O rapto – Conto de Monteiro Lobato

Sou oculista.

Dentre tantas especialidades abertas ao anel de pedra verde, barafustei pela oftalmologia, movido de nobres razões sentimentais. Lutar contra a noite, arrebatar presas à treva: poderá existir profissão mais abençoada?

Assim pensei, e jamais me arrependi de o ter pensado. Minha melhor paga nunca foi o dinheiro ganho em troca dos milagres da faca de De Graefe, senão o êxtase da triste criatura imersa na escuridão ao ver-se de súbito restituída à luz.

O oculista, fora dos grandes centros, é um animal andejo. Não pode estacionar permanentemente no mesmo ponto, a exemplo dos colegas que curam todas as moléstias conhecidas e quibusdam aliis. Encontra em cada zona um reduzido grupo de clientes, curados os quais, ou desenganados, força é que se abale de freguesia.

Fiz-me andejo. Andei de déu em déu, por ceca e meca, desfazendo cataratas, recompondo nervos ópticos; e se não enriqueci, vale um tesouro o livro da minha carreira clínica, tão cheio o tenho de impressões suculentas de psicologia ou pitoresco.

Estampo cá uma delas: o caso do cego de Rio Manso. Não é caso cômico e não será trágico; duvido, porém, que me apresentem outro mais humano — e de tão grande rigor de lógica.

Rio Manso é viloca que os fados plantaram seis léguas além de Itaguaçu, cidadezinha onde permaneci três meses de consultório aberto.

Parti para Rio Manso — lembro-me tão bem! — bifurcado em aspérrimo sendeiro de aluguel, avatar evidente do Rocinante, salvo o trote, que o tinha capaz de desfazer em pandarecos a nobre vestimenta de lata do herói manchego.

Meu Sancho era o Geremário, excelente cabrocha a quem extirpei uma catarata e que virou desde aí o meu fidelíssimo escudeiro.

Nem eu nem ele conhecíamos o caminho. Não obstante, funcionou Geremário como perfeita bússola, agudíssimo que é o senso de orientação adquirido pela gente da roça no traquejo da vida ao ar livre.

A terra é para eles um mapa vivo; e o chão das estradas, um roteiro luminoso. Conhecem a primor a linguagem dos sinais impressos no solo vermelho — sulcos de carros, pegadas de animais, galhos partidos, restos de fogueirinhas — e os leem como nós lemos a letra de forma. Foi assim que o arguto Geremário em certo ponto da viagem murmurou convictamente, com os olhos postos no caminho:

— Estamos chegando!

Olhei em redor e nada vi senão a mesma morraria desnuda, as mesmas samambaias. Nada denunciativo de povoado próximo.

— Como sabe, se nunca viajou destas bandas? O meu cabrocha sorriu com malícia e explicou:

— A estrada está piorando. Estrada ruim, Câmara Municipal perto…

De fato, o caminho, bom até ali, principiava a esburacar-se. Pus-me a observar a mudança, rápida transição para pior, até que, dobrada uma curva, de chofre avistamos as primeiras casas da vila.

— Não disse? — exclamou jubiloso o pajem. — Câmara Municipal é marca que não nega…

Ri-me por fora, e por dentro admirei a suave ironia daquela agudeza de altos quilates.

Todos os nossos povoados possuem o mesmo aspecto suburbano — a mesma somática, como diria o meu velho professor de patologia, no seu preciosismo de acadêmico.

A estrada principia de repente a margear-se de humildes casebres de sapé e barro, com cercas de bambu atrepadas do melão-de-são-caetano, ou cercas vivas de pinhão-do-paraguai, cactos e outras plantas da zona. Aos poucos os casebres melhoram. Começam a surgir casas de telha, já rebocadas, já caiadas; e vendinhas; e tendas de ferradores; e assim vai em gradação insensível até virar rua, com passeios e espaçados lampiões de querosene.

Também a categoria social dos moradores acompanha tal ascensão. De mendigos, de velhos negros capengas, de sórdidas pretas que se espiolham ao sol

— perfeita varredura humana de entristecedor aspecto —, a população passa a jornaleiros, a gente pobre mas arranjadinha, até chegar à “gente limpa”. E como a rua, no crescendo em que vai, desfecha em praça — o largo da matriz, com gramados, coreto de música e casas de comércio —, assim também as “almas” sobem do mendigo roto ao senhor doutor delegado e ao excelentíssimo senhor coronel N. N., chefe da política local, semideus, dono e tutu-marambaia da terra.

