O plural – Conto de Nelson Rodrigues

By | 02/08/2022

Foi avisado:

– Cuidado com o De Paula! Cuidado com o De Paula!

– Por quê?

O informante atrapalha-se:

– Bem. O De Paula é um veneno, percebeste? Fala mal de todo mundo! Quintanilha pôs o cigarro no cinzeiro:

– De mim também? Desembucha! Fala mal de mim? E o outro:

– Mais ou menos. Anda dizendo, a teu respeito, coisas bem desagradáveis.

Quintanilha ergueu-se. Bem-sucedido na vida, feliz nos negócios e no casamento, não tinha invejas, nem complexos. Ao passo que o De Paula, mirrado, pequenino, com catarata numa das vistas, era um amargurado, um revoltado. Apanhando outro cigarro, Quintanilha acha graça:

– Você acha que eu vou ligar para o que De Paula diz? Eu, logo eu? É um pobre- diabo, um cretino de pai e mãe. Deixa pra lá!

De Paula

E, de fato, podia dar-se ao luxo desse desprendimento, dessa superioridade. Dois dias depois, porém, é procurado, no escritório, por outro amigo, o Leon. Quintanilha abre os braços, numa efusão patética: “Quem é vivo aparece!” Depois dos abraços, dos tapinhas nas costas, pergunta, alegremente: “A que devo a honra dessa visita?” Leon pigarreia, faz a pergunta:

– Tens visto o De Paula? Confirma:

– Vi. Ainda hoje, vi. Dei-lhe um abraço. Por quê?

Leon levanta-se. Anda de um lado para outro e, por fim, decisivo, estaca diante do amigo:

– O De Paula não merece o teu abraço. Merecia, sim, que lhe partisses a cara.

Um canalha muito ordinário!

Surpreso e divertido, Quintanilha repete: “Você acha que eu vou dar confiança de me zangar com o De Paula? Deus me livre! Ele pode falar de mim à vontade! Tanto faz, como tanto fez! Considero o De Paula um verme!” Então, Leon resolve pôr as cartas na mesa:

– Mas a questão é a seguinte: não é de ti que ele fala mal.

– Então, ótimo. Se não é de mim, qual é o drama? E de quem fala ele, afinal? O amigo foi sumário:

– Da tua mulher. Compreendes agora por que eu disse que o De Paula merecia que lhe quebrasses a cara?

O anjo

Ora, Quintanilha era um homem casado e muito bem-casado, aliás. Adorava a esposa, embora tivesse as amantes eventuais. No seu temperamento alegre, extrovertido, costumava dizer: “Sou o único marido que gosta da esposa, o único!” E, vamos e venhamos: Ada era um anjo. Vivia para o marido e o lar, só. Trazia a casa, que era um brinco, uma teteia. O deslumbrado Quintanilha reconhecia para a própria mulher:

—Sabe que eu ainda não descobri um defeito em ti?

Ada punha as mãos na cabeça: “Está me pondo uma máscara tremenda!” E aduzia: “Não há ninguém perfeito, meu filho!” Pois bem. Era essa a mulher, que o De Paula queria macular com sua irresponsável maledicência. Fora de si, o Quintanilha arremessa-se:

– Fala mal de Ada? Tem essa coragem? Ah, cachorro! Eu mato o De Paula! Por essa luz que me alumia eu mato! Esborracho-lhe o crânio!

Atirava patadas no assoalho, num furor magnífico e inútil. Súbito, vira-se para o Leon; agarra-o pelos dois braços:

– Eu não me incomodo que falem mal de mim. Podem me chamar, até, de ladrão de galinhas. Mas não concebo que se diga nada de minha esposa. É uma santa de alto a baixo.

Ao lado, Leon parecia impressionado e, mesmo, arrependido. Já admitia que a revelação pudesse ter conse-quências funestas. Quis reduzir as proporções de um revide mais que provável; e aconselhou:

– Tiro pra quê? Corta-lhe a cara a chicote, a rebenque!

