Não sei se falei aqui do personagem de Gogol. Era um sujeito fabuloso. Basta dizer: — nasceu de sapatos, guarda-chuva e já funcionário. A parteira, gorda e cheia de varizes como uma viúva machadiana, caiu para trás, com ataque. O próprio recém-nascido é que a acudiu e lhe deu, em ambas as faces, dois ou três tapinhas essencialmente práticos.
Mas a burocracia tem exigências implacáveis. Antes da primeira mamada, o personagem saiu correndo para a repartição. Lá, assinou o ponto, deu ordens de serviço, recebeu propinas e só então pôde voltar para casa. E nas barbas da imprensa, inclusive os correspondentes estrangeiros, provou o generoso e insubstituível leite materno.
Eis o que eu queria dizer — o Brasil de minha infância tinha algo de Gogol. Para não ir muito longe, citarei o caso de Rui Barbosa. As novas gerações só conhecem o Rui do Magalhães Júnior. Não é a mesma coisa e pelo contrário. O Rui do Magalhães Júnior lembra a anedota célebre. É o caso de um português que se tornou o principal credor de um circo. O circo faliu e o dono chamou o português: — “Não tenho dinheiro, mas leva o leão”.
O luso só não entendeu a juba. Achou que tamanha cabeleira era imprópria até para Buffalo Bill. Tratou de passar a máquina zero no bicho. E, sem juba, o leão virou cachorro amarelo. Algo parecido fez o acadêmico Magalhães Júnior: — seu livro é a “Águia de Haia” posta no poleiro.
Mas, para meu espanto de criança, Rui foi exatamente o personagem de Gogol. Eu o via como um septuagenário nato e repito: — ele nascera de fraque, já Conselheiro e já “Águia de Haia”. Até hoje, não consigo imaginar um Rui menino.
Ah, no antigo Brasil era uma humilhação ser jovem. Só me lembro de uma meia dúzia de rapazes. Os rapazes escondiam-se, andavam rente às paredes e, para eles, a velhice era uma utopia fascinante. Por toda a parte, havia uma paisagem de velhos em flor. A palavra do velho parecia soar numa acústica de catedral. Bem me lembro de um de oitenta anos, nosso vizinho. Muitas vezes, por cima do muro, eu o espiava. Ainda por cima, hemiplégico. Pois eu achava linda essa hemiplegia. Com meus sete anos, gostaria de tremer como ele e de ter a mão entrevada, os dedos recurvos.
E tudo mudou. Agora o importante, o patético, o sublime é ser jovem. Ninguém quer ser velho. Há uma vergonha da velhice. E o ancião procura a convivência das Novas Gerações como se isso fosse um rejuvenescimento. Outro dia, dizia-me uma jovem senhora: — “Tenho mais medo da velhice do que da morte”. Quer ser defunta e não quer ser velha.
Bem. Fiz toda esta divagação para chegar a Joan Crawford. Ontem Roberto Marinho observava que a nossa imprensa fora uma anfitriã crudelíssima da atriz. Sim, os nossos jornais a receberam com uma impiedade total. Cada fotografia ou cada texto era uma acusação. Joan Crawford era acusada e de que, meu Deus?
Despedi-me de Roberto Marinho e aquilo não me saía da cabeça. Cheguei em casa e ainda pensava em Joan Crawford. A estrela era acusada de ter envelhecido. Não ocorreu a ninguém esta concessão apiedada: — “Bonita coroa”. Nem isso. Ninguém aceita a velha nobre, a velha linda.
É pena que eu não tenha, de momento, os recortes de tudo que se escreveu sobre a sua visita. Essa crueldade impressa dá o que pensar. Lembro-me de que, em 1927, vi Joan Crawford num filme da opereta Rose Marie. Nada se compara ao impacto tão puro e tão firme de sua aparição. Eu disse 1927 e façam as contas. Quarenta e um anos são passados. E Joan Crawford já era uma das mais lindas mulheres do mundo. Voltei cinco, seis, dez, quinze vezes ao cinema. Uma paixão se instalara em mim. Mas não fui eu o único. A platéia de cada dia saía apaixonada.
Quase meio século depois, a atriz vem ao Rio. Sua imagem não é mais um jogo de sombra e de luz. Saiu da tela, baixou na vida real. E começa o massacre nos jornais, no rádio e na televisão. Nós a olhamos como a uma ré e não foi outra coisa senão isso mesmo. Até os velhos a detestaram. (Eis a verdade: — a começar pelo dr. Alceu, o nosso velho atual não gosta de outro velho.)
Quando Joan Crawford visitou a Assembléia Legislativa, quis eu ser testemunha do acontecimento. Fazia um calor que, segundo minhas crônicas esportivas, derrete catedrais. Eu via em todos os olhares uma fria malignidade. E foi uma euforia geral quando, por efeito do calor, a maquiagem da atriz entrou em decomposição. A pintura derretida escorria em gotas cromáticas. Uma gota parou, exatamente, na ponta do nariz e aí ficou, dependurada, antes de se estilhaçar.
É claro que todo mundo deseja, com o maior empenho e a maior volúpia, a velhice da mulher bonita. Outro exemplo: — o de Gina Lollobrigida. Passou pelo nosso carnaval, linda, linda. Pois não faltou quem, diante do seu frescor implacável, dissesse: — “Velha! Velha!”. Voltando a Joan Crawford na Assembléia Legislativa. Houve um instante em que se percebeu, por cima do seu lábio superior, uma orla de suor. Um sujeito cutucou-me para cochichar: — “Transpira!”. E piscou o olho, numa satisfação crudelíssima.
As mulheres bonitas. Queremos envelhecê-las e agora mais do que nunca e aqui mais do que nos outros povos. Na França ou na Alemanha a mulher bonita ilustre não envelhece. Mistinguett já era um caco e a França a tratava como uma vamp. E os homens velhos e ilustres. Maurice Chevalier, aos oitenta anos, trôpego e asmático, é amado por todo um povo.
No Rio de nossos dias, Mistinguett seria apedrejada como uma bruxa de disco infantil. Joan Crawford passou por aqui e nem sei como sobreviveu à nossa impiedade. O Departamento de Pesquisas do Jornal do Brasil incumbiu-se de promover suas rugas, uma a uma. Houve um jornal que fez mais: — retocou a sua fotografia, enxertando algumas rugas sobressalentes.
É o Brasil jovem. Afirma-se que a Juventude invade a História e começa a fazer História. Mas em vão procuramos, em qualquer povo, o líder jovem, uma massa jovem e decisiva. Há a Guarda Vermelha. Mas essa tem exatamente a idade do seu chefe, Mao Tsé-tung. É a juventude mais senil que já apareceu na Terra.