Ao entrar em Rio Manso, vencidos os primeiros casebres, chamou-me a atenção um berreiro. Em certa casinhola fechada ia rolo velho, surra ou luta, a avaliar pelos gritos que de lá vinham. Não posso ver dessas coisas sem intervir. Parei à porta e com rompante de autoridade dei com a argola do relho.
— Que é lá isso aí?

O rumor interno cessou, mas ninguém me respondeu. Nisto aproximaram – se alguns vizinhos, de mãos no bolso e ar velhaco.

— Que terra é esta? — gritei. — Mata-se gente dentro das casas e ninguém se move?…

Retrucou-me um deles:

— Se a gente fosse se incomodar cada vez que o Bento Cego desce o guatambu nos filhos…

Bento Cego… O caso interessava-me. Pedi informações.

— É um cego que mora aqui, o Bento. Ele gosta da sua pinguinha. Bebe às vezes demais, vira valente e mete a lenha nos filhos. Tranca a porta e é, como diz o outro, pancada de cego!

Fiquei na mesma e, vendo que o sujeito não me adiantava o expediente, bati de novo na porta com o cabo do relho. Abriu-ma dessa feita um rapazinho aí dos seus catorze anos. Interpelei-o. O menino, a coçar-se, olhou para a gente reunida atrás de mim e riu-se.

— Bem se vê que o senhor não é daqui. Papai é assim mesmo. Bebe seus martelinhos e quando esquenta a cabeça o gosto dele é bater. Nós deixa, e até se diverte com isso…

Assombrei-me. Um pai cujo gosto é bater na prole e filhos que se divertem com a surra! Mas como cada roca tem seu fuso e eu não conhecia o uso daquela terra, não pedi mais — toquei para o hotel, vivamente interessado pelo estranho costume daquela família.

Armei tenda em Rio Manso e pus-me a consertar olhos. Entrementes, enfronhei-me na história do Bento Cego. Nascera arranjado, filho dum fiscal da Câmara, e quando casou morava em casa própria, legada pelo pai e sita em rua de procissão. Maus negócios fizeram-no perdê-la e passar à rua mais modesta. Vieram filhos, vieram doenças, macacoas de toda espécie, urucas, e Bento, a decair mais e mais, foi rolando para pior até acabar cego, à beira da cidade, na zona da mendicância.

Como e por quê?

Era Bento um triste incapaz. Não prestava para coisa nenhuma. Começasse por onde começasse, seu destino seria sempre aquele, acabar na rua chorando esmolas. Bobo em negócios, tinha, entretanto, fumos de esperto. Piscava o olho a cada transação que fazia, e quando os arregalava via-se logrado, tungado, embrulhado, furtado pelos “passadores de perna”.

Fez-se barganhista, e jamais a barganha lhe deu o menor lucro. Começou pela casa. Barganhou-a por outra, muito inferior, tentado pela “volta”. Em três meses comeu a “volta” e ficou a nenhum em matéria monetária.

Mas a tentação da “volta” não o abandonou mais. Iria barganhando e comendo as “voltas”: solução mirífica, pensou ele piscando o olho.

E assim fez.

Casão por casa, casa por casinha, casinha por dois carros e quatro juntas de bois, os carros por dois cavalos, os dois cavalos por uma besta de fama que fazia e acontecia e não sei quem dava por ela oitocentos “bagos” — um negocião, sempre um negocião!

A ciganagem espigatória viu nele uma perfeita mina incapaz de resistir ao sésamo “volta”!

E tantas voltas deram no pisca-olho, que Bento se viu por fim com toda a herança paterna reduzida à mula, que não valia nem metade do preço. O freguês dos oitocentos bagos era fantástico e por muito feliz se deu ele de passá-la adiante por duzentos e sessenta mil-réis, mais uma garrucha velha de lambuja.

Os filhos, já taludos por esse tempo, saíram ao pai. Nunca frequentaram escolas, nem queriam saber de trabalho. Não se “sojeitavam”. Pelas vendas, à toa pelas ruas, viraram os piores moleques da terra e transformaram num inferno a casa do Bento. Exigências, brigas diárias, palavrões imundos e uma lambança das mais sórdidas. E como o pai, frouxíssimo de caráter, nunca tivesse ânimo de lhes torcer o pepino, eles acabaram torcendo o pepino ao pai. Tratavam-no como alguém trata cachorro, aos pontapés, e por fim, quando a miséria chegou e faltou um dia feijão à panela, foram às últimas — espancaram-no.

