O vadio – Conto de Nelson Rodrigues

By | 09/06/2022

Tomou um banho implacável, que levou, no mínimo, uns quarenta minutos, contados a relógio; cantou, debaixo do chuveiro, assoviou, bufou. A mãe, que o tratava como a uma criança, fez, do corredor, a recomendação:

– Olha as orelhas, meu filho, limpa as orelhas!

Depois do banho, pediu o talco; veio o talco. E ele o usou com uma profusão de primadona decotada. Enfim, estava diante do espelho, passando e repassando brilhantina, da braba, da suburbana. A mãe continuava:

– Olha a hora, Fulano!

Quando saiu, de terno branco, era outro homem. A mãe, enchapelada, com o melhor vestido, o acompanhava. Iam à casa de Moema pedir, para o rapaz, a mão da pequena. Pouco depois, desembarcavam, lá, de um táxi, que a velha pagou. Senhora de princípios rígidos, ela fez questão de um troco de quinhentos réis. Na casa da noiva, houve uma cerimônia rápida e comovente. d. Laura (chamava-se d. Laura) fez o pedido e, no meio, começou a chorar: a mãe de Crisálida a acompanhou; e a garota, idem. Depois, serviram refrescos de maracujá. E, então, os noivos sentaram- se num canto, para conversar com maior intimidade. Crisálida baixa a voz:

– Meu filho, estamos noivos e sabe como é: nós precisamos tratar do apartamento.

Ele tomou um choque: “Que apartamento?” E ela:

– Ora, benzinho! Que apartamento pode ser? O nosso! Ou tu achas que vamos morar na rua?

Sogra

Em tempo, informe-se que o rapaz chamava-se Euzébio Magalhães e era filho único de mãe viúva. Ouvindo falar em apartamento, fez o natural espanto:

– Pra que apartamento?

– Mas claro!

Euzébio foi pôr, em cima do piano, o copo vazio de refresco. Voltou, sentou-se novamente, ao lado da noiva e indagou: “Então tu achas que, com a casa de mamãe à nossa disposição, vamos pagar um dinheirão de aluguel?” Ela balbucia:

– Vamos morar com tua mãe?

– Mas, claro, evidente, minha filha!

Crisálida ficou calada algum tempo. Por fim, suspirou:

– Eu pensei que a gente ia ter a “nossa” casa! O noivo protesta:

– Tem dó, Crisálida! E até me admira, francamente, certas ideias que você tem! Acaso você ignora que minha mãe sofre do coração? E se ela tiver um troço? Já imaginaste o bode? Já imaginaste o teu, o meu remorso? Deus me livre!

O vadio

Passou. A vida de Euzébio estava dividida da seguinte maneira: dormia até o meio-dia; jogava sinuca, depois do jantar, no bilhar da esquina; e, à noite, ia para a casa de Crisálida, noivar. Com o noivado oficial, porém, ficava, de fora, um problema e grave: a data do casamento. Mas d. Laura considerava essa questão de data um detalhe secundário ou nulo. Virou-se para a futura nora:

– Para que pressa, não é mesmo, se já estão noivos? — e prometia: — Quando Euzebiozinho arranjar um emprego, a gente marca o negócio.

O emprego

Ficou dependendo tudo do emprego do rapaz. No fim de quatro meses, as amigas de Crisálida já a interpelavam no meio da rua:

—Sai ou não sai esse troço? Disfarçava:

– Sai.

Mas houve uma colega, despeitadíssima, que fez o veneno:

– Só se for no dia de São Nunca!

Crisálida traçou os dedos, em figa. Ao primeiro ensejo, porém, puxa o assunto: “E o teu emprego, Euzebiozinho?” Ele parou, no meio da rua, escandalizado:

– Já começa você! Você já está me enchendo, ouviu? Muda a chapa, ora que pinoia!

Insistência

Mas Crisálida, que não era criança, queria casar depressa. De vez em quando, voltava à carga, meiga, mas tenaz. Um dia, ele cravou na pequena a pergunta irônica:

– Vem cá: você vai se casar comigo ou com o meu emprego? Ela gagueja:

– Bem. Contigo, é claro. Mas você não acha que o emprego é necessário? Sem teu emprego, vamos passar fome, meu filho!

Euzebiozinho exagerou:

– Tinha alguma coisa demais? Seríamos, por acaso, o primeiro casal a passar fome? Responde!

