Uma noite, duas semanas antes do casamento, conversava com alguns amigos, no café. Súbito, um deles, baixa a voz, e faz-lhe a pergunta:
– Sabe quando é que se decide um casamento?
– Não.
E o outro:
– Na primeira noite. O sujeito que capricha na primeira noite, está feito como marido.
Sérgio ouviu, sem comentário. O outro era casado, bem-casado, e tinha a autoridade de quem conhecia o problema. Continuou e mudaram de assunto. Mas quando, uma hora depois, desfez-se o grupo, o amigo o levou até a esquina. E, lá, repete:
– Não te esqueças: é preciso caprichar na primeira noite. Bye, bye. O impressionado Sérgio balbuciou:
– Bye, bye.
Emoção
Morava na rua Adriano, Méier. A caminho de casa, no lotação, ia pensando na advertência do amigo que passava por ser uma enciclopédia amorosa. E Sérgio que era, por natureza, um emotivo, sujeito a angústias inenarráveis, começou a entrever possibilidades nupciais, as mais desagradáveis. Durante a noite sonhou, repetidas vezes, com o amigo, que lhe repetia, sinistramente: “Olha a primeira noite. Capricha.” Acordou, banhado em suor. Mais tarde, no trabalho, permanecia o mal- estar. E a situação parecia-lhe de um grotesto hediondo: faltavam duas semanas para o casamento e já estava nervoso. Durante uma semana, não pensou em outra coisa. Acabou indo a um médico. Chega lá e abre o coração:
– Doutor, o que há é o seguinte: vou me casar daqui a uma semana. E sou uma pilha, doutor. Tenho medo, justamente, do meu sistema nervoso, das minhas inibições.
O médico insinua:
– Quer um calmantezinho? E ele, de olho aceso:
– Talvez fosse negócio, não, doutor? Mas o outro volta atrás:
– Não precisa. Pra quê? A solução é ter confiança em si mesmo, procurar distrair as ideias.
Agoniado, quer saber: “E não vou tomar nada?” O médico, cheio de otimismo, deu-lhe conselhos:
– Faz o seguinte: no dia do casamento evita salgadinhos e doces. O ideal seria um bife, um bom bife. Carne sadia, sangrenta. E, antes de comer, procura cheirar, discretamente. Nada de pastéis, de empadinhas, de coisas apimentadas.
Ao lado, o noivo escutava:
– Compreendo, compreendo.
Saiu crente, do consultório, que a chave de uma lua de mel sucedida era o aparelho digestivo. Ao descer do médico, dá de cara, por uma dessas fatalidades cômicas, com o tal amigo. Este diz-lhe, em tom cavo e voz profunda:
– A primeira noite é tudo!
Núpcias
Eis a verdade: a conversa com o médico dera-lhe novo ânimo, novo elã. Passou a pisar mais firme, a olhar os outros de cima para baixo e, no telefone, ao despedir-se da pequena, encostava a boca no fone:
– Um beijo bem molhado nessa boquinha!
Entre parênteses, a garota, com 18 anos, jeitosa de corpo e de rosto, era, como dizia o próprio Sérgio, um “doce de coco”, um “arroz doce”. Educadíssima ou, segundo se comentava, muito “espiritual”, era incapaz de usar uma expressão de gíria, ou dar uma gargalhada ou, simplesmente, cruzar as pernas. Fisicamente, era um tipo fino, de poucas cadeiras, uma linha muito aristocrática. Havia quem cochichasse a objeção: “Não tem rabo.”
Sérgio vivia dizendo: “Nunca espirrou na minha frente. E outra coisa: não transpira. Te juro que nunca vi a Dalva suada.” De fato, nenhuma pele mais isenta de espinhas, de manchas, mais fresca, mais cheirosa e mais suave. Custava crer que essa imagem de graça intensa, essa flor de espiritualidade, tivesse nascido e pior do que isso: ainda morasse na Saúde. Muito carioca, estabanado, Sérgio mudava muito diante da noiva assim doce e assim macia. Sem querer, ele a tratava com relativa e involuntária cerimônia. O chamado “beijo bem molhado” era a máxima liberdade verbal que se permitia. Mas na véspera do casamento ela o chamou, de lado. No seu jeito manso, começou:
– Vou te pedir um favor, meu filho. Abriu-se:
– Pois não! E ela:
– Eu não queria que você falasse mais em “beijo molhado”. Acho tão sem poesia!