Bento não reagiu.

Reagir como, se eram três e ele não chegava a um? Resignou-se. Estimulados por tamanha covardia, entraram os filhos a repetir as doses, a amiudarem-nas, até o meterem para ali, num canto, bode expiatório e armazém de pancadas.

Bento deixou de ser homem. Passou a coisa humana, triste molambo de carne pensante, tímida, apavorada; desprezado de todos, seu consolo único era o álcool, em cujo sopor vivia agora imerso.

Tal situação durou até a venda da besta. Aí explodiu. Quando entraram em casa os duzentos e sessenta mil-réis, mais a garrucha, Bento anunciou que ia aplicá-los num excelente negócio. Fartos de excelentes negócios, os filhos opuseram-se. Ele havia que repartir o cobre.

Bento resistiu, retesando as vagas fibras da energia ainda restante em sua alma. Os filhos quebraram-lhe a cara com o cabo da garrucha e fugiram com o dinheiro.

Datou daí a cegueira do homem; do espancamento resultou traumatismo do nervo óptico e consequente catarata.

Bento passou a mendigo.

Viúvo que era, sem cão em casa, arranjou um cão, um porrete, um negrinho sarambé para guia e iniciou vida nova.

Como em Rio Manso não existissem cegos, todos se apiedaram dele. Davam-lhe roupas velhas, chapéus, mantimentos, dinheiro — afora consolações verbais.

Resultou disso que uma relativa abundância veio substituir-se à miséria de até então. Chapéus, possuía-os às dúzias, e de todos os formatos, inclusive cartola! Calças, paletós e coletes, às pilhas. Até fraques e uma formosa sobrecasaca de debrum vieram enriquecer-lhe o guarda-roupa.

Bento dizia:

— Deus dá nozes a quem não tem dentes. Agora que é um corpo só na casa, tanta roupa, até fraque…

Mas os filhos marotos cheiraram de longe a reviravolta da fortuna e bateu-lhes a pacuera do arrependimento. Hoje um, amanhã outro, vieram os três, cabisbaixos e humílimos, implorar perdão ao velho.

Que não perdoará um cego, inda mais pai? Bento perdoou-os e readmitiu-os em casa. A esmola sempre farta havia de dar para todos.

E deu. Nunca daí por diante faltou feijão à panela, nem roupa ao corpo, nem dinheirinho para o resto, inclusive cachaça e fumo.

Milagre! Aquele homem que de olhos perfeitos jamais conseguira coisa alguma na vida além do desprezo público e da pancada dos filhos recebia agora provas de carinho, gozava certa consideração, fazia-se chefe da casa, respeitado, ouvido — e até temido!

Acostumou-se a mandar e a ser obedecido. E não o fizessem! E não o fizessem depressa! Sua mão, outrora tão frouxa, esmagava agora todas as resistências. Sua vontade encorpou, enrijou, deitou os galhos da veneta.

Até da viuvez se remendou o Bento. Surgiu logo uma parenta pobre que lhe escreveu propondo-se a morar com ele e cuidar da casa. Veio a mulher, arrumou-se, deu boa aparência de limpeza e ordem ao tugúrio da lambança e do desmazelo, fazendo coisa fina, que a toda gente causava pasmo.

Bento chegou a pensar na aquisição da casinha, e para isso foi apartando cobres.

Mais tarde, novo parente em petição de miséria veio achegar-se à sua sombra — um misantropo que lhe contava lorotas e lia capítulos do Bertoldo e da história de Carlos Magno e os doze pares de França.

Bento era fanático de Roldão e nunca admitiu que fosse lida a segunda parte do livro, em que Bernardo Del Carpio vence os doze pares.

— Mentira! Não venceu nada — dizia ele. — Veja se um Bernardo, seja donde diabo for, é lá capaz de aguentar uma só lambada da durindana de Roldão!