Crisálida engasga, envolvida por uma dialética superior. Sua única atitude foi a de refugiar-se, por detrás das próprias lágrimas. Ele, então, comoveu-se. Baixando a voz, e olhando para os lados, pisca o olho:

– Estás pensando que eu estou dormindo no ponto? Sou meio maquiavélico, percebeste?

Esfregava as mãos, eufórico. Crisálida, curiosa, e já num prévio deslumbramento, indaga: “Conta. O que é que há?” Euzébio deu as explicações:

– O meu lema é o seguinte: “devagar e sempre”. Estive pensando e cheguei à conclusão de que não adianta casar agora. Espera-se mais um pouco e fazemos um big casamento!

Crisálida não entende:

– Esperar o quê, meu bem? Estavam na casa da sogra. Euzébio levanta-se. Em pé, com as duas mãos enfiadas nos bolsos, e olhando as paredes, o teto, o lustre, os móveis, como um futuro proprietário — prossegue:

– Presta atenção: minha mãe tem uma lesão cardíaca incurável. Mais dia, menos dia, morre. E ela morrendo, já sabe: sou o herdeiro único. Mamãe tem prédios, avenidas, o diabo! Manjaste o golpe? E eu, com a gaita no bolso, vou fazer misérias! Que tal uma lua de mel na França, Itália e outros bichos?

Diante da noiva, atônita, fez as confidências que sempre calara. D. Laura era somítica como ela só. Chorava cada tostão. Além do mais, tinha a mania desagradabilíssima de empregá-lo. Queria que ele trabalhasse, que se matasse de trabalhar. E o rapaz considerava isso de uma tirania e de um pão-durismo intoleráveis.

Crisálida devia dar-se por satisfeita. No dia seguinte, porém, indaga:

– Quer dizer que temos de esperar esse tempo todo? Bufou:

– Esperar coisa nenhuma! Você conhece o dr. Belisário, não conhece? Pois é. Ontem, o dr. Belisário me chamou no consultório e disse o seguinte: que eu tomasse muito cuidado com mamãe, porque de um momento para outro, o negócio rebenta. Basta uma contrariedade, um susto, uma emoção, e pronto!

Crisálida, que acreditava em inferno, teve seu drama; seria lícito um casamento baseado numa defunta hipotética? Olhava para d. Laura e via, na boa senhora, a morta próxima. Mas, Euzebiozinho tinha argumento para tudo:

– Você até me decepciona, francamente! Quem vê diz que sou alguma hiena, algum chacal! Responde! Eu tenho culpa que minha mãe não seja eterna?

Essa lógica arrepiava Crisálida. E Euzébio ainda acrescentava, sem muita propriedade: “Rei morto, rei posto!” Então começou a longa espera. Criou-se, em Crisálida, menina de bons sentimentos, incapaz de matar uma mosca, o hábito daquela ideia. Se d. Laura apanhava um mísero, um vago resfriado, ela corria, atarantada, para visitá-la. Fazia o falso espanto:

– Ih, d. Laura! Estou achando a senhora abatida hoje! Mas, a velha, na sua obstinação vital, resistia; impávida, aos resfriados, às gripes e, até, a um ameaço de pneumonia. Passou-se um ano; e mais outro e outro. No verão, parecia até castigo: Crisálida ficava coberta de brotoejas. Apareceram espinhas no seu rosto. A mesma colega que pressagiara o seu casamento para o dia de São Nunca fez outra insinuação: “Quem tem espinhas é solteirona.” Quanto ao noivo, continuava na sua vadiagem desenfreada, sem querer saber de emprego. Crisálida caiu em pânico. Não aguentou mais: uma tarde vai, sozinha, falar com o médico da sogra, o já citado dr. Belisário. Perguntou se era verdade que a sogra tinha lesão cardíaca. O médico achou graça:

– Conversa!

– Como? E ele:

– Tem um coração de cimento armado! Ela é que me fez inventar esse negócio de lesão para ver se o filho tomava emenda!

Crisálida ainda pediu um remédio para as suas espinhas, cada vez mais numerosas, e despediu-se. Ia fora de si, num dilaceramento medonho. Atravessa a rua como uma sonâmbula e nem viu o automóvel, em disparada, que a atropelou. Morreu, ali mesmo, de olhos abertos. Durante algum tempo, ninguém mexeu no corpo, nem se lembrou de compor suas roupas. Mas os homens a olhavam sem maldade.

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