Súbito, Quintanilha põe a mão no ombro do outro, numa curiosidade que o distraiu, por momentos de sua dor: “E que diz esse patife de minha esposa? Fala. Quero saber! Como marido tenho o direito de saber!” Leon relutou; quis ficar no vago, no teórico. Mas o amigo o ameaçou: “Rompo contigo!” Quase sem voz, baixando a vista, num desconforto físico e moral, tremendo, bufa, por fim:

– O De Paula diz que tua mulher tem amantes!

Quintanilha recua dois passos, num espanto maior que a dor, que a indignação, que tudo. Repete, desvairado: “Amantes?” Aperta a cabeça entre as mãos:

– E nem ao menos é um só. São vários!

Agarra-se ao Leon: “Se ele põe no plural é porque tem vários!”

Ódio

Leon deixa-se cair numa cadeira:

– Não liga, dá o desprezo!

Leon passou, lá, umas duas horas argumentando. Vendo o estado do amigo, já achava desaconselhável e imprudente o simples desagravo do chicote. Insistia: “Todo mundo sabe que o De Paula é um mentiroso, um débil mental, capaz de caluniar a própria mãe.” Materialmente enfermo, Quintanilha já não reagia mais, ouvia, só, de olhos injetados, a alma destruída. Leon, no remorso de ter falado, de ter criado a situação, continuou:

– Basta cortar relações, negar-lhe o cumprimento. O tiro é um golpe errado. É uma solução heroica, que a besta do De Paula não merece! E agora? Vais fazer o quê?

Balançou a cabeça:

– Não sei. Estou incapaz de pensar, de raciocinar. Amanhã, fala comigo, sim?

Leon saiu, afinal. Praguejava interiormente: “Sou um imbecil completo! Que mania besta de dar palpites na vida dos outros.” Aflito, tratou de procurar, por toda a cidade, o De Paula. Mas em vão. Acabou desistindo, deixando para o dia seguinte.

O plural

Quintanilha não conseguiu dormir nessa noite. Pela manhã, saiu de casa normalmente, depois de beijar a mulher na boca e de adverti-la: “Hoje, tenho que resolver uma parada duríssima.” Foi só. Ela, curiosa, ainda perguntou: “Qual?” Quintanilha brincou: “Depois eu conto!” Vinte e poucos minutos depois, estava no escritório do De Paula. Sóbrio e suscinto, declarou o seguinte: “Eu soube que você anda falando mal de minha mulher.” Lívido, o outro gaguejou: “Eu?” E Quintanilha, quase cordial:

– Perfeitamente. Você, sim. E de duas uma: ou você prova o que diz ou eu o mato como se mata um cão danado. Escolha.

De Paula balbucia, apavorado:

– Provarei.

A prova

Segundo o De Paula, Ada encontrava-se com o amante três vezes por semana, às segundas, quartas e sextas, num edifício de quatro pavimentos. Era uma terça-feira e Quintanilha teve que esperar ainda 24 horas. Advertira, porém, o miserável: “Não adianta fugir, porque eu te matarei ainda que seja no inferno!”

O canalha quis saber: “E se eu provar? Não farás nada?” Jurou: “Nada!” Ficou assim combinado. Na tarde seguinte, do interior de um táxi, e na companhia do abjeto De Paula, Quintanilha viu a esposa descer de outro táxi, com um homem, e entrar no edifício. De Paula vira-se para ele numa euforia hedionda: “E agora? Estou livre?” Quintanilha nega:

– Ainda não. Tu disseste que minha mulher tem amantes. Por enquanto, eu conheço um. Quero os outros.

De Paula tem um esgar de choro:

– Mas é só um! Só tem esse! Só tem esse amante! Rápido, Quintanilha o abotoa:

– Se tem um, apenas um, por que disseste que minha mulher tem amantes? O que eu não te perdoo é o plural. Vais morrer por causa desse plural!

Ali mesmo, deu-lhe dois tiros.

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