Venceu coisa nenhuma…

Uma nuvem apenas toldava a paz da família restaurada. Bento bebia, e se errava a dose, sorvendo a mais um martelo que fosse, esquentava a cabeça. Aspectos da vida antiga vinham-lhe então à memória: o caso da besta, a cena da pancadaria, e Bento, com grande furor, apostrofava os filhos criminosos. Em seguida castigava-os. Corria os ferrolhos das portas e, chispando maldições tremendas, deslombava-os à cega.

Os filhos suportavam o tratamento sem a mínima reação. Mereciam-no e, além disso, era tão gostosa aquela vidinha esmolenga…

Foi por essas alturas que cheguei a Rio Manso, e o caso do Bento, que desde o primeiro dia me interessara à curiosidade, interessou-me depois à piedade.

Resolvi curá-lo.

Examinei-o e vi que cegara em virtude de catarata de origem traumática, sob forma de fácil remoção. A faca de De Graefe punha-o bom em três tempos.

Propus-lhe o tratamento.

— Deus que o abençoe! Que vontade tenho de ver de novo o sol! O sol, as cores, as gentes… Só quem perdeu a vista sabe o que valem os olhos. Esta noite sem fim…

— Terá fim a tua, meu velho. O caso é simples e tenho a certeza de pôr-te sãozinho como dantes. Apronto-te um quarto em minha casa, donde só sairás curado.

— Deus o ouça! Sempre pensei em procurar curar-me. Mas não havia médico por aqui, era preciso ir longe, viagem cara… Se os “videntes” soubessem o que é a cegueira…

“Videntes”! Ele chamava videntes aos que enxergam…

— Pois está combinado. Amanhã cedo vais ao meu consultório e amanhã mesmo te opero. E verás de novo o sol, as flores, o céu…

A fisionomia do cego irradiava.

— Sabe o que mais desejo ver? — disse revirando nas órbitas os olhos branquicentos. — A cara dos meus filhos. Eram tão maus e são hoje tão bonzinhos…

No dia seguinte, cedo, preparada a ferramenta, fiquei à espera do meu homem.

Oito, nove horas, dez, onze e nada. Bento não aparecia.

— Geremário, já aprontou o quarto do cego?

— Não, senhor.

— Por quê? Não ordenei isso ontem? Geremário sorriu maliciosamente.

— O homem não vem, seu doutor. Vai ver que não vem. Pois se a sorte dele é ser cego…

Revoltou-me aquele cinismo de opinião e ordenei-lhe com rispidez que cumprisse minhas ordens sem mais filosofias. E inda de vincos na testa saí de rumo à casa do Bento.

Encontrei-a fechada. Bati e ninguém me respondeu. Insistia nisso quando à janela do casebre fronteiro assomou a trunfa duma bodarrona em camisa.

— Pode dizer-me que fim levou a gente desta casa? — perguntei-lhe.

— Seu Bento? Seu Bento foi-se embora. Ali pelas dez da noite os filhos “vinheram” com um carro de boi e um recado seu.

— Meu?…

— Seu sim! Que o doutor mandou dizer que fosse já, já, por causa da operação — uma história comprida. Seu Bento trepou no carro, com aquela coruja que mora com ele, mais o leitor de livros, e as roupas, e o cachorro, e o negrinho, e a cacaria inteira. Até uma cartola desta altura levaram! Depois o carro seguiu por esse mundo afora. Os filhos consumiram com ele…

Fiquei parvo, inteiramente desnorteado de ideias. A boda prosseguiu:
— Mas se ele só presta porque é cego… Se sarasse, toda a família afundava na miséria outra vez…

No meu primeiro ímpeto de dar queixa à polícia disparei para a casa do delegado. A meio caminho, porém, estava arrefecida essa inspiração e, ao chegar à delegacia, gelada de todo. Parei à porta. Vacilei.

Em seguida dei de ombros, convencido de que o Geremário tinha razão e tinha razão a boda, e os filhos do cego tinham razão, e todo mundo tem razão.

Polícia! A polícia viria romper ineptamente esse maravilhoso equilíbrio das coisas de que resulta a harmonia universal.

Rodei para casa.

Logo ao entrar apareceu-me o Geremário com ar de quem adivinhou tudo.

— Ponha o almoço — ordenei-lhe secamente.

— Sim, senhor. E… posso desarrumar o quarto do cego?

Olhei bem para ele, ainda irritado. Mas a irritação caiu logo. Que culpa tinha o Geremário de conhecer a vida melhor do que eu?

Humilhei-me e respondi apenas:

— Desarrume…

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