Pela primeira vez, Sérgio quis resistir:
– Mas meu bem, escuta cá: por quê? Explicou:
– É o seguinte: quando você fala assim eu penso logo em saliva. O outro animou-se:
– Mas por isso mesmo. A graça do beijo está justamente na saliva, meu anjo. — E insistia, já inspirado: — Na mistura de saliva.
Dalva encerrou a discussão, com a sua doçura irredutível: “Eu não penso assim.” Sérgio transigiu, imediatamente:
– Está bem, coração. Todo o meu interesse é te agradar!
A tragédia
No dia, houve o casamento, no civil e no religioso. Na igreja, de joelhos diante do altar, ele julgava ouvir, alternadamente, a voz do amigo e do médico. Uma dizendo: “A primeira noite é tudo.” E a outra: “Nada de salgadinhos! Nada de doces!” De fato, desde as primeiras horas do dia, que observava um extremo rigor na alimentação. Renunciara ao leite, que podia afetar o fígado; alimentara-se, sobretudo, de frutas acima de qualquer suspeita: bananas e mamão. Não almoçara, porque a hora do almoço coincidira com a do civil. Ao sair da igreja, sentia fome. Chegara, de volta, na casa dos sogros, com fome. Viu os salgadinhos, os doces e, a despeito de uma tentação violenta, manteve-se irredutível. De vez em quando, pessoas da casa passavam com pratos de sanduíches, de pastéis, de doces. Perguntavam:
– Aceita um? Respondia, heroico:
– Não, obrigado.
Ficou, assim, inexpugnável, até o fim. A noiva que, por natureza, tinha um apetite de passarinho, não tocou em nada. Minto: aceitou um pastelzinho. Ele ainda teve vontade de sugerir-lhe: “Não faça isso.” Calou-se, porém. Por fim, saíram de táxi, para um hotel, no Centro, onde tinham alugado um apartamento, no 12o andar, para a lua de mel. Ao entrar no carro, Dalva balbucia: “Não sei, mas não estou me sentindo bem.” Sem nada dizer, aguardou para si a intuição: “Foi o pastelzinho.” No meio do caminho, novo lamento: “Estou me sentindo tão mal!” Falara de dentes trincados; disse ainda: “Tomara que a gente chegue logo, tomara!”
Sentindo a angústia do ser amado, comandou o chofer: “Quer andar mais depressa?” Ao lado, Dalva crispava-se toda, gelada de dor. Sérgio baixa a voz:
– Queres que eu compre elixir paregórico?
– Não diz isso. Não diz nada. Só quero é chegar, meu Deus!
Ia balbuciando: “Não sei se aguento! Não sei se aguento!” Ele, finalmente, diz: “Foi aquele pastelzinho, não foi?” Ela arquejava, chamando a atenção das pessoas. Sobe no elevador, com o marido, que apanhara a chave. Lá em cima, exige: “Não entra, fica no corredor!” Ele espera vinte minutos. Nada. Empurra e vem, então, lá de dentro, o berro: “Não!” Da porta, pergunta: “Queres elixir paregórico?” Outro “não” violento. Mais meia hora, ele quer forçar a situação. Entra. Mas quando Dalva percebe que o marido está ali, alucina-se. Ele a viu correr, em direção da janela, trepar no parapeito, atirar-se lá de cima, do 12o andar, deixando no ar seu grito em flor. Meia hora depois, chegam parentes, amigos, simples conhecidos. Diante da morte de uma noiva, em sua primeira noite, insinuou-se, em todos os espíritos, a ideia de um tenebroso crime sexual. O sogro de Sérgio agarrou-o pela gola e o sacudiu, aos berros:
– Ela matou-se por quê?
Respondeu, num soluço imenso:
– Uma cólica a matou! Foi o pastelzinho!