada.” Disse mais, também chorando:
– Gostarei dessa criança como se fosse meu filho.